Mais sociedade para melhor Estado

Guilherme d´Oliveira Martins, um dos coordenadores da Semana Social 2012, apresenta em entrevista à Agência ECCLESIA as principais preocupações presentes no programa do evento, num momento de crise económica e desafios políticos para o futuro de Portugal.

Entre 22 e 25 de novembro, no Porto, terá lugar a próxima sessão das semanas sociais, subordinada ao tema “Estado Social e Sociedade Solidária”. Segundo a organização, trata-se de uma problemática premente, atendendo à conjuntura atual e ao reconhecimento da importância da intervenção da Igreja nas questões sociais.

 

Agência ECCLESIA (AE) – «Estado Social e Sociedade Solidária» é o tema da semana social: este acontece devido ao debate em curso na opinião pública em Portugal?

Guilherme d’ Oliveira Martins (GOM) – Esta reflexão acontece não apenas em Portugal, mas em toda a Europa e no mundo. Estes temas estão todos na ordem do dia e, em especial, em Portugal.

 

AE – Então não foram colocados pelo governo português?

GOM – Não. O que estamos, neste momento, a considerar é que os governos europeus cada vez mais tomam consciência de que este tema é atual. E vejamos os dois termos da semana social de 2012: «Estado Social» que trata no fundo das responsabilidades do Estado como entidade pública, mas simultaneamente o apelo à solidariedade e à esperança dos cidadãos. Muitas vezes se diz, e bem, que o Estado ganhou uma dimensão excessiva. É verdade, mas não se deve cair na tentação de substituir esse Estado pelo fundamentalismo do mercado ou pela teologia do mercado. Devemos ligar estes dois elementos: O Estado deve ser modesto, sóbrio, que combate o desperdício, que previne a poupança, mas, simultaneamente, tem de ser um Estado que dá espaço, não ao egoísmo avarento, mas através de um forte apelo solidário à cooperação.

 

AE – Que contributos espera dos debates da semana social para esta refundação ou redefinição do estado social?

GOM – A Doutrina Social da Igreja (DSI) é, hoje, mais atual do que nunca. Não é um projeto ideológico, mas um projeto transversal a todas as famílias sociais e políticas. Este aspeto é, particularmente, importante. Não se trata de um debate dos cristãos com os cristãos, mas um debate com todos os homens e mulheres de boa vontade, como – antes de todos – João XXIII pretendeu na linha, naturalmente, da Boa Nova.

É indispensável percebermos que aquilo de que estamos a falar não é tanto de uma refundação do Estado, mas sim de por as pessoas no centro da sociedade. Esse aspeto é fundamental, temos problemas novos e que não tínhamos anteriormente. Problemas ligados às taxas de natalidade, à demografia, ao isolamento, à solidão, ao peso e à importância da terceira idade e à falta de instrumentos de proximidade. Estas redes de proximidade são absolutamente fundamentais porque não há estado social, nem estado democrático, sem cooperação e sem uma forte intervenção dos cidadãos.

 

[[v,d,3600,]]AE – A DSI sublinha que as pessoas devem estar colocadas no centro, mas o debate político em curso não coloca o tónico nesta vertente: por causa do mercado e pela incapacidade de resposta que o Estado vai tendo?

GOM – A globalização é um dado com que temos de trabalhar e aprofundar. No entanto, a globalização não nos pode fazer esquecer que o fundamentalismo do mercado não resolve os problemas. Não podemos continuar indiferentes relativamente à existência de paraísos fiscais que retiram da justiça distributiva um conjunto muito importante de recursos, além de alimentarem a corrupção e o mercado clandestino.

 

AE – Este «não ficar indiferente», o que significa?

GOM –Significa tomar medidas na Europa. Significa haver mais solidariedade política e mais governo económico. Significa dizer que todos precisamos de dar as mãos e salvaguardar as complementaridades. Um cristão que nos faz muita falta – morreu prematuramente, António de Sousa Franco – costumava dizer que “mais do que as convergências nominais e formais, temos de falar convergências humanas e sociais”. Nos anos 80, muitos, disseram: “A desigualdade se for feita com progresso pode ser tolerada”. Hoje, sabemos que as desigualdades se agravaram e que a desigualdade é sempre negativa. Desfavorece a coesão e favorece a indiferença e o egoísmo.

É indispensável haver mais equidade. Igualdade não é igualitarismo. A Igreja sempre disse que igualdade é tratar diferentemente o que é diferente.

 

AE – Nesta problemática dos paraísos fiscais tratar-se-ia de não contornar a justa tributação que estes deveriam ter?

GOM – O Conselho Pontifício Justiça e Paz acaba de dizer, com muita veemência, que é indispensável criar uma autoridade internacional que combata e contrarie essas formas terríveis de corrupção e injustiça que é haver espaços fora da lei. Esses espaços favorecem a violência, a corrupção e o comércio das armas e da droga. Isso é, extraordinariamente, negativo. Sabemos que a 11 de Setembro de 2001 – o ataque às torres gémeas em Nova Iorque (EUA) – tudo se passou fora da lei e tudo se passou nesses paraísos fiscais.

