Media/Portugal: «Ainda há muita vida nestas aldeias» – Luísa Pinto

Num dia em que se reúnem no Vaticano milhares de jornalistas, peritos e profissionais da comunicação social, para o primeiro grande evento do Ano Santo, o Jubileu da Comunicação, é convidada da Renascença e da Agência Ecclesia a jornalista Luísa Pinto, principal dinamizadora do projeto Rostos da Aldeia

Foto: RR/Paulo Teixeira

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

A ideia é conseguir, através de histórias positivas, contrariar o despovoamento. Podemos começar por explicar o projeto e saber que histórias procuram para contrariar esta tendência que parece, vou dizer, irreversível no nosso país?

Sim, tem essa tendência e o projeto Rostos da Aldeia surgiu precisamente para contrariar ou para lentificar essa tendência. Como jornalistas e profissionais da comunicação, sabemos o impacto que uma boa história, uma história bem contada pode ter. Neste caso, nós gostaríamos de contar as histórias das pessoas que vivem nestes sítios mais despovoados para, de alguma forma, incentivar as pessoas a perceberem que ainda há vida e ainda há muita vida nestas aldeias.

O propósito não era só voltar a falar que as aldeias estão abandonadas, que vive cada vez menos gente, que há cada vez menos crianças, era também mostrar que há pessoas que estão a regressar às aldeias. A pandemia acabou por também dinamizar um pouco essa tendência. Há pessoas que estão a regressar, estão a surgir projetos inovadores, há algum empreendedorismo e o que nós procuramos, somos um coletivo, era mostrar as comunidades que surgem nestes locais. Estes novos povoadores, vamos dizer assim, também ajudam, também amparam aos velhos que nunca quiseram sair e há novas comunidades que surgem, algumas multiculturais, acho que é inspirador para toda a gente perceber que há coisas boas que podem acontecer.

 

Olhando especificamente para o projeto, é uma plataforma onde se publicam histórias. Como é que é feita a recolha dos materiais e com que meios, com que equipa é que se faz?

O Rostos da Aldeia é feito com quatro pessoas: eu, que sou jornalista com carteira profissional e muitos anos num jornal nacional diário de experiência; um blogger de viagens, também fotógrafo, que trouxemos para este projeto para podermos mostrar aquela parte mais turística das pessoas, que querem ir visitar estas aldeias, estes territórios do interior e perceberem que não é só ir visitar um passadiço, se calhar contactar com a comunidade e perceber o que é que existe naquelas casas também era relevante – mas queríamos também dar esta vertente turística ao projeto, em termos de sugestões de roteiros; um videógrafo que também começou por ser jornalista e agora é um profissional da comunicação que trabalha nessas plataformas da fotografia e do vídeo; mais tarde entrou também um compositor, o Daniel Pereira Cristo, porque faz bandas sonoras originais para os nossos documentários, minidocumentários vamos chamar assim.

Portanto, o Rostos da Aldeia é uma plataforma multimédia, tem um site onde estão alojados textos meus, porque sou jornalista de imprensa, faço sobretudo reportagens e um pequeno podcast onde depois transformo as entrevistas num podcast que pertence à rede do Público, e fazemos um vídeo documental, que está no site. Tem sido amplificado nalguns festivais internacionais deste tipo de filmes e nós ficamos muito felizes por consegui-lo.

 

E têm boa reação por parte dos vossos interlocutores locais?

Temos, tem sido a melhor de todas e mesmo maravilhosa. Às vezes as pessoas não percebem porque é que, de repente, três ou quatro “caramelos” aterram ali naquela aldeia e esse é o nosso propósito de fazer um jornalismo mais lento. Eu, num jornal nacional, estava habituada a fazer aquelas reportagens de estar umas horas num sítio e depois ter de vir embora; aqui tentamos contrariar isso e estamos três, quatro, cinco dias, uma semana dentro da aldeia, a conhecer…

 

Sou de uma aldeia, uma aldeia que se está a desertificar, não há maneira de fazer de outra forma. A primeira coisa é vencer a desconfiança, não é?

