LUSOFONIAS – Cicatrizar o mundo

Tony Neves, em Roma

‘As sombras dum mundo fechado’ é o primeiro capítulo da encíclica ‘Fratelli Tutti’ com que o Papa Francisco nos acaba de brindar. A fraternidade universal está a ser travada por algumas tendências do mundo atual que dificultam o seu desenvolvimento.

Muitas conquistas humanas estão a fazer marcha atrás: ‘reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos’ (FT 11). Muitos governantes esquecem-se de algo essencial: ‘o bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam de uma vez para sempre: hão-de ser conquistados cada dia’ (FT 11).

O mundo está a construir-se sob o comando de interesses estrangeiros e de poderes económicos que investem sem entraves nem controlo, impondo um modelo económico e cultural único. ‘Esta cultura unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações, porque a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos’ (FT 12).

Semeia-se, sobretudo nas novas gerações, o desânimo e a desconfiança. Não cuidamos bem do mundo nem de nós próprios. Apoiamos a cultura do descarte, considerando que ‘partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício duma seleção que favorece a um sector humano digno de viver sem limites’ (FT 18).

O racismo continua em força, embora mais disfarçado, nascem novas pobrezas, as mafias aproveitam o medo e insegurança das pessoas, as mulheres têm menos direitos que os homens, os direitos humanos não são iguais para todos: ‘enquanto uma parte da humanidade vive na opulência, outra parte vê a própria dignidade não reconhecida, desprezada ou espezinhada e os seus direitos fundamentais ignorados ou violados’ (FT 22). E mais: ‘ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura’ (FT 24). Há que combater todas as formas de tráficos humanos, onde as pessoas são tratadas como meios e não como fim. O mundo está violento, vive-se hoje ‘uma terceira guerra mundial por pedaços’ (FT 25).

Em vez de pontes, os governos e as pessoas constroem ‘muros no coração, na terra, para impedir este encontro com outras culturas, com outras pessoas. E quem levanta um muro, quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes’ (FT 27).

O papa cita o Documento sobre a Fraternidade Humana, escrito com o Grande Imã Al-Tayyeb: ‘ressaltamos que, juntamente com tais progressos históricos (ciência, medicina, indústria, bem estar….), grandes e  apreciados, se verifica uma deterioração da ética, que condiciona a atividade internacional, e um enfraquecimento dos valores espirituais e do sentido da responsabilidade’ (FT 29).

Perdemos o sentido de pertença à comum humanidade, descobrimos planetas longínquos sem descobrir as urgências de quem vive ao lado, somos vítimas da globalização da indiferença. Por isso, grita o Papa: ‘o isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim’ (FT 30).

A covid 19 recordou-nos que estamos no mesmo barco a enfrentar a mesma tempestade e ninguém se salva sozinho, mas juntos. A pandemia obriga-nos a ‘repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e, sobretudo, o sentido da nossa existência’ (FT 33). Precisamos todos uns dos outros.

Tentamos que outros não cheguem às nossas terras, não ajudamos os países mais pobres, damos cobertura a traficantes humanos sem escrúpulos. Mas devemos também ‘reafirmar o direito a não emigrar, isto é, a ter condições para permanecer na própria terra’ (FT 38). Urge combater o medo que nos priva ‘do desejo e da capacidade de encontrar o outro’ (FT 41).

Vivemos na era digital, mas os corações não estão todos interligados. Há muita violência e fanatismo que passam pelos media hoje. Precisamos de mais sabedoria e menos manipulação e falsas notícias. E mais: ‘não devemos perder a capacidade de escuta. São Francisco de Assis escutou a voz de Deus, dos pobres, do enfermo, da natureza. E transformou tudo isto num estilo de vida’ (FT 48).

O papa, neste capítulo 1, fala mais de sombras, mas há muitos percursos de esperança, pois ‘Deus continua a espalhar sementes de bem na humanidade’ (FT 54).

Por isso, vou continuar a partilhar a riqueza desta encíclica social. O desafio do Papa é um apelo à confiança ‘caminhemos na esperança!’ (FT 55).

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Agência ECCLESIA

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