Quem já não é jovem, sabe que só há duas direcções principais à saída da nossa porta da vida, bem como de todas as portas que dão sobre os caminhos do mundo: – A dos vencedores e a dos vencidos.
Esta é a história do que aconteceu há muito tempo a um vencido que andava pelos caminhos do mundo, quando ainda gemiam as velas dos derradeiros moinhos de vento sobre os montes em redor da cidade, a trabalharem de noite, às escondidas, a ver se escapavam à absorção da grande moagem mecânica dos vencedores, que na urbe iam empunhando com frieza calculista a bandeira do “progresso”, às vezes pisando e empurrando tudo à sua volta…
Fazendo dos suspiros de cansaço largas passadas na negra e fria noite, o maltês de rosto jovem e agoniado, media a distância, e espelhava-lhe nos olhos a grande solidão transtagana, tão longa como o caminho sob as suas botas esfoladas …
Na prolongada planície solitária, sem uma cabana abandonada onde se acoite ou muro de herdade onde encoste os ossos a proteger-se do vento uivante, de forma a puxar lume ao cigarro de onça, o jovem maltês, que já falava sozinho como os velhos, ia discernindo que, desde que começara a ajuizar e a saber que existia como gente, nunca conhecera ninguém que lhe fosse próximo, parente ou qualquer relacionamento de pessoa, com a sua obrigação de acolhimento. Até as ervas rasteiras, recamadas de orvalho, têm a terra onde se agarram… Só ele vivia, mordendo e cuspindo o pó da estrada, esquecido de gente, desenraizado de tudo e todos. Nem casa, nem nada, apenas habitava ao “Deus queira”, aquela manta surrada que trazia ao ombro… Só!
O maltês parou perto de um monte de estevas, a recapitular o fôlego. Já não tombava chuva, a estrada era um rio de lama escura, nenhuma indicação lhe apontava povoado, lugar, monte. Com as mãos no rosto por instantes, como se fosse chorar, limpou a água que lhe escorria do chapéu. Olhou de novo a lonjura calamitosa, a incomodidade nocturna e, sem dar ouvidos à voz íntima que lhe dizia para voltar atrás, o jovem maltês continuou a jornada… Viera de muito longe, todo o “santo” dia caminhara por atalhos e veredas, evitando os cães dos montes dos grandes lavradores, amestrados a ladrar e morder em maltrapilhos, sem ter de manejar o seu bordão de faia, como último recurso. Só tinha parado num sítio pendurado nas traseiras de um cabeço, com uma casa desconjuntada a encimá-lo, onde pediu o agasalho da lareira por minutos e a esmola de pedaço de pão. Apareceu-lhe uma velha à porta, depois de o mirar de alto a baixo mansamente e de lhe dizer «Donde vem, vossemecê?», mandou-o entrar e deu-lhe uma tigela de açorda e um punhado de azeitonas… Aqueceu-se um pouco ao lume da chaminé, agradeceu a esmola da velha, despediu-se e partiu de novo, estrada fora, ao desamparo, como maltês que era…
Não costuma cair neve no Alentejo, que essa brancura de montra de loja no Natal, não baptiza campos rasos e desertos, todavia o frio é polar e aflige o maltês cada vez mais… Mas quem lhe vai dar guarida? Quem acredita na sua pacífica “maneira de ser”?
