Tony Neves, em Roma
A Praça de S. Pedro foi pequena demais para tão grande multidão. Ali se escutavam muitas línguas, faladas ou cantadas, ao ritmo de danças e baloiçar de bandeiras. Neste 15 de maio, o Papa Francisco canonizou Carlos de Foucauld, Maria Rivier (Fundadora das Irmãs da Apresentação de Maria), Titus Brandsma (Carmelita, morto pelos nazis em Dachau), Maria de Jesus Santocanale, M. Domenica Mantovani, M. Francisca de Jesus, Justino Russolillo, Luigi Palazzolo, César de Bus e o leigo indiano Lázaro Devasahayam… ao todo, dez testemunhas ousadas do Evangelho. O mais conhecido é Carlos de Foucauld, o santo do deserto, o irmão universal.
Há muitos anos que este santo do deserto me inspira. Nascido em França (1858), levou vida airada de rico até se converter ao cristianismo quando já tinha 26 anos. Seria sacerdote aos 43, sendo assassinado em pleno deserto do Sahara 13 anos depois. A sua vida é um autêntico motor de busca de sentido e felicidade. Vagueia entre a França, o norte de África e a Terra Santa. O P. Aristides Neiva explicou bem a importância dos lugares para o seu itinerário espiritual: ‘A França, onde nasceu, foi também a terra onde perdeu a fé e a fortuna que herdou. A Terra Santa, em especial Nazaré, foi o lugar da conversão e das decisões. É aí que manifesta o desejo ousado e ingénuo de formar comunidades ‘semelhantes às dos primeiros tempos da Igreja’. Mas – conclui Aristides Neiva – Foucauld foi sobretudo o santo do deserto’. Este lugar ‘indicou-lhe a missão, abriu-lhe o coração à imensidão da paisagem e da humanidade (…). Carlos de Foucauld fará do deserto um imenso altar, é nele que adora a Deus e contempla a humanidade. É aí, no meio do deserto que o adoptou, apanhado numa guerra que não era a sua, que irá morrer, fulminado por um bala’. Tal aconteceu em Tamanrasset, Argélia, a 1 de dezembro de 1916.
Marc Botzung, Assistente geral dos Espiritanos, francês que trabalhou vários anos no deserto do Sahara, na Mauritânia e Argélia, dizia que Carlos de Foucauld é enorme pela sua busca espiritual, o seu espírito missionário e a sua fecundidade inesperada. Depois de uma crise profunda, converteu-se ao cristianismo. Os seus escritos sobre o mundo dos tuaregues tornaram-se referência obrigatória. A sua opção por um estilo de vida simples e a sua escolha dos tuaregues, povo desprezado e abandonado, abriu portas a uma das páginas mais bonitas da Missão da Igreja: a opção pelos excluídos, pelas periferias e margens, como hoje diria o papa Francisco. A sua forma de missão insistia mais na fraternidade e testemunho de vida do que na pregação. Além do mais, num contexto muçulmano, praticou na perfeição o diálogo inter religioso. Quando adoeceu em pleno deserto, foi tratado pelos tuaregues. Percebeu que todos estavam a viver uma experiência única de fraternidade universal. Morto neste esquecido campo missionário, ninguém imaginaria que teria seguidores. Mas, mais de um século após a sua morte, verificamos que a sua vida é uma inspiração para milhões de pessoas, tendo mesmo dado origem a dez Famílias Religiosas. A sua canonização vem atestar a fecundidade da sua vida e da sua missão.
Na encíclica Fratelli Tutti, o Papa Francisco rasga-lhe enormes elogios na conclusão deste documento fundamental. Diz: ‘Quero terminar lembrando uma outra pessoa de profunda fé, que, a partir da sua intensa experiência de Deus, realizou um caminho de transformação até se sentir irmão de todos. Refiro-me a Carlos de Foucauld’ (FT 286). E conclui: ‘O seu ideal de uma entrega total a Deus encaminhou-o para uma identificação com os últimos, com os mais abandonados no interior do deserto africano. Naquele contexto, afloravam os seus desejos de sentir todo o ser humano como um irmão, e pedia a um amigo: ‘Peça a Deus que eu seja realmente o irmão de todos’. Mas somente identificando-se com os últimos é que chegou a ser irmão de todos. Que Deus inspire este ideal a cada um de nós’ (FT 287).
Voltemos a Roma, à Praça de S. Pedro. A enorme euforia que ali se viveu traduzia a força da santidade destes dez testemunhos qualificados do Evangelho. O Papa Francisco lançou um desafio: ‘Servir o Evangelho e os irmãos, oferecer a própria vida sem retribuição – fazê-lo em segredo: oferecer sem esperar retribuição –, sem buscar qualquer glória mundana, mas escondido humildemente como Jesus: a isto somos chamados também nós. Os nossos companheiros de viagem, hoje canonizados, viveram assim a santidade: abraçando com entusiasmo a sua vocação – uns de sacerdote, outras de consagradas, e outros ainda de leigo –, gastaram-se pelo Evangelho, descobriram uma alegria sem par e tornaram-se reflexos luminosos do Senhor na história. Um santo ou uma santa é isto: um reflexo luminoso do Senhor na história’.
Termino com a Oração do Abandono: ‘Meu Pai, Eu me abandono a Ti, Faz de mim o que quiseres. O que fizeres de mim, Eu Te agradeço. Estou pronto para tudo, aceito tudo. Desde que a Tua vontade se faça em mim, E em tudo o que Tu criastes, Nada mais quero, meu Deus. Nas Tuas mãos entrego a minha vida. Eu Te a dou, meu Deus, Com todo o amor do meu coração, Porque Te amo, E é para mim uma necessidade de amor dar-me, Entregar-me nas Tuas mãos sem medida, Com uma confiança infinita, Porque Tu és…Meu Pai!’.