Medicina do futuro «tem de passar muito pela reabilitação e cuidados crónicos» – António Medina de Almeida

Diretor da Faculdade de Medicina da Católica faz o balanço dos primeiros meses do novo curso, que se propõe formar médicos “abertos ao mundo” e “próximos” dos doentes

Foto: Joana Gonçalves/RR

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

 

Que balanço é já possível fazer do arranque do novo curso de medicina da Católica, agora que terminou o primeiro semestre de aulas? Está a corresponder às expectativas de alunos e professores, e também ao que esperava como diretor da faculdade?

Devo dizer que este arranque do curso foi recebido com grande entusiasmo por parte de todos, com grande ímpeto. Com os alunos, tivemos sorte – e também foram selecionados para tal -, são um grupo muito motivado, muito empenhado, com grande dedicação, não só ao curso e ao seu ensino, mas também à faculdade. Como se deve imaginar, um projeto novo destes tem sempre muitas arestas a limar e os alunos têm sido fundamentais a identificar esses pequenos problemas logísticos do dia a dia, ajudando-nos a resolvê-los.

O que tem sido surpreendente, sobretudo, é a adesão dos alunos às metodologias de ensino. Aplicamos metodologias de ensino um bocadinho diferentes do convencional.

 

São mais práticas, por assim dizer?

Sim. As metodologias convencionais favorecem muito o ensino passivo, os alunos estão numa sala de aulas ou num anfiteatro, ouvem, retêm, depois estudam. Nós, aqui, fazemos quase o contrário: apresentamos problemas aos alunos, pedimos que eles próprios identifiquem quais vão ser os objetivos de aprendizagem daquele problema. Depois, vão passar um dia ou dias a fazer a sua investigação, o seu trabalho de campo, investigar como é que pode resolver o problema – e são problemas muito práticos, por exemplo: “O João foi a África numa missão, voltou com diarreia e desidratado”. Com base neste problema, os alunos têm de explorar o que causa diarreia em África, o que é que causa desidratação no corpo, que efeitos produz e como é que se pode tratar. Eles começam, desde o primeiro ano, a perceber como é que o corpo humano funciona, desta maneira muito prática.

 

Que reação têm recebido dos alunos? Estão satisfeitos com a aposta feita?

Tem sido muito interessante, porque ao princípio é um bocadinho assustador, estamos habituados a que nos digam o que temos de aprender. É o método de ensino tradicional. Nós, agora, estamos a pedir aos alunos que sejam eles próprios a decidir o que têm de aprender.

Enquanto nas primeiras sessões havia algum medo e muita insegurança, tem-se vindo a desenvolver cada vez mais a confiança dos alunos com este método. Não só são muito mais autónomos, como têm uma grande capacidade de decisão daquilo que têm de aprender ou não, como é que têm de trabalhar em grupo e individualmente. Entram também com muita confiança no método.

Quando falamos com os alunos – e temos tido os períodos de avaliação dos blocos curriculares, na faculdade -, o balanço tem sido muito positivo, com muito entusiasmo. Os alunos sentem-se muito mais envolvidos no próprio dia a dia do ensino e naquilo que eles podem desenvolver.

 

O curso começou em setembro, com 50 alunos. Mantém-se a intenção de duplicar este número no próximo ano letivo?

As indicações que temos da Agência para a Acreditação [A3ES] eram começar com 50 alunos no primeiro ano e aumentar progressivamente até 100 alunos, ao longo dos primeiros três anos. Essa será a nossa capacidade limite. Espero, para o ano que vem, poder receber cerca de 70 a 75 alunos e depois, no terceiro ano de candidaturas, poder receber 100. Tudo depende, claro, das avaliações que a Agência vai fazendo, como faz parte de qualquer primeiro curso.

Este primeiro grupo tem sido muito bom, porque é pequeno, conseguimos conhecer-nos bem, ter uma grande coesão interna, e também estabelecemos com mais calma toda uma cultura educativa e até a cultura que se respira de entusiasmo, pelo entusiasmo de criar um projeto novo, todos juntos, na faculdade. Com alunos e professores, numa proximidade muito maior.

 

Este é um curso diferente também por ser ministrado em inglês. Este ano já tiveram muitos alunos estrangeiros? Esperam aumentar esse número?

Tivemos algumas candidaturas estrangeiras, neste ano letivo, das quais temos uma aluna. Esperamos que este ano possamos ter mais alunos internacionais.