Dizem que no meio da planície, junto a uma encruzilhada aparece sempre o albergue de uma «venda» a salvar do desespero um homem velho e abandonado. Aí, noutros tempos, batiam à porta ao cair da noite os malteses e os salteadores de estrada. «Quem é?», diziam de dentro. E de fora respondia uma voz que nasceu na desgraça e aprendeu a rentabilizar as lágrimas e o tom suplicante: «É um pobre de Cristo que vem estafado…!» … O dono da «venda» agarrava então no chavão que pesava quilos e abria a porta ao valdevinos. «Que o trás por cá?». «Venho de muito longe, e peço a vossemecê a esmola de uma dormida no palheiro…». Mas quem, pedia acossado pela tempestade, era um maltês, um contrabandista em maré de azar, um fugido das cadeias, um bandoleiro dos caminhos, como o Zé do Telhado? Quem ia saber, não nos dirão?! …
O dono da «venda» fica entre portas, a seguir com o olhar no escuro as «maneiras» do homem, a caminho do palheiro… É que já uma vez teve à sua mesa um assassino temeroso que por causa de um conto de réis cortou a garganta a um pobre zagal, que vivia entontecido pelas estrelas e bêbado de solidão. O assassino parecia um animal quando a guarda o apanhou: os olhos espantados, os dentes roídos por um micróbio qualquer, a voz atraiçoada pelos soluços que vinham do fundo barbarizado da sua alma, e uma surpresa de louco no seu rosto, de quem não sabe mais o que fez ou deixou de fazer!
Por isso, nesta triste noite de Natal, o dono da «venda», o senhor Pinelas, está à espreita, a ver se o maltês, homem ainda novo, que lhe bateu à porta, não tem a fala mansa como o louco assassino de então. «Que o trás por cá?». E o maltês tremendo, esfregando as mãos uma na outra: «O frio, meu senhor… Venho pedir a esmola de uma dormida no palheiro…». Como o outro, Santo Deus… Mas é Natal, pensou o Pinelas, nem todos os cordeiros serão lobos disfarçados…
«Entre lá, homem!». E quando o senhor Pinelas, à luz do “petromax”, iluminou cabeça do maltês, verificando que era ainda um homem novo, ao mesmo tempo que sentiu uma longínqua familiaridade com o infeliz, apareceu-lhe por detrás a alucinada da Mariana, a mulher, … «Desde que me conheço, sou maltês, meu senhor. Tenho andado por todo o lado empurrado pelo destino. Conheço cobras e lagartos, ervas boas para chás que curam todo o mal… Faço qualquer trabalho da lavoura… Mas no Inverno não há trabalho… Há só o frio, que enregela a carne e encolhe os ossos, e que trás a morte aos pobres como eu… Tenha piedade, deixe-me ao menos dormir ali no palheiro…».
A mulher indagando do desconhecido com o olhar, espreitou o tempo, por entre portas, e viu a negra noite e o antigo vento uivante, uh! uh! uh!, mordendo os ramos das oliveiras, arranhando as paredes da casa, e esbofeteando a cara aos que o espreitavam… Do fundo da sua alma, Mariana gritou, com os olhos tostados pelo delírio «É ele! É ele! – O meu rico menino voltou!»… Pinelas, embaraçado, viu-se obrigado a dizer ao maltês: «Não faça caso… A coitada endoidou, desde que lhe disseram que o filho morreu na guerra do ultramar!» … Disse tudo isto já com os olhos rasos de lágrimas…
«Vossemecê vem por bem?». E o maltês: «Sim, senhora! Sou apenas um pobre maltês! Mas curo terçãs com ervas do campo. Venho perdido com o nevoeiro e já não tenho forças para caminhar…». E Mariana: «Entra, Manel, vieste passar o Natal com a gente, não é verdade?!» … E Pinelas para a mulher: «Mariana, para que é isso, o nosso filho morreu na guerra, em África!». E a mulher: «E eu não sei?! O que interessa é que agora está cá! Entra Manel, entra…». Pinelas abriu mais a porta e o maltês entrou, acompanhado de uma rabanada de vento. Súbito, vinda não se sabe de onde, uma brisa morna espevitou a lareira, e a casa de entrada ficou mais iluminada.
Joaquim Palminha Silva
*Maltês – Termo que designava um trabalhador rural sui generis no Alentejo. Espécie de assalariado nómada, trabalhando onde queria e se a jorna lhe agradava. Não estava muito tempo num lugar e, normalmente, não fazia sociedade com outros rurais. Vivendo só, sem moradia conhecida, não era de seu natural dócil face às tiranias locais.