Exatamente. Mas depois tu podes ter aliados, podes ter aliados normalmente o padre, ou o presidente da junta, ou o dono da tasca local, ou do café: sentas-te, pedes um naco de queijo, um copo de vinho, começas a conversar e depois as histórias aparecem umas atrás das outras. Nunca vou para uma aldeia, porque normalmente sou eu que faço a produção destes episódios e escolho os sítios que vamos documentar, nunca vou completamente às escuras, há sempre uma história ou outra que já nos levou àquele local, mas temos sempre a expectativa de que vamos encontrar muitas outras histórias e vamos sempre com esse propósito de ouvir as pessoas, conhecer as suas ansiedades, as suas vitórias e perceber as relações que existem. Tem sido sempre muito enriquecedor, porque de quase todas, ou de todas elas, vimos sempre surpreendidos até pela dinâmica que pode acontecer, mesmo quando vais a um sítio onde só sabes que vivem 20, 30 pessoas, que também já aconteceu, mesmo aí acabas por ser surpreendido pela comunidade que ali existe.

 

Fala-se muito de crise no jornalismo, questionando-se a falta de recursos e algumas opções editoriais. Há também crise de boas notícias?

Há muito, porque as boas notícias também acontecem, mas parece que temos mais tendência para mostrar o que está a acontecer de mal, que o que o mal é que é notícia, se as coisas estão a correr bem, isso era suposto, logo não é notícia… mas a verdade é que se nós não noticiarmos o que está a correr bem, e nesta cacofonia que existe, estamos a ser bombardeados por informação e desinformação por todo o lado, fechamos os olhos às coisas boas que estão a acontecer, ou que podem acontecer. Acho que é preciso dar voz também às coisas boas, para que cada um de nós perceba que pode também multiplicá-las que elas estão ao seu lado, que pode ajudar a que elas aconteçam também.

 

E qual é que tem sido a reação dos leitores ao projeto? Existe público para estas propostas mais fora da caixa, vou chamar assim?

Sim, eu acredito que sim, porque nós recebemos feedback de várias geografias e latitudes. No início era muito, se calhar, aquelas comunidades da saudade, não é, porque há muitos imigrantes fora, que quando percebiam que estávamos a contar algo da sua história, da sua proximidade geográfica…

 

E até se reviam nessas histórias…

Reviam-se completamente, e as primeiras reações eram quase todas daí, e tem sempre muito mais impacto de publicar-se uma fotografia, uma história de um velhinho, e de uma velha tradição, do que estas coisas, estes novos povoadores, gente que está a regressar e está muito ligada à terra, mas tem outras culturas que os mais antigos têm dificuldade em acolher. Têm dificuldade em perceber inicialmente, mas depois também percebem que afinal a raiz é comum, esta vontade de regressar à terra, de viver do que a terra dá, já sem aquele espírito de sacrifício e sobrevivência que havia nos anos 30, 40, 50, que levaram muitos portugueses a emigrar; agora é uma coisa completamente diferente, a agricultura não tem aquele peso que tinha no passado, e acaba por ser bonito ver estas histórias do mais velho ensinar o mais novo que quer aprender, o porquê de a cebola aqui não se dar, tudo isto acaba por ser bonito de retratar.

 

O projeto tem por objetivo valorizar os territórios que estão a ficar sem pessoas. Do contacto com a realidade, há alguma situação ou situações que possas descrever como mais difícil, mais dramática?

Eu acho que uma das condições essenciais para que as pessoas se fixem é, de facto, haver acessibilidade – não digo só rodoviária e geográfica, mas neste momento eu acho que em termos rodoviários e de acessibilidade já não há distâncias como havia antigamente, mesmo na aldeia mais remota.

 

O problema é que as acessibilidades, por norma, só funcionam para trazer as pessoas para o litoral…

Vamos acreditar que comece a inverter-se essa tendência: agora pensas que, afinal, há essa autoestrada para o litoral, mas essa autoestrada também me leva ao hospital mais próximo com mais facilidade e já não demoro três horas a lá chegar, só demoro hora e meia, vamos imaginar. Esse tipo de preocupações continua a ser muito relevante, como é óbvio, em termos de infraestruturas de saúde, de educação, sobretudo, mas também a possibilidade de em termos económicos as pessoas terem uma forma de sobreviverem e de se sustentarem. Agora há outro tipo de acessibilidades que começam a fazer toda a diferença, que são as acessibilidades ao nível da comunicação, porque se eu tiver uma boa rede de infraestrutura digital e de comunicações, é possível ter alguns negócios a partir do meio da Serra do Espinhal, promover o pequeno restaurante, a produção de mirtilos biológicos ou até as peças de artesanato, a cerâmica que decides ir fazer num local destes, no limite para o mundo todo, e é isso o que acontece.

