LUSOFONIAS – Mia, o Mapeador de Ausências

Tony Neves, no Porto

Mia Couto tem-nos acompanhado nas últimas semanas e hoje quero apostar no seu último romance. Mas dou ainda uma volta a ‘O universo num grão de areia’ para algumas citações que são provocação: ‘O medo foi o mestre que me fez desaprender’ (p.20); ‘Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos’ (p.21); ‘Há uma arma de destruição massiva: chama-se fome! Em cada seis humanos, um passa fome’ (p.22).

‘Professor não é quem dá aulas. É quem dá lições. Não é aquele que vai à escola ensinar. É aquele cuja vida é uma escola’ (p.35); ‘A palavra ‘trabalho’ suscita fortíssimas alergias. Enriquecer rápido e sem esforço só pode ser feito de uma maneira: roubando, vigarizando, corrompendo e sendo corrompido. Não existe, no mundo inteiro, outra receita’ (p.48); ‘Grande parte das línguas bantu do meu país não possui palavras específicas para dizer ‘pobres’. Para designar um pobre, diz-se ‘chissiwana’. Essa palavra quer dizer ‘órfão’. Pobre é quem vive sem família nem amigos, pobre é quem perdeu os laços de solidariedade’ (p.86); ‘Enquanto a justiça fica à espera, os bandidos aceleram o passo. A impunidade é um poderoso estimulante para malfeitores’ (p.143); ‘As pessoas boas (querendo dizer pessoas íntegras, generosas, solidárias e disponíveis) deviam ser protegidas como um património da humanidade. Um património cada vez mais raro, cada vez mais em risco. Uma pessoa boa ensina mais que todos os compêndios’ (p.210); ‘Meu pai mostrou-me um outro saber, um outro prazer: o da busca pela intimidade dos seres e das coisas’ (p.250).

Agora, sim, ataquemos ‘O Mapeador de Ausências’, romance publicado em 2020. Mia Couto regressa à história para cruzar acontecimentos com romance. Em ‘O Mapeador de Ausências’, existe a terra onde tudo acontece (a Beira, em Moçambique, onde o autor nasceu e cresceu), existiram também a era colonial, a polícia secreta do regime (a pide-dgs). Também foram reais as pessoas, originárias da Europa, de África ou da Ásia que, em Moçambique jogaram a favor ou contra o regime colonial. Por isso, este romance junta todos os ingredientes para uma leitura apetecível que ajuda a perceber o fim da era (e da guerra) colonial, as lutas mais ou menos sangrentas que aconteceram e o perfil das pessoas que atravessaram este momento crucial da história da ex-colónia portuguesa.

Mia Couto traça a vida de Diogo Santiago, poeta e professor que regressa à Beira para ser homenageado, mas, sobretudo, ele quer reconciliar-se com a sua história. E faz esta viagem nas vésperas do ciclone Idaí que arrasaria a cidade em 2019. São ricas as figuras que o autor cria e recria para que a intriga do romance nunca permita que o leitor desligue.

Destaco frases que marcaram a minha leitura: ‘Eis a minha doença: não me restam lembranças, tenho apenas sonhos. Sou um inventor de esquecimentos’ (p.16); ‘Estamos velhos quando não sabemos o que fazer de nós mesmos’ (p.28); ‘Os lugares são como os livros: só existem quando os lemos pela segunda vez’ (p.32); ‘Todas as noites me esqueço de como se dorme’ (p.59); ‘Foi aqui que a minha infância se rasgou. Venho aqui emendar esse rasgão’ (p.62); ‘Tenho demasiada história, sofro de um excesso de passado’ (p.69); ‘O mundo seria perfeito se houvesse poesia sem ter que haver poetas’ (p.77); ‘Não saber para onde fugir é tão triste como não ter casa’ (p.90); ‘As viagens são assim(…). Sabemos do seu propósito apenas depois de regressarmos’ (p.127); ‘Os barcos são como os cães: regressam às casas onde lhes dão de comer’ (p.130); ‘Quem mais sente a guerra é quem nunca vestiu uma farda: as mulheres’ (p.147); ‘Soldados: somos o gatilho vivo de mandadores sem rosto’ (p.148); ‘A maneira mais segura de chegar ao capitalismo é começar por instalar um regime socialista’ (p.176); ‘Estou tão velho e tão magro que já tenho mais ossos que palavras’ (p.191); ‘O meu filho terá orgulho por ter um pai que não se vende’ (p.216); ‘Volte hoje à noite(…). No escuro as palavras perdem o dono’ (p.252); ‘A última guerra, a chamada ‘guerra civil’, ficou escrita nos edifícios. Não há edifício onde não sejam visíveis as marcas das balas. Vemos essas tatuagens nas paredes e parece que voltamos a ouvir os antigos disparos’ (p.301); ‘A guerra tem costas largas. Usam-na para explicar o que sucedeu e para justificar o que não aconteceu’ (p.328); ‘Despimos os suspeitos antes de os torturarmos. Está provado: a roupa atrapalha a sinceridade’ (p.345); ‘Quando um regime começa a prender os poetas é porque esse regime está perdido’ (p.350); ‘As boas leis são as que não precisam de ser escritas’ (p.355); ‘O amor é um outro nome da vida’ (p.380).

Este romance é – no dizer de Mia Couto – ‘uma narrativa ficcional inspirada em pessoas e episódios reais’. Outros virão onde a semelhança com factos conhecidos é mera coincidência…ou talvez não!

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Agência ECCLESIA

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