“É tempo de gritar pela paz”. Este é o título da mais recente nota da Comissão Nacional de Justiça e Paz. Uma nota que condena a força desproporcionada de Israel na Faixa de Gaza e que foi publicada ainda antes do escalar do conflito entre Israel e o Irão. O presidente da Comissão Nacional de Justiça e Paz é o convidado deste domingo da Renascença e da Agência Ecclesia

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Os mais recentes acontecimentos no Médio Oriente, isto é incontornável, em particular a guerra entre Israel e o Irão, fazem ainda aumentar o volume deste grito pela paz?
Sim, sem dúvida. Foi uma tragédia que se seguiu a outra. Cada uma delas tem a sua especificidade. Também é bom que uma não nos desvie a atenção da outra. E é bom sempre refletir sobre estas questões à luz do direito e da ética e não as aceitar acriticamente, como se os fins justificassem os meios, apesar de como sabemos, haver de facto uma ameaça; o eventual armamento nuclear do Irão é uma ameaça a Israel. Mas a questão é saber se esta era uma conduta aceitável, do ponto de vista do direito e da ética. Há a questão da chamada guerra preventiva. Também foi bastante analisada e discutida quando foi a guerra do Iraque.
Nem o direito internacional, nem a doutrina da Igreja aceitam a guerra preventiva, e a encíclica ‘Fratelli Tutti’ é muito clara nessa questão. Porque a justificação de um hipotético ataque, quando esse ataque ainda não está em execução, ou é iminente, dá as maiores arbitrariedades, como aconteceu na guerra do Iraque, em que se invocava a presença de armas de destruição maciça e que depois que se veio a verificar que não se encontram.
Neste caso do Irão, o que aconteceu foi que há um incumprimento da parte do Irão em relação a algumas obrigações de controlo, em relação ao armamento nuclear, não há como o negar. Mas, depois entra-se numa lógica que já não é uma lógica defensiva, é uma lógica de retaliação, de vingança, numa escalada interminável: a um ataque responde-se com outro ataque, cada vez mais grave, cada vez mais danoso, do ponto de vista também das consequências incluindo civis, e o que nós vemos é que, racionalmente podemos pensar, será que depois de tudo isto, pode o Irão, o governo, ou povo do Irão, ter um sentimento de menor hostilidade, até de menor ódio em relação a Israel? Pelo contrário, quer dizer, tudo isto agrava este clima, e mesmo para os cidadãos de Israel, daqui não resultará certamente um clima de paz e de segurança, porque, pelo contrário, a tendência será para se agravar cada vez mais.
E será perverso pensar-se na eventualidade de este novo conflito Israel-Irão, servir para desviar atenções daquilo que vai continuar de acontecer na Faixa de Gaza?
Pois, isso pode acontecer, eu não sei qual foi a intenção, mas, de facto, isso pode acontecer, e é bom que não deixemos que isso aconteça. E por isso é importante não esquecer a nossa nota e outras. A nossa nota vem-se juntar a muitas outras. Nós tivemos recentemente também uma declaração da Conferência Justiça e Paz Espanhola, em colaboração com a Conferência Episcopal Espanhola, e o que quisemos salientar em relação a esta situação foi que assistimos a crimes de guerra. O facto de se usar a fome como arma, se condicionar o fornecimento de bens essenciais – alimentação, água – e colocar assim em risco a vida de inocentes, é algo que não pode ser aceite, é um crime de guerra. Nós também aqui, a partir de um pretexto defensivo em relação a um ataque que houve, e que é de condenar, e que nós na nossa nota também muito claramente condenamos, também não podemos deixar de condenar a reação desproporcionada, que também aqui já podemos dizer que é uma defesa que já deixa de ser defesa e já deixa de ser legítima, porque entra também precisamente na lógica da retaliação.
Vários organismos, a Igreja Católica, os Papas, o Secretário-Geral das Nações Unidas, têm sido incansáveis nos apelos para que se procurem soluções de paz. Especificamente nesta questão de Gaza, do conflito com Hamas e Israel, a Comissão Justiça e Paz, defende a solução dos dois Estados, como tem sido proposto pela Santa Sé?
Sim, tem sido proposto pela Santa Sé, tem sido proposto pelas Nações Unidas. É uma forma de respeitar os direitos dos dois povos. Um e outro têm direitos à sua autodeterminação, a uma pátria, como todos os povos têm. É claro que cada vez se torna mais difícil esta coexistência. Mas só essa coexistência é que permite que os dois povos vivam em paz. No fundo, é um bem para uns e para outros.
