LUSOFONIAS – Carolina, a favelada!

Tony Neves, nas favelas de S. Paulo

Carolina Maria de Jesus. Uma biografia nas margens da literatura’ é um livro de Rita Ciotta que me abalou por dentro e me ‘obrigou’ a reler o ‘Quarto de despejo. Diário de uma favelada’, obra mais emblemática desta senhora brasileira que narra a sua sofrida vida quotidiana na ex-favela de Canindé, junto às margens do Tieté, em S. Paulo, entre 1955 e 1960.

Tudo começou assim, no que diz respeito à vida literária de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), negra, uma ex-favelada de S. Paulo: ‘os primeiros cadernos de Carolina de Jesus são derivados das lixeiras onde, ao recolher o lixo, a escritora separa caderno com folhas em branco, papéis de pão, revistas, jornais e livros usados; bem como romances com grafia do século XIX onde se inspirava e desenvolvia seu processo autodidático’ – conta Raffaela Fernandez, na introdução a esta obra de Rita Ciotta sobre Carolina de Jesus.

Maria Raquel Andrade, no prefácio, apresenta a ‘favelada’ Carolina como ‘uma voz que fala para o mundo sobre o seu universo e sobre a absoluta ausência de condições sociais, culturais e ecológicas dignas, desejosa de o transformar. Desafia preconceitos, raciais ou de género, apela para a justiça no mundo que a rodeia e para a atenção aos pobres, estimulando todos os moradores das favelas a ter coragem para contar as suas histórias e, deste modo, mudar o mundo’. As obras principais foram publicadas em tempos difíceis, sendo ‘Quarto de despejo: diário de uma favelada’ (1960), uma obra traduzida em treze línguas, dando a volta ao mundo, transformada num clássico da literatura brasileira.

Rita Ciotta, a autora desta biografia, tenta resumir o Brasil do séc. XX a saltar de ditadura em ditadura, sempre a esmagar os mais pobres com opressão e fome, como Carolina e a sua família, primeiro em Minas Gerais e, mais tarde, na favela, onde ‘se deitam fora as pessoas’. Carolina pensa que na enorme cidade de S. Paulo ‘há o salão onde vivem os ricos e, nas periferias, há o quarto de despejo dos pobres’. Defende a autora que Carolina será sempre ‘uma exilada, uma excluída. Por ser mulher, negra, mãe solteira e, sobretudo, favelada’. Ela grita ‘a miséria, a dor e sobretudo a fome cuja cor ela vê: a fome é amarela’. Fala ‘de si própria e dos miseráveis que vivem em torno de si, também eles dilacerados e atormentados’. Acabaria por sair da favela, ‘mas morreu pobre como sempre foi’.

O livro termina em grande com uma entrevista exclusiva feita a Vera Jesus Lima, filha de Carolina. Conta como era a vida miserável nas favelas, como conseguiu estudar e ser hoje professora. Fala da mãe com orgulho e promete continuar a investir para que as obras dela sejam mais conhecidas e as suas lutas mais assumidas. De facto, ‘Quarto de despejo’ reflecte ‘um certo Brasil moderno, a qual que ainda não venceu a batalha da injustiça social e da miséria’. Ou, como diz o escritor italiano Alberto Moravia, ‘a escritora tem a força dos pobres que não têm nada a perder, senão os seus grilhões’.

Estou aqui em S. Paulo e tenho passado alguns dias em diversas favelas onde a vida quotidiana de milhões de pessoas é muito idêntica àquela que Carolina de Jesus partilhou nos anos 50 do outro século. O tempo passa, mas o mundo teima em não melhorar. Continua a haver muita gente – milhões e milhões – a passar ao lado de uma vida digna, sem casa, sem pão na mesa, sem acesso a cuidados de saúde e sem educação de qualidade. O mundo continua a aprofundar o fosso entre ricos e pobres, pois, quem tem muito ganha mais, quem tem pouco fica com cada vez menos. Esta injustiça estrutural deve ser combatida e ultrapassada, como tantas vezes e de tantas maneiras o Papa Francisco tem defendido, apresentando propostas que os políticos e agentes económicos não tomam devidamente a sério.

Termino com a última página do Diário de Carolina, escrita no derradeiro dia de 1959: ’31 de dezembro… Levantei às três e meia e fui carregar água. Despertei os filhos, eles tomaram café. Saímos. O João foi catando papel porque quer dinheiro para ir no cinema. Que suplício carregar três sacos de papéis. Ganhamos 80 cruzeiros. Dei 30 ao João… Eu fui fazer compras, porque amanhã é dia de Ano. Comprei arroz, sabão, querosene e açúcar. O João e a Vera deitaram-se. Eu fiquei escrevendo. O sono surgiu, eu adormeci. Despertei com o apito da Gazeta anunciando o Ano Novo.(…). Espero que 1960 seja melhor que 1959. Sofremos tanto no 1959, que dá para a gente dizer: ‘Vai, vai mesmo! Eu não quero você mais. Nunca mais!’.

Tony Neves, nas favelas de S. Paulo

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Agência ECCLESIA

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