LUSOFONIAS – Testemunhos de vidas entregues…

Tony Neves

Pedro Valinho Gomes é um dos teólogos que mais admiro pela lucidez do que diz e por ser quem é. Esta semana, na Voz da Fátima, tem um artigo provocador: ‘o b-a-ba do testemunho’. Diz, a determinada altura: ‘todos os momentos, mais ainda os da tribulação, são propícios para redescobrir a história que molda a Igreja a partir de dentro, que a chama ao testemunho corajoso e que é, em si mesma, o dinamismo que transforma o mundo’. E, ao ler este texto, o meu coração já estava a passear-se por algumas estradas de Angola onde, em Julho passado, me vi obrigado a parar em diversos lugares em que aconteceram emboscadas e ataques que mataram, feriram, sequestraram ou ameaçaram missionários durante a longa e cruel guerra civil.

Cheguei a Luanda e andei por alguns dos musseques. Sempre que entrava e saía de casa me vinha à memória o P. Abílio Guerra, um Espiritano que era pároco de S. Pedro do Prenda e que foi esperado à porta de casa, raptado, espancado e morto a 24 de Abril de 1992.Tinha 70 anos e 47 de Angola. Foi o primeiro padre a convidar-me para celebrar missas na sua paróquia de periferia, quando eu cheguei a Luanda em 1989.

De Luanda desci ao Lubango e fui até ao Munhino, já quase junto à lendária Missão da Huíla. Estive quatro dias ali com 12 jovens que se preparavam para a Profissão Perpétua e 9 a fazer o Noviciado. Muitas vezes me sentei no lugar onde, no longínquo 6 de Abril de 1978, o P. José Pereira da Silva foi barbaramente assassinado, com 71 anos de vida e 44 de Angola. A Escola da Missão tem o seu nome.

Talvez o momento mais emocionante vivi-o na viagem de Benguela para o Huambo, acompanhado de dois Padres que, na tarde de 25 de Agosto de 1988 faziam parte de uma coluna de carros da Igreja que tentavam chegar ao Huambo. Depois de passar a Babaera, em Ngola (Tchingenge) foram vítimas de uma emboscada da UNITA. Iam três viaturas da Igreja, todas bem identificadas: o camião da Caritas de Benguela, um mini-autocarro dos Saletinos e um jipe dos Espiritanos. O ataque foi terrível, como descreveram no local (onde paramos e rezamos), os Padres Alberto Tchindemba e Gaudêncio Sangando. Foram mortos 6 seminaristas diocesanos de Benguela, 3 meninas candidatas a Irmãs, 4 Saletinos. Os Espiritanos conseguiram todos fugir para o mato e escaparam. Quatro seminaristas de Benguela foram raptados e entregues em Lisboa uns meses mais tarde. O local do ataque tem hoje um pequeno monumento (foto) onde rezamos e tirei uma foto com os dois padres sobreviventes.

A estrada entre o Huambo e o Kuito também regista ataques sem conta, alguns deles vitimando missionários. A dez kms do Katchiungo (ex-Bela Vista), há um monumento que evoca a emboscada que matou o P.Nicolau Lighart (Espiritano holandês) e o P. Adriano Kassala (Diocesano do Huambo). O ataque aconteceu a 24 de Fevereiro de 1987.

A última estação desta Via-sacra que fiz por terras de Angola foi a Missão Católica do Bailundo. Ali resistiram, anos a fio, os Espiritanos e as Irmãs de S. José de Cluny. Quando a guerra terminou, em 2002, abria-se uma nova página na vida das populações martirizadas do Bailundo, terra marcada por constantes tomadas e retomadas, pelo MPLA e pela UNITA, que faziam sempre muitas vítimas. O P. José Afonso Moreira estava lá desde 1963, conhecia e era conhecido e amado por toda a gente, nunca lhe tendo passado pela cabeça abandonar o povo durante a cruel guerra civil. Acabados os combates, lançou-se na reconstrução da Missão e das comunidades cristãs. Seria barbaramente assassinado, a 8 de Fevereiro de 2006, dentro do seu próprio quarto. Está sepultado mesmo no meio do cemitério da Missão, ladeado por Espiritanos e Irmãs de S. José de Cluny. Tinha 80 anos e ainda hoje é chorado pelo povo.

A minha peregrinação por estes caminhos manchados pelo sangue de mártires missionários marcou-me profundamente. Há viagens que deviam sempre ser feitas de joelhos. Estes testemunhos de vidas entregues falam muito alto e explicam a vitalidade missionária e vocacional de Angola.

Dentro de uma semana há eleições. O povo quer ver a paz cimentada e os caminhos de progresso cada vez mais abertos. Os políticos têm de dar o seu melhor para que Angola seja uma terra sem corrupção, marcada pelo respeito dos mais elementares direitos humanos. O povo merece e precisa. Que os políticos dêem corpo a esta esperança.

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Agência ECCLESIA

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