LUSOFONIAS – Reconstruir escombros ou renascer das cinzas

Tony Neves, em Roma

Há sempre quem goste de comer à custa da desgraça alheia. Os abutres deste mundo estão sempre à espreita da morte para atacar e lucrar. Veio isto a propósito da notícia veiculada pelos media segundo a qual a Europol desmantelou uma rede que traficava máscaras, provocando uma fraude milionária! Nós achamos sempre que os dramas nos purificam e melhoram. Mas, para algumas pessoas, as tragédias refinam-lhes a maldade e o oportunismo. Também há 30 anos no Huambo, após tanta guerra e tanto cerco, o sal acabou e tornou-se produto com estatuto ao nível de diamante! Todos os dias, alguém me aparecia no Seminário com pacotinhos de sal que não enchiam a palma da mão…a preços absolutamente proibitivos! E não era só o sal que custava milhões…era quase tudo, tal a fome e a miséria que tomaram conta do planalto naqueles terríveis anos de 1993 e 1994! Tenho citado tantas vezes o poeta radical francês, Jacques Prévert, que gritava que a guerra é muito estúpida! É mesmo, estes dois anos referidos foram, no planalto, de uma barbárie indescritível. Vou regressar – pela última vez – aos escritos desses tempos para partilhar a paz que se tentou semear num contexto de muita repressão e fome.

Contei o que vi no Huambo quando dei a primeira grande volta à cidade após o fim da batalha dos 55 dias: ‘É de arrepiar. Havia ainda mortos a apodrecer, as casas estão no chão, as árvores…essas morreram de pé! Veem-se tanques e carros queimados em muitas ruas e, na parte Alta da Cidade, ninguém lá pensará viver nos próximos tempos!’ (‘Missão em Angola’, p.167). Escrevi mais tarde: ‘depois dos combates, a Igreja empenhou-se em diversas frentes, no esforço necessário da reconstrução e reorganização’ (p.182). Mas – confessava – ‘o pior bocado e o osso mais duro de roer, remoemo-lo, como Igreja e como povo, em agosto (1993) com os bombardeamentos aéreos massivos, um pouco por todo o lado. A Igreja Católica, em particular e com as outras Igrejas, ergueu a sua voz pedindo o cessar fogo, a reatamento das negociações e a vinda da ajuda humanitária’ (p.183).

Estes tempos obrigaram-nos a darmo-nos as mãos. Foram tantas as reuniões com líderes de outras Igrejas e com políticos e militares no terreno! Sempre com o objectivo de defender o povo e livra-lo da situação catastrófica em que vivia. Houve ajuda humanitária que chegou nos aviões, sobretudo da Caritas. Houve apelos e mais apelos para que as negociações de paz avançassem. Houve travões colocados a ajustes de contas e limpezas, esses fenómenos que marcam todas as guerras. Houve coragem de dizer o que políticos e militares não queriam ouvir. Correram-se riscos enormes, pois um contexto de guerra gera desconfianças e abusos de poder. Multiplicaram-se orações e celebrações. A solidariedade ganhou asas e fez milagres como, por exemplo, quando católicos e protestantes se juntaram para limpar os escombros do Hospital central e ali colocaram feridos de guerra de ambos os lados. E fomos todos à procura de comida, medicamentos e roupa para os socorrer e a muitos salvar.

O que me fez sair do Huambo, um ano e meio depois da batalha dos 55 dias, foi a eleição para participar no Capítulo Provincial dos Espiritanos portugueses, a realizar em julho de 1994, em Lisboa. Fui convidado a escrever um texto, a partir do Huambo, como documento preparatório desse Capítulo. Quando o escrevi estava convencido de que não conseguiria sair. É um texto grande (publicado em ‘Missão em Angola’, pp.192-198), de que quero apenas salientar alguns dos desafios que ali gravei: ‘o do alto risco que todos aceitamos correr ao permanecer na cidade e nas missões onde os bombardeamentos e os assaltos não poupam nada nem ninguém’; ‘do risco da sobrevivência ameaçada: não há comida, sal, óleo, sabão, material escolar…não há luz eléctrica, nem petróleo, nem gás, nem velas, nem pilhas’; ‘da solidariedade profunda com o povo que sofre na pele os efeitos desta guerra cruel, e a angústia de um futuro ainda mais trágico’ (p.197). Mas o que mais gosto de ler hoje é a nota final deste texto mandado da borrasca do Huambo, a que dei o título de ‘esclarecimento’: ‘quando acabaram os combates e recebi as primeiras cartas, diversas pessoas sabendo que o Huambo se iria transformar num braseiro, insistiram comigo para me ir embora. Em consciência, mesmo que a saúde não andasse boa (como não andava), eu nunca poderia aceitar tal sugestão. Sabia que era perigoso ficar e que, cada dia que passa, a vida corre perigo. Mas, afinal de contas, sou Espiritano. E mais: estou com outros Espiritanos, com os seminaristas e com este povo mártir. Com que direito poderia abandona-los, aproveitando-me simplesmente do meu estatuto de estrangeiro?’. E concluía: ‘Compreendam que não se trata de uma questão de heroicidade, mas de uma questão de coerência e de missão. Posso morrer aqui, mas morrerei de pé e com a consciência de quem –apesar de todos os limites – fez o que pôde para bem desta Igreja e deste povo’ (p.198).

Pois é…30 anos depois, este Covid também nos põe em sentido, nos obriga a tomar decisões radicais e a maior delas (para a maioria dos cidadãos) é ‘ficar em casa!’. Oportunismos por mão cheia de sal ou por máscaras? Nem pensar! Ontem como hoje, com guerras ou vírus, o tempo abre novas e ousadas oportunidades e derrota oportunismos caducos e malvados…

Preparemos, então, o dia seguinte à abertura das portas para sair à rua. Será que vamos repetir todos os erros do passado ou abriremos novas portas a um futuro mais justo e solidário?

 

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Agência ECCLESIA

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