LUSOFONIAS – O povo crucificado de Santa Cruz

Tony Neves, em Buenavista

Fui recebido no aeroporto de Santa Cruz de la Sierra pelo P. Márcio Asseiro, missionário espiritano a trabalhar na Bolívia. As notícias que tinha recebido pelos media e pelos missionários levaram-me a esperar um aeroporto em estado de sítio, cheio de militares armados até aos dentes e com revistas muito rigorosas à chegada. Nada disso, foi tudo como de costume. Ainda bem…

Viajamos para o centro da cidade para um almoço que juntaria todos os membros da família espiritana. A refeição fraterna foi tomada num popular restaurante brasileiro, em ambiente muito sereno. Não queria fazer perguntas, pois preferia ir descobrindo a realidade por mim próprio, à medida que o tempo passasse e muitos quilómetros fossem percorridos.

Saímos de Santa Cruz para Buenavista, uma viagem de uma centena de quilómetros. Ainda dentro da cidade, eram já visíveis muitos restos de pneus queimados e, aí sim, a conversa começou, com a explicação das razões porque Santa Cruz estava violenta, sobretudo à noite, em certos bairros, com recurso a foguetes e ao queimar de pneus, carros e alguns edifícios mais conotados com a administração central. A história é, aparentemente, simples: O Governador de Santa Cruz, eleito pelo povo, foi considerado ‘golpista’ pelo governo com sede em La Paz. Então, vieram busca-lo e levaram-no preso para lá, numa história que dava argumento para um excelente filme de Hollywood com cenas de cortar a respiração!. Então, como reação popular, tudo o que tivesse algo a ver com a capital, começou a ser alvo de vandalismo, com o objetivo de exigir a libertação imediata do Governador. Como Santa Cruz é a capital económica e muito do que se consome na capital e outros Estados é daqui que vai, então organizaram-se grupos que bloquearam todas as saídas e entradas na Província, para provocar o estrangulamento da capital e outras áreas afectas ao Governo actual.

Os Bispos Católicos da Bolívia publicaram uma nota pastoral, a 29 de Dezembro, criticando esta prisão em forma de rapto e pedindo mais respeito pela liberdade, democracia e direitos humanos.

Para fazer a viagem de Santa Cruz até Buenavista devem pagar-se diversas portagens. Também aí, os piquetes de bloqueio partiram as cabines de pagamento e, assim, todos os veículos passam sem pagar, não permitindo que o Governo retire dali os milhões de bolivianos que lá caiam diariamente. De resto, só pelos canais televisivos e redes sociais sigo a evolução, com discursos inflamados de parte a parte e com muitas actividades de luta, sempre exigindo a libertação do Governador. Mas, claro está, quem sofre com todas estas confusões é o povo simples que já tem enormes dificuldades de sobreviver em condições normais e que vê a vida a andar para trás quando acontecem situações violentas como a que tomou conta de Santa Cruz.

O mais curioso da vida é que esta não pára, aconteça o que acontecer. Assim, contornando os obstáculos intransponíveis, continuamos a fazer o possível para cumprir a nossa missão. Pude acompanhar os Padres Márcio Asseiro, João Paulo Carvalho e a Leiga Espiritana, Maria de Jesus (a equipa missionária de Buenavista), nas suas actividades habituais. Assim, participei na celebração dos Baptismos (5) e Crismas (35) dos militares do quartel local que, durante seis meses, se prepararam para esta celebração. Alguns dos que se tinham preparado para estes Sacramentos, não os puderam celebrar porque foram mobilizados para frentes de defesa, sobretudo para a fronteira com o Perú onde – por razões bem diferentes deste problema aqui em Santa Cruz – a situação está muito tensa.

O que me trouxe à Bolívia foi a realização do Capítulo dos Espiritanos, um evento que deve avaliar a missão realizada nos últimos anos e projectar a vida Espiritana para os próximos oito anos. Mas, vim o mais cedo que pude para partilhar o dia a dia dos missionários. Assim, pude, entre outras coisas, ir até ao terreno florestal que os Espiritanos compraram para ali plantar cacau, num pais onde se investe mais na coca, no gado bovino e a na soja, produtos mais rentáveis, mas bem menos ecológicos. Tanto o Capítulo como esta aposta de ecologia integral merecem nova crónica. Lá voltaremos…

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