O terceiro Evangelho [Lucas] é aquele que guarda mais relatos de mulheres: é, por exemplo, o único que conta a história de Isabel (1, 5-25), Maria (1, 26-56), Ana (2, 36-38), a viúva de Naim (7, 11-17), Maria Madalena, Joana, Susana e as outras mulheres que seguiam Jesus (8, 1-3), Marta e Maria (19, 38-42), a mulher encurvada (13, 10-17), a mulher que procura a moeda perdida (15, 8-10), a viúva insistente (18, 1-8) e as mulheres de Jerusalém que chora atrás da cruz (23, 27-31). Para lá daquelas mulheres cuja referência partilha com os outros Sinópticos, como é o caso da sogra de Simão (5, 38-39; Mateus 8, 14-15; Marcos 1, 29-31), a hemorroíssa e a filha de Jairo (8, 40-56; Mateus 9, 18-26; Marcos 5, 21-43), a viúva que dá tudo quanto tinha para o tesouro do Templo (21, 1-4; Marcos 12, 41-44), as mulheres galileias que descobrem o túmulo vazio (24, 1-8; Mateus 28, 1-8; Marcos 16, 1-8).
Para um leitor de Lucas não é, portanto, estranho que uma mulher acorra à procura de Jesus. O encontro com mulheres pontua o caminho de Jesus. E à partida sabe-se que muitas acolhiam a mensagem e a pessoa de Jesus. O aparecimento de uma mulher acaba sempre por trazer um elemento positivo à narração.
O primeiro dado inesperado, por parte do narrador, é o modo como apresenta a mulher: «uma pecadora». Isto é tanto mais espantoso, quando sabemos que Lucas não caracteriza moralmente outros personagens. E, precisamente em relação aos pecadores, ele distingue-se por uma grande delicadeza, feita de silêncio e reserva. Embora alguns comentadores digam tratar-se de uma prostituta isso não nos é referido por Lucas, que poderia ter utilizado o substantivo πóρνη, como o faz noutra passagem, Lucas 15,30. Afirma-se simplesmente que era uma pecadora da cidade (v.37), e tal é reiterado pelo próprio fariseu (v.39).
A mulher irrompe pela narrativa. A sua presença não tem, como no caso anterior, a legitimidade de um convite formulado. Nem ela surge por si, mas porque Jesus se encontra à mesa do fariseu. É, portanto, desde o início, um personagem que se coloca na órbita de outro e assume essa dependência.
Uma justificação que o narrador subtilmente avança para a entrada da mulher deve ler-se no destaque concedido ao alabastro, com perfume, que ela traz: por um lado, o objecto oferece à mulher um motivo, uma função; e, por outro, empresta uma espécie de ingrediente novo e específico à narrativa. Basta comparar 7, 36-50 com 11, 37-54 e 14, 1-24 que mostram sobretudo como Jesus reage às abluções, às disputas dos lugares ou à lógica retributiva que presidia à organização dos banquetes. O perfume como que fornece o móbil que depois a própria trama se encarregará de intricar: a qualidade do acolhimento a Jesus.
É difícil permanecer indiferente ao trânsito deste personagem que nos é descrito num impressionante regime de showing. A mulher entra e sai em silêncio, mas o leitor sente que a sua passagem se revestiu de uma eloquência ímpar. Em vez de palavras ela utilizou uma linguagem plástica, talvez mais contundente que a verbal. Representou, como actriz solitária, no palco da casa do fariseu, o seu monólogo ferido: com o seu pranto prolongado, os cabelos a arrastar-se pelo chão do hóspede, numa coreografia humilde e lancinante, os beijos e o perfume que mais ninguém ali teve a preocupação de ofertar a Jesus. A qualidade penitenciai do personagem é testemunhada pelo território simbólico em que ela opera, os pés de Jesus, sete vezes referidos, e pela convulsão da sua figura (pois «desatar o seu cabelo em presença do homem era considerado, para uma mulher, uma grande desonra»).
Nas passagens paralelas a Lucas 7, 36-50 (Marcos 14, 3-9; Mateus 26, 6-13; João12, 1-8) a mulher unge Jesus, mas não chora. No episódio lucano as suas lágrimas substituem a água da hospitalidade que faltou. «Pelas minhas lágrimas, eu conto uma história», explica Roland Barthes. Segundo aquele ensaísta as lágrimas são uma realidade tudo menos insignificante. Porque temos muitas formas de chorar e essas revelam não só a intensidade do nosso desgosto, mas também a natureza da nossa sensibilidade. Porque ao chorar, mesmo na mais estrita solidão, nos dirigimos a alguém: esforçamo-nos para o outro não ver que nós choramos, mas a verdade é que nós choramos sempre para um outro ver. Porque as lágrimas emprestam um realismo particular, dramático à expressão de nós próprios. Na tradição bíblica é muito comum que o pranto acorde no homem a consciência da dependência divina. Ele reconhece a sua insuficiência, a debilidade das suas seguranças e reclama a intervenção favorável e protectora de Deus (1 Samuel 1, 10; Lamentações 1, 16).
A inominada não cumpre os rituais de hospitalidade ao serviço da casa do fariseu. Em relação ao fariseu ela é uma intrusa, e não uma associada. O seu nexo é com Jesus: os seus gestos, tão distantes, na sua emotividade, daquela delicada indiferença que se requer a quem habitualmente presta, aos hóspedes, esse serviço, são interpretados por Jesus como uma forma de acolhimento na fé: por isso, de pecadora a mulher passará a perdoada. E a transformação do estatuto da mulher derrama um perfume novo não só na perícope, mas pelo próprio Evangelho.
Uma mulher aos pés de Jesus
Um fariseu convidou-o para comer consigo. Entrou em casa do fariseu, e pôs-se à mesa. Ora certa mulher, conhecida naquela cidade como pecadora, ao saber que Ele estava à mesa em casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com perfume. Colocando-se por detrás dele e chorando, começou a banhar-lhe os pés com lágrimas; enxugava-os com os cabelos e beijava-os, ungindo-os com perfume. Vendo isto, o fariseu que o convidara disse para consigo: «Se este homem fosse profeta, saberia quem é e de que espécie é a mulher que lhe está a tocar, porque é uma pecadora!» Então, Jesus disse-lhe: «Simão, tenho uma coisa para te dizer.» «Fala, Mestre» – respondeu ele. «Um prestamista tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos denários e o outro cinquenta. Não tendo eles com que pagar, perdoou aos dois. Qual deles o amará mais?» Simão respondeu: «Aquele a quem perdoou mais, creio eu.» Jesus disse-lhe: «Julgaste bem.» E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: «Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste água para os pés; ela, porém, banhou-me os pés com as suas lágrimas e enxugou-os com os seus cabelos. Não me deste um ósculo; mas ela, desde que entrou, não deixou de beijar-me os pés. Não me ungiste a cabeça com óleo, e ela ungiu-me os pés com perfume. Por isso, digo-te que lhe são perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas àquele a quem pouco se perdoa pouco ama.» Depois, disse à mulher: «Os teus pecados estão perdoados.» Começaram, então, os convivas a dizer entre si: «Quem é este que até perdoa os pecados?» E Jesus disse à mulher: «A tua fé te salvou. Vai em paz.» (Lucas 7, 36-50)
José Tolentino Mendonça, In “A Construção de Jesus”, ed. Assírio & Alvim
Adaptação: Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura