No arranque da Semana Nacional Cáritas 2025 é convidado da Renascença e da ECCLESIA Duarte Pacheco, o presidente da Cáritas Diocesana do Funchal

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (ECCLESIA)
A Cáritas Diocesana do Funchal tem vindo a apoiar centenas de famílias nos últimos anos. Quais são as áreas de maior fragilidade social que a instituição identifica?
Em relação aos dados, concretamente aos números, nós focamos às vezes muito nos números e esquecemos um pouco a essência do que está por trás. Em relação aos números, desde 2022 a Cáritas do Funchal tem registado uma ligeira diminuição dos novos pedidos de apoio e isto está relacionado um pouco com a colocação das pessoas no mercado de trabalho, uma vez que existe alguma carência de mão de obra cá na região.
Há alguma bolsa de pobreza, alguma zona específica da ilha que gera maior preocupação?
Não. É notório que há uma zona onde os bairros sociais normalmente estão associados a pessoas com menos rendimentos, não é uma regra, mas estão associados um pouco a esta situação, poderá ser, mas mais problemático, a zona de Câmara de Lobos e a zona da Camacha, mas não é exclusivo, centra-se ali porque há alguns bairros sociais de alguma dimensão.
Do conhecimento que há da realidade, pode dizer-se que há fome no arquipélago e, se isso acontecer, onde é que se verifica o problema?
Eu vou talvez ser um pouco atrevido em relação a essa resposta, eu acho que fome não existe. Agora, existe um conjunto de casos bastante frágeis. Fome propriamente, literalmente no sentido do termo, não existe. Existem casos muito graves, muito complicados, isso sim, existem.
Uma das áreas que tem gerado maior preocupação é da habitação. A pressão turística agrava o problema na Madeira?
Faz parte de um todo, mas acho que não é o fator número um. De Norte a Sul, e até já é um problema que ultrapassa o nosso país, a Europa também está começando a ter esse problema. A falta de habitação, os elevados custos com a mesma, gera um problema grave e falta uma família média, por exemplo, a grande fatia do orçamento familiar é despendido para a habitação, quer com empréstimo, quer com o arrendamento se for o caso. Portanto, às vezes vou buscar este exemplo, que é muito fácil de visibilizar o que estou a dizer. Onde, em média, as pessoas estão a ganhar um salário mínimo, dois salários mínimos, tirando as despesas básicas, o que é que sobra? E são pessoas que estão a precisar de ajuda, não propriamente têm o seu salário, têm o seu vencimento, têm o seu emprego, mas o fruto desse trabalho não responde às necessidades do dia a dia, devido ao elevado custo de vida.
E têm sido solicitados para ajudar nessa questão da habitação, nomeadamente no pagamento de rendas?
Sim, mas nós em princípio não temos disponibilidade para pagar rendas, porque o dinheiro não abona na nossa missão, digamos assim, mas tentamos sempre em conjunto arranjar uma solução, ou articulando com as entidades públicas que têm a tutela da habitação e as câmaras municipais. Ou então, na nossa ação direta, por exemplo, através da atribuição de um cabaz. A pessoa pode de facto de não precisar alimentos, porque o rendimento ainda dá para os alimentos, mas nós ao atribuirmos um cabaz àquela família, portanto é uma forma também de ajudar. Porque ela irá ficar, para aí, 50 ou 60 euros livres para ser aplicado num outro custo. E aqui, ao ser aplicado num outro custo, é num custo de necessidade, não é num supérfluo.
Os problemas sociais que vamos identificando têm sido agravados pela sucessão de crises políticas aí na Madeira?
Eu julgo que tem um fator que poderá ter essa conotação. É natural que, se estamos a meio de uma legislatura, se há projetos que estão em vias de desenvolvimento, com estas alterações do Governo, é natural que estes projetos vão regredir um pouco, vão demorar mais um tempo para se ter resposta.
Há políticas sociais que se perderam nesse emaranhado eleitoral?
Eu julgo que sim, eu julgo que sim.
Certamente tem muita interação com pessoas que vão acompanhando, o que é se vai dizendo sobre esta instabilidade que afeta o arquipélago?
Esta instabilidade já ultrapassou a região, já começou a nível nacional também, e o problema praticamente reside na mesma situação. É lógico que as pessoas votam, acreditam no plano apresentado, e depois por questões mais particulares, não propriamente pela não execução das políticas assumidas e dos planos apresentados, vamos perdendo no tempo. E é lógico que as pessoas estão à espera de que se resolvam as suas situações pessoais, de acordo com o que um dado plano de governo, e que com estes entraves sucessivos as coisas ficam por fazer, e as pessoas cada vez mais ficam na situação, em situação difícil, e defraudadas com o ideal que pensavam que iria acontecer.