A razão da língua inglesa, para além de poder disponibilizar o curso a um leque maior do que só a população nacional ou dos países lusófonos, também tem como objetivo poder preparar os nossos alunos para serem médicos no mundo inteiro. Indo à mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial do Doente, em que refere a importância de a saúde estar disponível a todos, isso é uma coisa muito importante para nós: preparar os alunos para que possam tratar todas as populações e estar mais abertos ao mundo. Isso começa, obviamente, pela capacidade de comunicação e a língua inglesa, sendo falada em muitos países e até em muitos países menos privilegiados do que o nosso, pode dar-lhes uma abertura para tratar mais pessoas do que estando restritos à língua portuguesa. É muito importante.

 

Para o próximo ano letivo estão previstas novidades ou alterações? Tencionam, por exemplo, aumentar o apoio social aos alunos que não tenham possibilidade de pagar as propinas, que são muito elevadas, mas tenham capacidade provada para frequentar o curso?

Isso é um ponto muito importante. Já este ano conseguimos, pela generosidade da Universidade Católica, duas bolsas de apoio social e também uma bolsa de apoio social, com mérito académico, do professor Eduardo Coelho, e outra bolsa para o aluno que tenha tido mais experiência em voluntariado, previamente a entrar no curso de Medicina, dada pelo Banco Santander.

Espero ter, no ano que vem, mais bolsas destas, obviamente ligadas ao mérito e que também ajudem os alunos com menos capacidades financeiras a estudar. Estamos a desenvolver um programa, tanto com o Banco Santander como com outras entidades, para estas bolsas de apoio social.

 

O curso arrancou em plena pandemia, o contexto em que vivemos trouxe desafios acrescidos ao ensino da Medicina? Levou-vos a alterar alguma coisa do que já tinham previsto fazer e ensinar?

Entre nós, docentes e direção da faculdade, fazemos sempre a graça de que somos o único curso no mundo que foi montado totalmente por zoom. Realmente, toda a preparação foi feita durante a pandemia. Recebemos a aprovação da Agência de Acreditação em outubro de 2019 e em março de 2020, quando começamos todos os preparativos, estávamos em pandemia. Portanto, tudo isto foi feito e preparado remotamente. Tivemos a sorte, ou a proteção divina, de podermos abrir as aulas presencialmente e temos conseguido fazer isso com muita eficácia, muita segurança. Os alunos aderem completamente às nossas regras de segurança – uso de máscara, distanciamento, lavagem de mãos, etc. Claro que, tendo 50 alunos num edifício preparado para 600, conseguimos ter espaço suficiente para estar em segurança e temos tido muito poucos casos de Covid. Fazemos uma testagem regular, encorajamos os alunos a reportar sintomas e todos estão vacinados. Isso gera muita confiança, a verdade é que ao longo destes meses tivemos poucos momentos de stress por causa da Covid, com estas regras.

Claro que nos tivemos de adaptar e temos toda a possibilidade de permitir que os alunos confinados possam seguir as aulas remotamente. Temos todas as salas de aulas e auditórios ligados com câmaras, por zoom, sendo possível que palestrantes, professores ou alunos se liguem remotamente. Isso tem sido usado, esporadicamente, para pessoas em confinamento e tem funcionado muito bem. Isso vê-se, sobretudo, quando olhamos para as avaliações – já acabamos as duas primeiras unidades curriculares – e elas correram muito bem, não só com boas notas mas também com grande uniformidade. Isso é muito encorajador para o futuro.

 

O Hospital da Luz é o vosso parceiro clínico principal – é o hospital universitário. Como é que está a relação com o Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, que em janeiro deixou de ser uma PPP (Parceria Público Privada) gerida pelo Grupo Luz? Mantém-se como “hospital associado” da vossa faculdade, ou passar a ser do Estado mudou alguma coisa?

Não, a alteração desta administração não mudou nada. Tivemos um acordo com o Conselho de Administração do Hospital Beatriz Ângelo, separadamente do acordo que temos com o Grupo Luz Saúde. Portanto, esse acordo mantém-se e vamos começar a desenvolver conversas com a nova administração para o planeamento. O acordo é com o Hospital Beatriz Ângelo, independentemente da gestão superior do Grupo Luz Saúde ou não.

