Mais além – Razão e medida do desenvolvimento que a técnica não pode dar

Henrique Pinto "Em cada conhecimento e em cada acto de amor, a alma do homem experimenta um "extra" que se assemelha muito a um dom recebido, a uma altura para a qual nos sentimos atraídos" (Caritas in Veritate, nº  77)

"Enquanto os pobres do um do mundo batem às portas da opulência, o mundo rico corre o risco de deixar de ouvir tais apelos à sua porta por causa de uma consciência já incapaz de reconhecer o humano" (Caritas in Veritate, nº 75)

O que me ocorre defender de imediato, concluída a leitura da mais recente encíclica de Bento XVI, Caritas in Veritate, é que apesar de se dirigir sobretudo à hierarquia e fiéis da Igreja Católica, ela devia ser seriamente considerada por toda a gente. E não penso apenas nos que se têm por pessoas de boa vontade, mas nos que sabem reconhecer a sua contingência, o enigma do existir e o "mais" que nos excede, também em véspera de eleições.

Pela mão do Papa, a Igreja reconhece não ter soluções técnicas para oferecer, como sublinha não ser sua intenção "imiscuir-se na política dos Estados" (nº 9). Mas num serviço à "caridade na verdade", testemunhada por Jesus de Nazaré, e em linha de continuidade com o pensamento socioeconómico cultural e político dos seus últimos Sumos Pontífices, a Igreja oferece à globalização e ao momento de actual crise económica e financeira, um elaborado, amplo e importante tratado sobre o desenvolvimento humano integral. Da distribuição da riqueza ao respeito pela vida, do ambiente à urgência de uma reforma da ONU, este trabalho de Bento XVI denuncia com grande actualidade, clareza e rigor a ausência de verdade no ser humano, chamado ao desenvolvimento ou à superação de si mesmo pela prática da "caritas" nascida da verdade inerente ao incondicional reconhecimento do outro.

No entanto, retenho que a Carta Encíclica, mesmo do ponto de vista de quem se tem por cristão católico, não deixa de ter as suas dificuldades. No seu centro está uma determinada ideia de "verdade cristã" e esta, num tempo dito pós-moderno, não será certamente poupada aos mais variados questionamentos.

Na verdade, ao reconhecer que o mercado não existe em estado puro (nº 36), Bento XVI, parece esquecer que também a verdade dita "dom permanente de Deus" (nº 78), ou "projecto divino" (nº 57), carece de pureza, precisamente porque refém de infinitos e intermináveis processos de interpretação – ainda que para travar esta condição do conhecimento humano, a Igreja invoque uma assistência privilegiada do "Espírito de Deus" e, no seu seguimento, a infalibilidade do seu governo em questões de fé e moral. Por isso, talvez não seja mesmo a não aceitação da "caridade na verdade", ou a ausência de verdade, de confiança e de amor, como diz Bento XVI, a razão por que "não há consciência e responsabilidade social" "e a actividade social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores na sociedade" (nº 5). Se assim fosse, talvez a própria história do Cristianismo não estivesse tão manchada de vergonhosa violência e morte.

Preocupa o actual Papa o relativismo e o niilismo. Por isso, ele não cessa de defender um "fundamento", a "metafísica" e de sustentar que nem todas as culturas e religiões são iguais. Mas sublinho, uma vez mais, que talvez não seja mesmo a ausência de um princípio e fim último da história humana a razão da "trágica reclusão do homem em si próprio" (nº 53).

Ainda que não partilhem da "caridade na verdade" que serve de alicerce ao que Bento XVI tem para dizer sobre o desenvolvimento humano integral, diversos pensadores, ao contribuírem para uma rigorosa e meticulosa ontologia do presente, "libertaram" do mais profundo, solitário e abandonado cárcere uma realidade a que se tem dado o nome de "tout'Autre" (em francês) ou de radical Alteridade, e ao fazê-lo, o seu incondicional respeito tem-se vindo a tornar "forma" inevitável do agir humano. Apesar de Bento XVI não se render a uma história sem um "Fundamento Último", ainda que totalmente aberta a um "pensamento do exterior", defendida mesmo em ambientes académicos católicos, não deixa de ser curioso verificar que o Sumo Pontífice começa por falar num rosto, Jesus Cristo, passando pelo Deus Trino, para nas suas derradeiras páginas falar de um "extra" que o "conhecido esconde", de um "dom" de uma "altura", de um "mais além" para a qual o desejo de "ser mais" tende, mas, nestas expressões, já sem rosto (nº 77). Neste esvaziamento, que vai da afirmação de um nome na direcção de algo situado para lá dele, Bento XVI não só parece desejar dialogar com uma religião sem religião, uma teologia sem teologia, numa relação aberta e interdisciplinar, como consegue com que os termos da sua encíclica sejam reconhecidos por quem hoje não absolutiza certamente uma particular transcendência mas vive o cuidado pelo outro como transformação pessoal, numa dedicação ao MAIS que excede o momento presente e a história humana não esgota.

No centro da Caritas in Veritate e no centro da vida de quem se vive numa total dedicação incondicional ao tout'Autre, está a finitude humana, a consciência da interdependência de tudo quanto existe e por conseguinte, a certeza de que o Bem, quando se deseja e constrói, não pode excluir nada nem ninguém e que, como tal, só pode ser Comum.

Henrique Pinto, Associação Cais

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