LUSOFONIAS – P. Telmo, cem anos a espalhar profecia

Tony Neves, em Roma

O P. Telmo Ferraz, da Obra da Rua, celebra cem anos de vida e Missão. Membro do clero da Diocese de Bragança-Miranda, nasceu no Mogadouro a 25 de novembro 1925 e começou cedo o seu sacerdócio de rebeldia e compromisso social. Denunciava a tragédia humanitária provocada pelas condições péssimas em que viviam quantos davam a vida na construção de barragens naquele Trás-os-Montes longínquo e abandonado dos anos 50. Dedicava-se a todos os deserdados e denunciava as violações dos direitos destes pobres trabalhadores. O seu primeiro livro, ‘O lodo e as estrelas’(1960) é tão duro e profético acerca da vida dos trabalhadores na construção da Barragem do Picote, que foi visado e proibido pela censura. Mas – e talvez por isso mesmo – já em 1959 estava em Angola com os trabalhadores da barragem de Cambambe.

1963 marca o início da grande aventura pastoral e social da sua vida: a Casa do Gaiato de Malanje! Ali dedicou o melhor de si, no acolhimento e formação de jovens rapazes, órfãos ou vindos de famílias pobres. É uma obra notável que seria várias vezes arrasada e pilhada durante a longa guerra civil de Angola. Sem nunca atirar a toalha ao chão, sempre reconstruiu e recomeçou. A par de todo um notável trabalho pastoral e social, escreveu muito e de forma muito acutilante, mexendo em feridas dolorosas como só uma guerra civil pode abrir. Foi em Malanje, nesta Casa do Gaiato, que encontrei o P. Telmo pela primeira vez. Decorria o ano de 1992, após as eleições que deviam abrir as portas à paz e à democracia, depois de uma guerra colonial dura e de uma guerra civil ainda mais mortífera e destrutiva. Recorda-me a alegria e a esperança que saíam das suas palavras e gestos quando me mostrava as casas, os campos, as oficinas e, sobretudo, os jovens ‘gaiatos’ que ali viviam com ele, abrindo de par em par as portas a um futuro melhor. Só que, dias depois, recomeçaria a guerra que voltou a destruir os edifícios da Casa do Gaiato e dispersou os jovens. Mas – sempre que os militares o permitiam – o P. Telmo regressava a Casa e recomeçava a Obra com uma fé, uma coragem e uma persistência à prova de tudo.

Com o empenho da Diocese de Bragança-Miranda, acabariam por vir a lume diversas coletâneas de textos: ‘Mourela’ (2011), ‘Contigo no planalto’ (2013), ‘Pelo caminho das tipoias’ (2013), ‘A mulemba e o Grão de Areia’ (2014), ‘Um retiro na montanha’(2016), ‘Terra batida’ (2017), ‘As abelhas e o mel’ (2018). Escritos ao longo de mais de 60 anos, estes textos mostram a alma de um padre poeta e escritor,  pobre ao serviço dos mais pobres.

Com a idade a avançar (aos 97 anos!), confiou a Casa do Gaiato de Malanje ao P. Rafael Serrano e sua equipa e recolheu-se ao Calvário de Beire, em Paredes, onde continuou a exercer a sua missão e a escrever.

Publicaria, em 2019, ‘O silêncio de Deus’. O texto assenta na ecologia integral da ‘Laudato Si’ do Papa Francisco, conta muitas histórias de gente pobre e não esquece o ‘homem grande e santo’, o lendário Bispo de Olinda e Recife, D. Hélder Câmara.

Como diz Henrique Manuel, ‘o silêncio de Deus é a voz de Deus; a ausência de Deus, a sua presença mais profunda. Disso nos fala este livro’. Como sinal de gratidão histórica, o P. Telmo Ferraz dedica o livro ao Padre Américo e a todos e cada um dos padres da Obra da Rua, os que já partiram e os que dão hoje corpo a esta benemérita instituição.

2022 marca um ‘regresso’ à construção da Barragem do Picote e ao livro ‘O lodo e as estrelas’. Mais uma vez, Henrique Manuel, pegou num álbum do P. Telmo e organizou o livro ‘Rostos de uma barragem’, que reúne fotografias tiradas pelo sacerdote durante os anos de construção daquele empreendimento. Confessou o P. Telmo: ‘Não contava que se pudesse fazer isto. As fotografias foram tiradas por desporto, para eu fixar, para distribuir uma ou outra fotografia por eles. Uma casinha, uma criança a comer. Às vezes eles pediam-me. Foi sem projeção nenhuma, sem nenhuma ideia’. Ideia diferente tem Henrique Manuel: ‘Gosto de olhar para este livro como um álbum de família, como um dedo que aponta a celebração de um património coletivo. São as pessoas, os rostos que levantaram esta barragem, que não ficam na história. São pessoas anónimas que, embora sendo personagens secundárias ou quase figurantes da grande história, são as pessoas que importam, as pessoas que levantaram a barragem. Acho que faz parte da nossa memória, do nosso património coletivo, de Portugal e do mundo’.

Imparável, quando celebrou 98 anos, em 2023, publicou mais duas obras: ‘Meu Sonho Profundo’ e ‘Aldeia dos Leprosos’.

Obrigado P. Telmo por estes cem anos tão cheios de Missão, tão cheios de tudo!

Tony Neves, em Roma.

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

 

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