 

Foto: Joana Gonçalves/RR

Os acordos com as unidades de saúde das Misericórdias (hospitais, unidades de cuidados continuados e reabilitação), são também uma mais-valia?

Eu acho que sim. Não podemos ignorar que a medicina do futuro passa não só pela medicina aguda, e aquela que classicamente identificamos como medicina de urgência, cuidados intensivos e cirurgias, mas também tem de passar muito por medicina de reabilitação e de cuidados crónicos. Essa é uma população cada vez mais prevalente e importante, e temos de expor e preparar os alunos para essas realidades. São populações que até agora, de certa maneira, tiveram menos acesso a cuidados de saúde e que agora começam a ter cada vez mais, e é muito importante que os médicos do futuro tenham consciência dessa necessidade da população.

 

A pandemia veio mostrar que a situação, por exemplo nos lares de idosos, deve chamar mais a atenção para a necessidade de cuidados de saúde. O progressivo aumento da esperança média de vida faz com que o olhar que a sociedade tem sobre essas instituições tenha de integrar mais oferta, como disse, de cuidados crónicos de saúde?

Concordo inteiramente. Eu acho que estamos a crescer em consciência, como sociedade, da importância que são os cuidados de saúde preventivos e continuados. E quando digo continuados falo até em pessoas que não tenham nenhuma doença agudamente ativa, tenham várias doenças crónicas ou até nem tenham muitas patologias, mas sejam só debilitados por causa da idade e fragilidade e que precisam de medicina de cuidados e de prevenção de complicações, isso é muito importante.

A medicina de prevenção e de cuidados continuados vai-se tornar cada vez mais importante na nossa sociedade, com o aumento da esperança de vida e da cronicidade das doenças. Se olharmos, por exemplo, para doenças oncológicas, para cancros que talvez aqui há duas gerações – não é há muito tempo, há 50 ou 60 anos – eram consideradas universalmente fatais, e hoje em dia uma grande proporção dos tumores que diagnosticamos ou são curáveis, ou transformam-se em doenças crónicas. E esse tipo de cronicidade de doenças requer uma abordagem completamente diferente da medicina.

 

Vamos falar da mensagem do Papa para o Dia Mundial do Doente, que se assinala a 11 de fevereiro. O Papa lembra que “o doente é sempre mais importante do que a sua doença”, e que por isso mesmo “qualquer abordagem terapêutica não pode prescindir da escuta do paciente”. É importante valorizar, em termos de formação dos médicos, esta dimensão relacional? O vosso curso está a ter isso em atenção?

Isso é fundamental. Hoje em dia, com toda a tecnologia de informação e diagnóstica que temos, desde programas informáticos a robôs, a algorritmos que nos ajudam a diagnosticar e identificar tratamentos, cada vez mais temos de ter a consciência de que o papel do médico – do profissional de saúde, não só do médico – é estar ao lado do doente, acompanhá-lo e servir de suporte, consolo. Claro que tem de ser tecnicamente bom, isso não é prescindível, mas também é muito importante saber comunicar e explicar ao doente o que é que passa. Não há nada pior do que um médico que possa pedir mil exames e prescrever mil tratamentos, mas que abandona o doente e não o acompanha nesse caminho. Nesse contexto temos uma grande preocupação em poder formar os nossos alunos para serem médicos que acompanham os doentes.

Temos aulas de comunicação desde o primeiro ano, os nosso alunos este ano já tiveram contacto com doentes simulados – voluntários, desde reformados a profissionais de várias áreas e alunos de medicina, que são os nossos doentes simulados e que vêm à nossa faculdade fazer consultas simuladas com os nossos alunos. Para já são consultas simples, em que estamos a ensinar coisas básicas – desde como é que um médico se apresenta ao doente, dá as boas vindas, como é que aborda os problemas – e que vão aumentando de complexidade ao longo do curso, para os médicos conseguirem estabelecer esta relação de empatia e de comunicação com o doente. No fundo é daí que vem não só o diagnóstico como o tratamento.

 

A mensagem do Papa destaca os avanços da ciência médica, embora lamente que as vacinas contra a Covid ainda não cheguem a todos. Como médico sente-se interpelado por esta mensagem, e pelas várias intervenções que o Papa tem feito relacionadas com o acesso à saúde e os cuidados com os mais frágeis?