 

AE – Os paraísos fiscais são necessários ou deve acabar-se com eles?

GOM –É necessário e indispensável acabar com eles. Digo isto com clareza, mas sabendo que é algo de muito difícil.

 

AE – O mercado iria permitir esse fim?

GOM –Precisamos de regulação. De acompanhar para proteger a confiança dos cidadãos nestes instrumentos. Estado social significa que este deve ser capaz de regular, capaz de criar condições de coesão, de confiança e assegurar a justiça distributiva.

Em relação à sociedade solidária – o segundo elemento de reflexão na semana social – significa que os cidadãos, hoje, com o problema terrível de desemprego e de ameaça a irmãos que não têm o essencial das suas subsistências, é indispensável dizer que há que criar condições para a cooperação e para a criatividade.

A crise financeira deveu-se à prevalência da especulação no lugar da criatividade. Este aspeto é tremendo e a Igreja tem uma responsabilidade e uma voz. Não é por acaso que este ano a semana social tem este tema. Não se trata de discutir uma questão conjuntural ou um problema ligado à conjuntura nacional. Trata-se de assumir uma responsabilidade da sociedade.

 

AE – Que importância terá tido a permanência do presidente dos Estados Unidos da América, Barack Obama, para o debate sobre as funções do Estado e da reforma do Estado Social?

GOM – É um sinal puramente conjuntural no qual não devemos atermo-nos exclusivamente. É evidente que o presidente Obama tem uma agenda social, mas neste momento a Europa tem de ganhar a sua própria agenda social. Há um contexto favorável. Gostei muito de ouvir o discurso de Obama quando soube dos resultados eleitorais. Foi um discurso de esperança e positivo. Este tem de ser desenvolvido e prolongado pelos cidadãos. Não se trata de propor a esperança pela esperança. Trata-se de dizer que há esperança porque há vontade e, sobretudo, cuidado e atenção. Não podemos ser indiferentes ao que se passa na sociedade.

Temos de ter consciência que a satisfação das necessidades tem de ser baseada nos recursos de que dispomos.

 

AE – Este tempo é de reformas profundas. Que palavra, atitude, ação espera da Igreja Católica?

GOM – Uma ação positiva e mobilizadora. O ensinamento do evangelho é profundamente atual. Não podemos deixar de responder a quem nos interpela. É essa a responsabilidade social. É extremamente importante que as estratégias de combate à pobreza sejam inteligentes. Não respostas pontuais.

Há experiências positivas como o Banco Alimentar Contra a Fome. Constitui um exemplo muito importante porque os seus desenvolvimentos têm sido fundamentais. A preocupação da semana social não é teorizar nem sobre o Estado social nem sobre a sociedade solidária. É trazermos os testemunhos e experiências. É indispensável prolongar, desenvolver e multiplicar essas experiências.

 

AE – Na semana social que temas são propostos a debate?

GOM – Temas simples. Antes de mais, o desemprego. É necessário criar emprego e favorecer o desenvolvimento. Na linha da DSI, precisamos de uma sociedade sóbria e modesta e que adeque os seus recursos às finalidades.

Depois a pobreza e a desigualdade. O agravamento das desigualdades gera pobreza. É necessário ter respostas sociais eficazes.

Depois a solidariedade entre gerações. A questão da solidão dos mais idosos, mas também os armazéns de crianças e a necessidade de favorecer a educação da infância e pré-escolar.

A questão caridade também estará em destaque. A caridade como cuidado. Só compreendemos a caridade a partir da conceção da teologia da amizade e do amor.

A reformulação do Estado social também será abordada e os novos riscos sociais, a sustentabilidade e a justiça. A disciplina financeira e orçamental é fundamental.

 

AE – Estes desafios não têm como obstáculos o combate à despesa estatal?

GOM – A despesa do Estado tem de ser regulada e disciplinada. Não se pode sacrificar a saúde, a educação e formação e a proteção dos doentes e reformados. Há um conjunto de elementos que não podem ser esquecidos quando se fala do Estado social.

 

AE – Não sacrificar significa não mexer?

GOM – Significa responder de forma inteligente às situações diferentes de injustiça. Não se pode deixar de encontrar novas formas de ação. As instituições particulares de solidariedade social (IPSS) têm a maior importância. São instituições de proximidade e que funcionam junto das pessoas. Mas estas IPSS têm de se reformar e melhorar a sua ação. O Estado tem de compreender que só pode desempenhar a sua função em articulação estreita com a sociedade.

 

AE – O programa da semana social termina com uma chave de esperança e apela a novos estilos de vida?

GOM – Aqui, a palavra esperança é de responsabilidade. Só haverá esperança se nos dispusermos a arregaçar as mangas, trabalhar e estar atentos.

PTE/LFS

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Agência ECCLESIA

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