 

Sem pessoas perdem-se tradições, perdem-se ofícios, até costumes gastronómicos. Esta revalorização do interior também pode passar por aí?

Eu acho que tem passado sobretudo por aí. Primeiro, não sei se é fruto da época e deste cansaço que cada um de nós individualmente vai sentido desta sobrecarga de comunicação, esta vida apressada que todos nós temos cada vez mais, sobretudo quem vive no litoral, mas creio que a pandemia ajudou a evidenciar essa necessidade de darmos uma forma mais lenta. Houve pessoas que descobriram que era possível viver de uma forma mais lenta e sem essa pressão de horários e começa a surgir uma janela de oportunidades, vamos dizer assim. Eu não posso dizer, porque não acredito nisso, que o fenómeno vai ser invertido e que agora vai haver um êxodo urbano para o interior, mas acredito que são estes pequenos movimentos que começam a pelo menos atrasar a tendência… eu acho que Portugal nunca vai, não irá sofrer os problemas que já sofre a Espanha e a Itália, em termos de despovoamento, o nosso território é muito mais pequeno, afinal da fronteira até ao litoral são 200 quilómetros, não é assim tanto, para alguns países é até ridículo falarmos nisso… mas começa a perceber-se cada vez mais que ali também pode ser possível e ali também há uma oportunidade, há mais qualidade de vida, certamente. Por exemplo, o acesso a atividades culturais: havia também aquela ideia de que é só no litoral que existem essas possibilidades, isso está a ser muito e ativamente contrariado por uma rede de instituições culturais que são muito ativas no interior, portanto eu acho que vão sendo dados os passos seguros e é por aí que as coisas começam a ser travadas.

 

Até porque os diferentes governos prometem planos e programas para a fixação de pessoas no interior do país, mas a realidade continua a demonstrar o contrário. Não estamos a saber encontrar as melhores soluções?

Acho que andamos à procura, mas isto acaba…

 

Há demasiado tempo?

Há demasiado tempo, mas não vamos desistir, acho eu, não vamos desistir, porque eu acho que algumas coisas têm funcionado. Normalmente não é no timing político e da campanha política e do anúncio de mais um programa que depois acaba por ser um tiro nos pés, eu acho que é mesmo a própria humanidade – que vai dando sinais tão terríveis num sentido, mas há focos que se vão iluminando no outro sentido. Eu acho que a nossa função, também como jornalistas, é ajudar a iluminar essas histórias positivas para que outros acreditem.

 

A componente política será apenas um acrescento àquilo que se pode obter por parte das pessoas, que essas sim podem deslocar-se…

Sim, porque na verdade as pessoas não vão mudar porque recebem do governo um incentivo de 2500 euros se mudarem para lá, não é por aí, é mesmo criar outro tipo de condições. Sobretudo, tenho reparado, o que ajuda as pessoas a fixarem-se nestes locais é mesmo haver um sentido de comunidade, que é exatamente o que as pessoas não têm ou têm cada vez menos nas cidades, não é?

 

A chegada de pessoas de outros países tem ajudado a atenuar estes efeitos de despovoamento? Do que conseguiram ver também nos vossos projetos, como é que as populações locais acolhem quem chega de fora?

Olha, nós fomos a uma aldeia até especificamente para ver como é que isso estava a acontecer porque havia esse propósito, é um projeto, o projeto LAR, em que estavam a tentar resolver dois problemas: por um lado, os migrantes que precisam de um teto e de um pedaço de terra para trabalhar e para sobreviver; do outro lado, estas aldeias que estão a ficar despovoadas. Foi muito interessante. Esse foi dos primeiros projetos que nós fizemos, foi na aldeia de Ima do Jarmelo, em que foram recuperadas casas que estavam abandonadas para receber famílias de migrantes e vinham do Uganda, eram quase todos africanos.

Foi muito engraçado falar com as pessoas locais, que explicaram que no início podiam não perceber muito “o que é que eles vinham para cá fazer?”. Eles que achavam que viver da terra era tão difícil e ninguém queria vir para ali, porque é que estavam a chegar aquelas pessoas? Nós fomos fazer esse trabalho três anos depois de o projeto ter arrancado e estava a correr muito bem, havia três famílias que estavam já incluídas na aldeia, que tinham lá as suas casas, os meninos estavam a ir para a escola, já aprendiam, já sabiam falar português e, portanto, esse pode ser um caminho. Obviamente que há sempre uma desconfiança inicial, mas quando se dá a oportunidade…

 

O Papa Francisco, ao manifestar a sua preocupação com o agravamento da crise demográfica, alerta também para a necessidade de práticas sociais inovadoras. Temos laboratórios de comunidade nas aldeias que podem inspirar estas soluções?