A Madeira sempre foi uma terra de imigração, e nos últimos anos tem vindo a receber muitas pessoas de fora, muitas delas pessoas que deixaram a Venezuela, por causa da crise política e social no país, e também muitos outros imigrantes. É uma situação que traz novos desafios a quem está no terreno?
Traz, traz, e por acaso, não neste momento, mas há uns dois ou três anos atrás, em relação às pessoas que imigraram para a Venezuela, que regressaram- e regressou assim um número considerável ainda – tivemos alguma dificuldade, porque essas pessoas chegaram sem nada, e foram pessoas defraudadas.
Sim, não se pode propriamente falar de um regresso, porque tinham a vida toda organizada fora da região…
Por acaso, e devido um pouco a este crescimento económico que a região tem tido, as pessoas começaram a ser integradas socialmente e a nível de trabalho, como falava há pouco, à falta de mão de obra, as pessoas foram à luta, algumas criaram os seus próprios negócios, e aí a Cáritas deixou de apoiar essas pessoas. Há uma coisa aqui que eu tenho que registar, que é, já ando há algum tempo nesta área da intervenção social, e raramente as pessoas dirigem um agradecimento, e aqui destaco, e faço questão de destacar, que os imigrantes que nós apoiamos da Venezuela, quando acabaram o processo de apoio, vieram-nos bater à porta e agradecer.
Acho isto interessante, e também temos de falar nisto no reconhecimento, não da Cáritas, esta situação não é só da Cáritas, outras IPSS também que estão no terreno partilham da mesma opinião, mas é de salientar este agradecer. Nós não estamos aqui à espera de um agradecimento. Mas cai bem, e simboliza alguma confiança e algum trabalho feito, é um pouco nesta perspetiva.
Este fluxo migratório não se esgota nesta população de que temos vindo a falar, há também outras pessoas que vêm de países, até de regiões como as que estão agora a chegar ao Portugal continental, essa imigração nova tem também alguns focos de pobreza ou dificuldades aliadas a essa chegada a um sítio completamente desconhecido?
Eu acho que por enquanto não é visível essa situação. As pessoas que estão cá estão quase todas ligadas ao mundo do trabalho, têm o seu rendimento, pouco ou muito, mas têm o seu rendimento. Agora, julgo que poderá ser algum problema no espaço, talvez curto tempo, é a parte com a habitação, e isto temos de ter muito cuidado, e recentemente tive uma reunião de trabalho com a direção regional que tem a tutela das comunidades, e estamos preocupados um pouco com isso, porque uma vez que não existe habitação, as pessoas estão a ficar aí em alguns sítios, possivelmente, não estou a afirmar, estou a supor, possivelmente poderão até ser exploradas financeiramente em relação ao custo com as habitações. Em que condições é que vivem, se estão integradas ou não. Acho que passam a estar integradas, porque nós vemos no Funchal algumas pessoas circularem a fazer a sua vida, é natural que estão associados aos grupos da mesma etnia, é lógico, porque falam a mesma língua, têm alguma proximidade em comum, mas acho que é preciso termos muito cuidado em que condições habitacionais é que essas pessoas estão a viver, para isto não se tornar um problema grave. Por enquanto a situação é controlável, mas temos de ter este cuidado, que não é normal aqui na região nós termos esta realidade, e julgo passará a ser talvez mais permanente esta situação, dado a falta de mão de obra em todas as áreas laborais. Nós temos falta cá na região, aqui destaca nomeadamente o boom de obras e a parte da hotelaria que há muita falta de mão de obra.
Muitos dos que nos ouvem terão ficado impressionados com as mudanças que aconteceram no arquipélago, e ainda agora está a falar dos empreendimentos que aí se verificam, e com tudo o que tem ocorrido ao longo das últimas décadas. Esse desenvolvimento chegou a todos ou continua a haver grandes assimetrias na região?
Vou ser um pouco pragmático. Eu acho que chega a todos, pode não chegar de forma direta, mas o desenvolvimento contribui para todos, quer a nível laboral, começando pela primeira instância, passa a haver mais postos de trabalho e todos nós precisamos trabalhar, quer a nível cultural, porque passamos a conhecer novas realidades que estávamos limitados, ainda mais sendo uma ilha com alguma limitação de acesso é a natural que há coisas que não estávamos habituados, que vamos ter que saber viver com elas, e também ganhar uma experiência com essa realidade. Por isso é que eu acho que é bom termos esta diversidade, agora tem de ser acutelada à medida que as coisas vão acontecendo, não vamos abrir portas de forma espontânea.
