Medicina: «Precisamos de pessoas que se dediquem aos outros a sério» – Gentil Martins

Médico aposentado, com 95 anos e mais de 12 mil cirurgias realizadas, afirma o foco e a ajuda ao paciente como o principal na sua vida

Foto: Agência ECCLESIA/MC

Lisboa, 10 dez 2025 (Ecclesia) – António Gentil Martins, com 95 anos e uma carreira dedicada à cirurgia pediátrica, disse que hoje “precisamos mais de pessoas disponíveis para o voluntariado social” e para fazer o bem.

“Precisamos de pessoas que se dediquem aos outros a sério. Hoje em dia, as pessoas olhem mais para o relógio e para a reforma. Fazer voluntariado social demonstra que a pessoa está disposta a sacrificar-se pelos outros”, indica em entrevista à Agência ECCLESIA.

“A medicina não é melhor nem pior que outra área profissional, mas se a pessoa não está disponível a sacrificar-se pelo outro, é melhor escolher outra coisa”, acrescenta.

Com uma carreira de 47 anos, e mais alguns anos a fazer cirurgias, Gentil Martins dá conta que ainda hoje, na rua, é normal encontrar pessoas que lhe agradecem uma entre as mais 12 mil cirurgias que realizou.

“Eu tinha um arquivo que me ajudava principalmente a acompanhar as pessoas. A partir de certa altura deixei de contar as intervenções cirúrgicas. Acho que os números não têm grande significado. Fazemos tudo o que podemos fazer. As pessoas que tratamos é que importam, são vidas que tratamos, os números não”, assinala.

O médico aposentado recorda que a medicina surgiu na sua vida quando percebeu o desejo de ajudar, “a necessidade de fazer alguma coisa para auxiliar diretamente”.

“Eu tinha 10, 12 anos, e pensava que poderia ser engenheiro ou médico, porque queria concretizar qualquer coisa. Um dia assisti a um acidente quando ia para o liceu Pedro Nunes – um senhor foi atropelado e ficou a sangrar muito. E eu estava ali, mas não sabia o que é que havia de fazer e eu queria ajudar aquele senhor. Nessa altura, decidi que iria para medicina”, recorda.

Entre Londres e Liverpool, em Inglaterra, ganhou experiência e conhecimentos que lhe permitiram regressar a Portugal e sentir-se capacitado para ser cirurgião, escolhendo a especialização pediátrica.

“As crianças têm uma espontaneidade diferente dos adultos, são mais verdadeiros do que os adultos. Quando vejo uma criança bem disposta acho que ela não tem nada grave, se vejo uma criança triste fico logo preocupado porque não devo estar a ver qualquer coisa”, diagnostica.

O médico recorda, com emoção, uma carta, escrita por um paciente, e entregue pelo pai: “Pai, eu vou para o céu, mas quero que o pai vá ao Instituto do Cancro, agradecer aos médicos e às enfermeiras e ao pessoal todo o carinho com o que eu fui tratada. Um beijo para todos”.

Achei aquilo extraordinário que uma criança com oito anos era capaz de ter aquele tipo de atitude, e depois os pais transmitirem aquilo. Achei realmente uma coisa excecional. Ter a sensação que conseguimos fazer alguma coisa de útil, concreto, é excelente. O problema grave é o contrário quando infelizmente tentamos e depois a coisa não resulta. E aí ficamos, de facto, muito em baixo. Quando conseguimos resolver uma situação difícil, é de facto uma alegria extraordinária.”

No exercício da medicina, Gentil Martins assumia sempre o primeiro corte e o último ponto cirúrgico: “Eu gosto de assumir a responsabilidade do que faço. De tudo. Bem ou mal, é o que for. Tento fazer bem, mas também não posso garantir que faço bem”.

Cirurgião pediátrico, a operação de separação de gémeas siamesas, em 1978, realizada em Portugal, marcou o seu percurso, numa cirurgia de 12 horas, ajudado por equipas que se revessavam a cada quatro horas.

A educação católica em casa fez Gentil Martins percorrer toda a formação e os sacramentos mas explica que a “ideia de inferno” lhe é difícil de aceitar.

“Acho que o purgatório é fantástico, porque uma pessoa deve ser castigada pelos disparados que fez. Agora, inferno para a vida toda… Eu tenho esperança que Deus nosso Senhor, se é bom mesmo, não deixe ninguém ir para o inferno”, conta.

Pai de oito filhos, 27 netos e “nove bisnetos e meio”, brinca, Gentil Martins tem uma vida dedicada à medicina no Hospital Dona Estefânia, no Instituto Português de Oncologia, e num consultório privado, lamentando, no entanto, ter deixado a vida familiar entregue à sua esposa.

“Interrompíamos jantares, reuniões de amigos, eu estava sempre acessível quando fosse necessário, fazia o possível por isso”, recorda.

Quando falecer, Gentil Martins sabe que o seu corpo vai ser recebido na Faculdade de Medicina na Universidade de Lisboa, doado à ciência para investigação.

“Eu aprendi imenso a operar os cadáveres. Fazer um erro no cadáver não tem importância nenhuma. É uma vantagem enorme poder errar. Por isso, o meu corpo pode ser aberto e ficar disponível para investigação”, explica.

Desafiado a olhar para os seus 95 anos, o médico acredita terem sido “úteis”.

“Acho que exageram às vezes um bocadinho a fazer-me os elogios. Só tenho ideia de que não pensem que eu fiz por mal alguma coisa”, finaliza.

A conversa com António Gentil Martins pode ser acompanhada esta noite na Antena 1, no programa ECCLESIA, emitido pouco depois da meia-noite, e disponibilizado posteriormente no podcast «Alarga a tua tenda».

LS

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