Sim. Esta mensagem do Papa – como de resto todas são – é particularmente atual e realista sobre aquilo que se passa no mundo, mas até dentro do nosso país. Uma leitura superficial faz com que pensemos que ele está a olhar sobretudo para o que acontece em países menos privilegiados, do terceiro mundo, mas o que acontece ali é o mesmo que acontece cá. Talvez não especificamente com as vacinas, porque graças à boa organização que tivemos do sistema de vacinação estão acessíveis a todos, mas os cuidados de saúde não estão. O acesso à saúde não é facilmente acessível a todos, e todos reconhecemos que o sistema nacional de saúde – e nisto incluo todos os hospitais públicos, privados, misericórdias, centros de reabilitação, etc – não é uniforme no país e não está acessível a toda a gente. Essa é uma falha que temos de lutar muito para colmatar. E até dentro da nossa própria consulta, nos doentes individuais, vemos que a informação e o acesso a cuidados sanitários, economicamente a medicamentos e a transportes, varia muito entre doentes. Essas partes logísticas de transportes, cuidados em casa e saneamento são coisas que parecem que estão fora, mas que têm um impacto enorme sobre a saúde, e essas desigualdades são importantes e têm de ser abordadas, encaradas e resolvidas.

 

No geral, como é que avalia a forma como o país tem respondido à pandemia?

Só podemos elogiar a forma como respondemos à pandemia, desde a organização que tivemos, primeiro nas vacinas. Em março de 2020 tivemos uma reação muito cautelosa e rápida em isolar-nos para prevenir a contaminação da população com o vírus, e aí – sobretudo a região sul, a região norte sofreu mais – não tivemos um esforço tão grande nos hospitais. Mas depois, em dezembro 2020 e janeiro de 2021, era difícil evitar, ainda assim tivemos um recrutamento e empenho dos serviços de saúde notável para resolver e dar resposta ao grande afluxo de doentes, e ao mesmo tempo uma organização admirável das vacinações, que continuamos a ver hoje em dia. Continuamos a ter muitos casos novos de Covid, mas com uma taxa muito baixa de hospitalização e cuidados intensivos comparativamente com o que tínhamos em janeiro (2021), e isso deve-se muito às vacinas.

Não posso deixar de dar uma palavra especial sobre a reação do povo português, que é tão ou mais admirável do que a organização dos serviços centrais: aderimos em massa àquilo que nos foi pedido, tanto a nível de sacrifícios – ficar em casa, trabalhar em casa e ter filhos em casa – como a nível de adesão a coisas que a muitas pessoas assusta, como as vacinas, mas que aderimos e estamos a ter o resultado que temos agora, em que apesar de termos muitas infeções, temos poucas complicações da Covid.

 

Foto: Joana Gonçalves/RR

Tivemos uma concentração dos recursos de saúde no combate à Covid, o que é natural numa situação de emergência. Falávamos há pouco da intenção da UCP de vir a formar no futuro em média 100 novos médicos por ano. Imagino que a maior parte, apesar da formação em inglês, queira ficar em Portugal. O país precisa, de facto, de mais médicos?

São sempre números muito difíceis de analisar. O que temos de analisar, mais do que se há médicos suficientes aqui ou ali, é se os cuidados são suficientes para a população, e quando vemos notícias e a realidade das listas de espera para cirurgias, consultas e até mesmo para as urgências hospitalares, é muito claro que precisamos de mais recursos.

É óbvio que 100 médicos por ano não vão resolver esse problema, que é também infraestrutural, e é um problema de todos os países, não é só português. Passámos a ter uma população mais envelhecida e com doenças mais crónicas e começámos a ter doenças novas, como a Covid – que vamos continuar a ter, vai ser uma carga adicional -, e temos de ajustar os nossos serviços de saúde a isso, nós como todo o mundo ocidental.

Os cuidados de saúde que temos de dar têm de ser maiores, temos de aumentar a dimensão, e isso passa por ter mais médicos, mas também mais enfermeiros, mais camas, mais infraestrutura. Portanto, sim, acho que os nossos 100 médicos por ano vão contribuir, mas sobretudo o que eu gostava era que o nosso contributo fosse para a medicina nacional, o ensino da medicina, para aumentar a colaboração entre faculdades, para estudar os métodos de ensino e vermos como é que podemos ensinar e formar melhores médicos a nível nacional. Essa é a maior aposta que temos.

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Agência ECCLESIA

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