Esse pleno emprego de que falava há instantes, teve reflexo ao nível da diminuição dos pedidos de ajuda da Cáritas….
Exatamente. Nós analisamos praticamente ao pormenor porque é que havia esta diminuição ao longo dos anos (dos pedidos de ajuda) e quase todos estavam relacionados com o facto das pessoas estarem no mundo do trabalho.
E se houver uma crise, por exemplo, no setor do turismo, poderá ser fatal para muitos os empregos?
É lógico que poderá ser, porque nós temos imensas atividades que estão todas elas ligadas à parte turística, desde os hotéis, restaurantes, alojamentos locais e tudo mais, e várias empresas que prestam serviços a estas instituições, portanto, é lógico que poderá ser um pedaço dramático esta situação. E aliás, comparando com uma situação não muito longe, que foi com o período da pandemia, onde tudo parou.
Portanto, de facto foi grave esta situação e é natural, havendo qualquer mexida no turismo, todos nós iremos sentir esta dificuldade depois da resposta e de orientar estas pessoas.
Há muita diferença em termos de população, há regiões a ficar abandonadas, há uma concentração de população muito grande em determinados locais, sobretudo à volta da zona do Funchal. Pergunto-lhe se é um problema que prevê que vá continuar e se há um risco real de despovoamento, um bocado idêntico ao que tem acontecido em Portugal Continental, de algumas regiões?
É natural que se temos uma população mais envelhecida a precisar de apoio, vão-se deslocar para uma zona onde têm esse apoio mais permanente. E há zonas que vão ficar desertas, porque a natalidade está a baixar, é um problema que de facto não sei como é que se resolve, é um problema que irá acontecer de certeza e não tarda muito, temos essa realidade, já continuamos a ter, mas por enquanto ainda conseguimos contornar a situação, mas é um problema real que irá acontecer.
Na zona norte, por exemplo, aqui destaco as zonas do Porto Munis, que é até uma zona de turismo por excelência, a população é muito baixa, Santana também, portanto são realidades que vão começar a aumentar de facto.
Estamos na semana Cáritas, que inclui o seu peditório anual, qual a relevância deste peditório para a Cáritas do Funchal e já agora se notam um decréscimo na capacidade solidária das pessoas?
O peditório é sempre uma mais-valia para a Cáritas do Funchal, porque nós não temos valências que nos deem rendimentos, é sempre através da generosidade e boa vontade das pessoas que se dispõem a colaborar connosco que nós vamos gerindo o nosso dia-a-dia. Eu acho que as pessoas são solidárias, do meu conhecimento destas andanças, nós portugueses somos bastante solidários, não existe aquela disponibilidade permanente, digamos assim, mas as grandes causas movem-nos e temos tido provas disso ao longo dos tempos, quer aqui na região, quer a nível nacional, e aqui destaco os incêndios, que têm assolado Portugal, de Norte a Sul e aqui na região também, as intempéries, e temos tido a prova da grande solidariedade das pessoas para com as instituições, de forma a chegar a quem mais necessita.
A vertente social das empresas tem ajudado também a atenuar eventuais dificuldades, contam com muita ajuda a esse nível?
Temos. É a nossa tábua de salvação. Os serviços públicos, quer através do Governo Nacional com a tutela da intervenção social, quer através das autarquias, são fundamentais, porque a Cáritas do Funchal, tem a designação de Cáritas do Funchal, mas não cobre só a área do Funchal, cobre a ilha de Porto, a ilha vizinha ao Porto Santo também.
Em relação ao recrutamento de voluntários, tanto para este peditório que vai decorrer, como para as atividades normais, isso tem sido uma dificuldade?
Os voluntários têm sido um pouco difíceis de angariar, ou seja, aquele voluntário permanente, digamos assim, depois da pandemia literalmente desapareceu, não existe, nós fazemos vários apelos, não há voluntários com disponibilidade para estar e nos acompanhar praticamente uma vez, duas por semana. Nestas grandes causas, por exemplo, quer a recolha de alimentos, quer outras campanhas que nós conseguimos fazer, conseguimos, alguns voluntários, mas aqui vamos bater sempre às portas dos mesmos, que é a alta nova, vamos às escolas, e as escolas de facto têm sido incansáveis para connosco, envolvem-se, envolvem as famílias. Gostaríamos que o voluntariado fosse mais espontâneo, mas não existe. Não é só com a Caritas, é com todas as áreas, as IPSS que têm a intervenção social.