LUSOFONIAS – Fome, sim, falo de fome!

Tony Neves, em Roma

O grito podia ter chegado de muitas partes do mundo, amplificado por muitas bocas. Mas chegou-nos do norte de Moçambique pela voz corajosa do P. Raul Viana, responsável pela Missão Católica de S. José de Itoculo, na Diocese de Nacala, Província de Nampula.

A fome é um crime contra a humanidade. Todos têm direito ao pão de cada dia e a terra produz comida suficiente para encher todas as bocas. O que se passa é muito simples: não há falta de produção alimentar, mas uma injusta distribuição. Assim, uns engordam e outros definham. Uns deitam fora e outros procuram nos caixotes do lixo forças para sobreviver. É esta a sociedade de contrastes que construímos e alimentamos. É este o mundo que queremos mudar para melhor.

O Papa Francisco criou o Dia Mundial do Pobre para gritar contra a fome, a injustiça e a violação dos direitos humanos praticada contra milhões de pessoas por esse mundo além. Em vários documentos e intervenções, o Papa tem erguido a sua voz para denunciar este crime e apontar caminhos de solução. Com fome nunca haverá paz. Sem justiça nunca teremos pão em todas as mesas. Sem fraternidade nunca haverá partilha e o fosso entre ricos e pobres não parará de aumentar. No seu último grande documento pastoral, a Fratelli Tutti, o Papa vai mais longe e mais fundo neste ‘combate’. Cito, para não trair: ‘Com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um Fundo mundial para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres, a fim de que os seus habitantes não recorram a soluções violentas ou enganadoras, nem precisem de abandonar os seus países à procura de uma vida mais digna’ (FT 262). Está escrito e está claro. Esta proposta foi apresentada ao mundo a 3 de outubro de 2020, mas ainda nenhum governante se chegou à frente, nem que fosse só para dizer que o Papa tem razão e que se iria tentar fazer qualquer coisa para apoiar esta ideia!

Voltemos a Moçambique e ao grito amplificado pelo P. Raul Viana, perto de Nacala. Desde há tempos que os nossos ouvidos se enchem de notícias sobre o drama que vivem as populações da província vizinha de Cabo Delgado. Lá, além de secas e furacões, estão os grupos armados a atacar populações que tentam escapar pela fuga, ficando sem nada à mercê da solidariedade alheia. E algumas destas famílias estão a ser acolhidas nas áreas da Missão que o P. Raul anima, juntamente com outros Padres, Irmãs e Leigos, que compõem a Equipa Missionária Espiritana de S. José de Itoculo. Vamos à carta do missionário: Um pouco como acontece em várias partes da Província de Nampula, também aqui em Itoculo a fome é uma realidade diária de muitas famílias. Em qualquer encontro que realizamos aparece sempre este assunto como uma grande preocupação. Na verdade, mesmo com máscara de proteção contra a Covid19, basta olhar o rosto das pessoas para perceber a falta de uma alimentação satisfatória. Vindos diretamente aqui à Missão, ou enviando simplesmente um SMS de socorro, nós estamos a dar alguma ajuda imediata. Mas não temos como responder a todas as situações. Estamos conscientes que os casos mais graves nem sequer chegam até nós por impossibilidade própria dos mesmos.

O ano agrícola 2020 na região foi fraco e as reservas alimentares, entretanto, acabaram. Para agravar a situação, a chuva incerta de 2021 ainda não permitiu um mínimo de produção que pudesse resolver este problema. Algumas iniciativas de segurança alimentar estão a ser promovidas pela Caritas diocesana de Nacala aqui no Posto de Itoculo, mas também se revelam insuficientes. Nós mesmos lançamos uma campanha de sementes (milho e feijão) que também não resultou muito pela falta de chuva. Outras iniciativas de apoio alimentar às famílias procuramos fazer, como a compra e venda de farinha de milho a um preço acessível.

Agora, para tentar minimizar a situação abrimos uma cantina de papinha (farinha de milho com açúcar) para apoiar as crianças que são as mais vulneráveis nesta situação. Um grupo de 400 crianças chega aqui no Centro para reduzir o risco de fome diária. Também no Centro de apoio às crianças desnutridas (bebés) atingimos números nunca antes alcançados. Neste dia 10 de Março, 124 famílias chegaram aqui para serem apoiadas com papinha e leite para os seus filhos.

Sabemos que este tipo de pastoral assistencialista não é a finalidade da nossa Missão por estas terras, mas neste momento é urgente fazer alguma coisa, e reduzir o risco de morte, pelo menos, de algumas pessoas. Desde que cheguei a Moçambique em 2009 nunca tinha acontecido uma realidade como esta. Mas também é nestas situações que a missão se faz presente e a nossa vida ganha mais sentido em estar aqui’.

Este aviso à navegação, vindo de uma linha da frente da Missão gerou ondas de solidariedade. Claro que os apoios de urgência estão a chegar lá, mas o problema de fundo vai manter-se. Há que dar peixe quando as pessoas têm fome, mas a solução está na cana e na arte de pescar. Vamos ajudar Moçambique e todos quantos, por esse mundo além, têm fome. Mas vamos investir na construção de um mundo mais humano e fraterno que cumpra o sonho do profeta Isaías que o Papa Francisco atualizou: ‘das espadas farão relhas de arado e das lanças forjarão foices’ (Is 2,4). Assim está escrito no muro da sede da ONU em Nova Iorque, mas este ideal não se consegue fazer passar além do papel. Essa será a grande missão de um mundo pós-covid. Assim o sonho e seria tão bom para todos que se tornasse realidade.

 

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Agência ECCLESIA

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