Temos, temos muito bons exemplos, até em Portugal. a última aldeia que nós retratamos no projeto, e que vos convido a visitar, é a aldeia de Cabreira do Côa, curiosamente também na Guarda. Haverá alguma razão, até por serem estes territórios mais próximos da fronteira e mais despovoados, que servem de melhor laboratório para estas experiências, mas já não é uma experiência porque já tem 25 anos, já é um projeto solidificado: é uma associação socioterapêutica que está a acolher pessoas com multideficiência, cognitiva, física, intelectual e tem essas pessoas a viver em unidades familiares dentro da aldeia. Hoje é muito bonito ver os moradores de quase 90 anos a dizer que são eles que lhes fazem companhia, eles passaram a ser habitantes daquela aldeia e têm o seu trabalho, fazem o seu mester, vamos dizer assim, e isto também permite reabilitar ofícios tradicionais na área da carpintaria, da tecelagem, da olharia. Estes cidadãos aprendem estes ofícios e vendem o produto do seu trabalho, porque o trabalho dignifica e como diz a mentora do projeto, toda a gente tem capacidade de fazer alguma coisa: pode demorar uma semana, um mês, um ano, mas toda a gente tem essa capacidade, desde que lhe seja dada oportunidade. Foi uma das melhores experiências que eu vivi numa aldeia, portanto as coisas funcionam.

 

Na sociedade digitalizada em que vivemos, de hipervelocidade, de excesso de informação e desinformação, estes ritmos de uma aldeia são uma alternativa para uma vida mais lenta e, no caso dos jornalistas, para uma comunicação mais atenta a cada pessoa?

Eu acredito, mesmo que sim, e tenho tido muitos desafios, nestas aldeias por onde temos andado. Se calhar posso levantar o véu para a próxima…

 

Nós gostamos disso…

Estamos neste momento em produção e é a aldeia de Soajo, muito conhecida, a aldeia dos espigueiros, vamos dizer assim. Mas nós estamos a procurar fazer um episódio em que quase não falamos dos espigueiros e não vamos falar de uma aldeia comunitária porque ela já não é uma aldeia comunitária como era antigamente – em que toda a aldeia usava aqueles espigueiros para guardar o milho e até já não se faz pão em fornos comunitários e todas essas coisas.

Ainda há quem faça pão, quem plante o milho, há quem tenha chegado e queira aprender como é que se fazem todas essas culturas na terra de uma nova forma, mas há também – e é isso que me agrada nesta comunidade -, gente da cidade que quis ir viver para lá e trabalha para grandes multinacionais, norte-americanas, a partir de uma casinha que recuperou no Soajo porque já tem condições de fibra ótica para fazer os downloads que é preciso e essas coisas que a modernidade exige. Ao mesmo tempo toda a Serra de Soajo para fazer as coisas outdoor que gosta de fazer, faz o seu horário de trabalho, tem a mercearia,  tem o pequeno restaurante, o café, já se conhecem todos e toda a gente, não é? E dizem que vivem ali muito mais felizes com essa comunidade que tem holandeses, portugueses, imigrantes que regressaram, pessoas que vêm de outras zonas do país e que querem ali testar uma nova forma de vida. É ali um laboratório também, se quisermos, de tantas valências da sociedade atual e da futura e que convivem harmoniosamente, parece-me que é um bom exemplo a dar.

 

Olhando para a construção de novos espaços mediáticos, achas que projetos como este podem ajudar o jornalismo a recuperar o seu papel de mediação, também em defesa da memória comum e do valor de cada pessoa?

Eu só te posso responder por mim e digo-te seguramente que sim, acho que fazem falta mais projetos como este. Era difícil manter um projeto, se calhar, com este tempo, com este espaço para existir dentro da redação de um jornal nacional, por isso sim, mas autonomamente, não sem algumas dificuldades, mas vamos conseguindo ter apoios para manter um projeto como este, que permite que continue a haver este jornalismo lento, este jornalismo que dignifica, este jornalismo que ilumina, se quiseres.

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