Enquanto isso não acontecer, enquanto não se estabelecer essa harmonia, que supõe a justiça, pois sabemos que a paz assenta na justiça. E, portanto, enquanto não houver esse reconhecimento dos direitos de um e de outro povo, portanto, se não se respeitar a justiça em relação a esta questão, nós não podemos falar em paz. E, enquanto não houver isso, nem os cidadãos de Israel, nem o povo palestiniano viverão em paz.
Nós estamos a gravar esta entrevista em vésperas de mais um jubileu, neste caso um jubileu dos governantes. Falando sobre o seu papel na gestão destes conflitos, nós podemos expressar grande frustração?
Eu reconheço que, nestas situações, muitas vezes os governantes podem ser colocados perante dilemas. Mas, em todo o caso, o que é bom salientar é que a política, como a economia, não é algo que seja separado da ética. E, quando o político se orienta pela fé cristã, não o pode deixar, como já ouvi dizer, no bengaleiro antes de entrar no parlamento ou antes de entrar no seu gabinete.
Também reconheço que, muitas vezes, há que optar entre os dois males, mas nunca nos podemos guiar por uma lógica diferente, que seja a lógica de que os fins justificam os meios, por exemplo, aqui nesta questão da guerra, ou nnoutras. E, portanto, acho que as autoridades devem também ter isto em consideração. Eu também sou uma autoridade, enquanto magistrado, e também, muitas vezes, posso ser confrontado com estas situações, mas é esta coerência que nos é pedida.
Falava da necessidade de haver ética na política, na economia. Olhando para estes conflitos, muitas vezes, além destas questões da falta de vontade política para os resolver, nós também temos uma dimensão específica associada ao comércio de armas que se sobrepõem aos princípios éticos?….
Sim, se de facto, por trás destes conflitos, há quem ganhe com eles, esse facto pode ser também um motivo para que eles se intensifiquem. É algo profundamente condenável, e o Papa Francisco foi muito severo em relação a essa questão. Eu não vou dizer que todas estas guerras se explicam por causa do comércio de armas. Há, de facto, questões políticas e questões de justiça, de reivindicações, às vezes legítimas, outras vezes não. Mas também não podemos ser ingénuos a ponto de não reconhecer que por trás destes conflitos, e às vezes é uma forma de os incentivar, há interesses comerciais.
O Papa Leão XIV iniciou o seu pontificado com redobrados gestos e até apelos de paz. A começar pela sua saudação inicial aos peregrinos presentes na Praça de São Pedro. Até pela triste realidade que vivemos, vamos ter um início de pontificado muito marcável por este sublinhado à procura de caminhos de paz e de esperança?
Sim, de facto, há que reconhecer isso neste breve período do pontificado de Leão XIV. É daqueles temas em que ele mais tem insistido. Mas compreende-se que assim seja, porque a época que atravessamos como que denota uma verdadeira regressão.
Depois da II Guerra Mundial tivemos experiências com a Europa Unida, a criação das Nações Unidas, instituições que pretendiam não repetir essa trágica experiência. Depois houve a queda do comunismo e muitas esperanças se abriram no sentido, até se falava no fim da história, no sentido do fim de conflitos ideológicos, etc. Agora parece que assistimos a uma regressão neste aspeto. E é como se este período que vivemos depois da II Guerra Mundial, que foi um período de paz, de prosperidade, que beneficiou muitas pessoas, muitas gerações que hoje vivem na Europa, e não podemos pensar que agora voltamos à habitualidade da guerra como se não houvesse alternativa. E é neste contexto que eu acho que é importante esta mensagem do Papa Leão XIV.
Falava da Guerra Fria, que tinha dois grandes protagonistas, um deles mantém-se, são os Estados Unidos da América. Eu pergunto até que ponto esta nova administração com o presidente Donald Trump tem sido um fator de instabilidade no cenário internacional?
O que se verifica é que há uma lógica de indiferença, uma espécie de nacionalismo estreito, podemos dizer, não é aquela ideia da América primeiro? E, portanto, quando não estão em causa os interesses da América, então há uma indiferença em relação a questões que se podem suscitar, às vezes por trás de uma intenção aparentemente de pacificação, não estar envolvidos em conflitos pode estar em causa esse egoísmo, e não estar disposto a nenhum sacrifício para defender os direitos do povo ucraniano, por exemplo. E também a quebra de solidariedade atlântica entre os Estados Unidos e a Europa, que leva a que toda a conceção da política europeia tenha de ser revista. Tudo isto é um fator que parte desta conceção de um nacionalismo exacerbado e de uma indiferença em relação a valores mais amplos e isso, de facto, não é positivo.
E relativamente ao Estado português, o que mais é necessário fazer, no ponto de vista da Comissão Nacional de Justiça e Paz, na defesa das melhores soluções?
Também na sequência de outros apelos que têm sido feitos, parece-nos que é importante marcar uma coerência em relação à política da União Europeia e de Portugal, no sentido de não se usar dois pesos e duas medidas. Da mesma forma que o Governo português tem sido firme na condenação em relação à invasão da Ucrânia e da violação do direito internacional e também dos crimes de guerra que têm sido praticados nesse âmbito, deve haver uma igual coerência em relação à conduta do Governo de Israel.
Tem faltado essa firmeza?
Acho que sim, não só do Governo português, como também de todos os Governos da União Europeia, embora também se deva reconhecer que países tradicionalmente apoiantes de Israel têm infletido um pouco a sua posição e joga-se aqui também a credibilidade da União Europeia que se pretende paladina da defesa dos direitos humanos.
Vamos olhar para a realidade nacional, para um ciclo governativo que começa agora. Que prioridades julga mais importantes, e depois falou do nacionalismo estreito, ainda há pouco, e eu pergunto o que é que é necessário fazer para se combater esta onda populista que parece estar a tomar conta no país?
Bom, em relação ao Governo e a este novo ciclo, é um desafio também à capacidade de diálogo. É verdade que a maioria, agora menos relativa, digamos assim, mas não dispensa a busca de consensos mais alargados, que devem ser feitos também aqui numa perspetiva de coerência. E essa perspetiva de coerência leva também a rejeitar – há bocadinho falávamos do nacionalismo estreito – a rejeitar tudo o que seja um clima de hostilidade em relação ao estrangeiro, em relação aos imigrantes que nos têm chegado, em relação também a este clima que se tem criado, de islamofobia, quer dizer…
E não acha estranho que no primeiro dia do debate sobre o programa do Governo, o tema dominante tenha sido no Parlamento, precisamente a questão da imigração?
Pois, não há dúvida que somos colocados perante um desafio importante, porque houve, nos últimos anos, um acréscimo muito significativo da população imigrante, e isso coloca problemas de integração dessas pessoas. Mas é um desafio que nós temos de encarar à luz daquilo que são princípios da nossa cultura cristã, e a nossa cultura cristã não é uma simples questão identitária, é uma questão de coerência com a dignidade da pessoa humana, com a fraternidade universal. E, portanto, estas pessoas que vêm até nós e devemos ver isso também de uma perspetiva positiva, ou seja, da mesma forma que muitos portugueses encontraram noutros países condições para uma vida melhor, estas pessoas procuram isso aqui entre nós.
E se nós pudermos proporcionar isso também, é um desafio. Ao longo da nossa história de Portugal, enriquecemo-nos com o contacto com outras culturas, muitas vezes falamos disso, como algo do passado, mas agora é um desafio com que somos confrontados hoje. E, portanto, acho que, apesar das dificuldades, temos capacidade para enfrentar esse desafio.
A minha questão era relacionada mais com a projeção que se dá a um determinado tema, neste caso, a questão da imigração, porque depois se exponencia precisamente aquilo que estávamos a falar, nomeadamente dos extremismos e os populismos que vão dominando o país e que têm tido franjas de eleitorado cada vez mais maiores….
Nós, Comissão Justiça e Paz, não entramos na política partidária, nem criticamos, assim, sistematicamente um partido ou outro, mas em relação a propostas concretas, marcamos a nossa posição. Portanto, eu, pessoalmente, ainda recentemente, condenei propostas no sentido da introdução da prisão perpétua na Constituição portuguesa, que também é contrária à nossa tradição, algo que nós nos devemos orgulhar de termos sido os primeiros países a abolir a prisão perpétua.
Agora a questão que se discute é o reagrupamento familiar, devemos encarar a possibilidade do reagrupamento familiar como um direito humano. A família é algo importante para cada um de nós, quer portugueses nativos, quer imigrantes, e não há o que discriminar um e outro. É um fator, também, que favorece a integração destas pessoas na comunidade portuguesa e, portanto, devemos facilitar…
A discussão vai no sentido de não se promover este reagrupamento familiar…
Mas eu acho que é negativa essa postura, porque também não o faríamos em relação a portugueses que vivem no estrangeiro e que, naturalmente, veem que para o crescimento harmonioso dos seus filhos devem estar presentes pais e filhos e, portanto, isso é algo que tem a ver com os direitos humanos.
Igreja/Portugal: Comissão Justiça e Paz condena «crimes de guerra» na Faixa de Gaza