Entrevista: «Não se pode ficar um ano à espera», afirma o cardeal-patriarca sobre nomeação do sucessor

D. Manuel Clemente, patriarca de Lisboa desde 2013, completa este domingo 75 anos de idade, na qual o Direito Canónico exige a apresentação da renúncia ao ministério. A nova etapa do serviço episcopal no Patriarcado, a crise dos abusos sexuais, o processo sinodal e o impacto da Jornada Mundial da Juventude são alguns dos temas em destaque nesta entrevista do cardeal português à Agência ECCLESIA

 

Entrevista conduzida por Paulo Rocha

 

Foto: Agência ECCLESIA/MC

O 75.º aniversário é a ocasião em que, normalmente, se apresenta a renúncia ao Papa. Acredito que já realizou ou vá realizar, faz parte do decorrer normal do governo na Igreja Católica…

Sim, está absolutamente nas mãos do Santo Padre. No que diz respeito à Diocese de Lisboa tem uma circunstância particular: costuma, habitualmente, ser acompanhada por quatro bispos, um diocesano e três auxiliares, mas acontece que agora estamos noutra situação. Faleceu-nos o senhor D. Daniel [Batalha Henriques], ainda com 57 anos, em novembro passado; o senhor D. Joaquim [Mendes] fez 75 anos em março, eu faço-os agora; o senhor D. Américo [Aguiar] está inteiramente envolvido na Jornada Mundial da Juventude há meses, até há anos, e agora com esta nomeação cardinalícia, vamos ver o que o Papa lhe vai pedir. Portanto, a Diocese de Lisboa está num estado em que precisa, digamos assim, de ser recomposta na sua equipa episcopal.

 

Foi isso que disse no Programa Pastoral …

É. E isso terá de ser feito, necessariamente, por quem vier a presidir a essa equipa, não pode ser por mim. Se eu agora propusesse outros nomes, a resposta era óbvia: “não, espere aí que venha o seu sucessor e ele que escolha os seus colaboradores”. O que é absolutamente natural.

Isso significa que, num tempo em que as vésperas da Jornada Mundial da Juventude já cá estão, em que se acelera tudo o que é preciso fazer para que ela corra da melhor maneira, depois vem um novo ano pastoral, que começa aqui, geralmente, a 1 de setembro. Precisará de alguém que reorganize a vida da diocese, em termos episcopais. E que também proponha ao Papa os seus colaboradores. Portanto, estamos nesta fase, mas como digo: está tudo nas mãos do Santo Padre, ele decide como entender.

 

Na sua opinião, depois da Jornada Mundial da Juventude, o início do ano pastoral será ocasião dessa reconfiguração episcopal?

Sim, acho que ficava bem “ano novo, vida nova”, também em termos pastorais. Por isso, era uma boa altura de recomeçar, também sem demorar muito. O rescaldo da Jornada será, certamente, muito grande, em termos de envolvimento das pessoas, de projetos, de sonhos, mas é preciso que haja um centro que faça isso mesmo, que centralize tudo e o leve por diante, em colaboração com o clero e com os fiéis que militam na nossa diocese e que, graças a Deus, são muitos. É preciso que haja uma orientação, não se pode ficar um ano à espera daquilo que tem de começar imediatamente.

 

Por vezes acontece, com muitos bispos, com o patriarca de Lisboa, o Papa pedir mais um ano, dois anos, de serviço. Estaria disponível para isso?

Estou disponível para o que o Papa entender. Mas há esta circunstância que eu relatei, que faz de Lisboa um caso com alguma urgência, porque corre o risco de ficar suspensa e não pode ficar, tem de continuar, certamente com outros protagonistas.

 

A nomeação do bispo auxiliar D. Américo Aguiar, como cardeal, a escolha do Papa, pode ter alguma interferência neste processo de nomeação?

Eu julgo que não, a escolha do Papa tem muito a ver com o conhecimento direto que ele tem do senhor D. Américo, porque nesta preparação da Jornada, os contactos foram muitos, como aliás foram muito mediatizados também, com aquelas mensagens que lhe pediu e que o Papa se prontificou a enviar, para todos os setores – padres, leigos, enfim, toda a gente, sociedade em geral. Isso deu ao Santo Padre um conhecimento muito direto das capacidades, que graças a Deus são muitas, do senhor D. Américo. É natural que o tenha escolhido, para colaborador mais próximo, seja em Roma, seja onde for, porque hoje em dia também não há distâncias em termos de colaboração, com este mediatismo que nos permite estar em todo o lado e fazer as mais diversas tarefas, seja onde for. Atribuo-o a isso mesmo, ao conhecimento direto, que o Papa teve ocasião de manter, com o senhor D. Américo. E, quanto a mim, escolheu muito bem.

 

Na sua opinião, isso pode levar a uma colaboração próxima com o Papa, nomeadamente na Santa Sé?

Poder, pode. Não sei se será esse o caso, veremos. Aqui estamos também na expectativa. Para já, estamos a trabalhar na Jornada.

 

Foto: Agência ECCLESIA/MC

Uma questão que se foi levantando, a respeito do pedido de renúncia de D. Manuel Clemente, é se o apresentou agora, nesta circunstância, ou há mais tempo…

Foi, concretamente, depois do falecimento do senhor D. Daniel. Porque eu reparei nisto, nestas circunstâncias: um foi para o Céu, outro está na terra, mas já fez 75 anos, outro faz 75… é absolutamente necessário olhar para Lisboa e esse olhar passa, com certeza, por quem tem de reorganizar o serviço episcopal. E não sou eu.

 

A necessidade do combate aos casos de abusos, no ambiente da Igreja, também motivou esse pedido?

Não, não diretamente, porque esse é um trabalho que estamos a fazer, intensamente, já há vários anos, não é de agora. Houve aquela peripécia que me tocou, há um ano, e que tive ocasião de esclarecer, para quem quis ser esclarecido. E não foi só nos últimos anos, vai ser nos próximos. Espero, e não só eu, também a Comissão Independente, que fez aquele relatório, vários políticos que se têm pronunciado nesse sentido, que este exemplo da Igreja sirva para que, em todas as realidades da nossa sociedade, onde há crianças, adolescentes e jovens, se faça da mesma maneira, porque temos de ter uma enorme atenção a esta problemática, que infelizmente não decresce, cresce. E só pode ser respondida pela sociedade, no seu conjunto, não há outra hipótese.

 

Ainda sobre o processo de escolha do seu sucessor, disse por ocasião da Missa Crismal de 2023, que seria a última a que presidia com o presbitério de Lisboa. Continua nessa disposição?

Pois, porque como digo, apresentei a situação de Lisboa ao Santo Padre em novembro passado, a Missa Crismal já foi no princípio de abril e aproveitei a ocasião, de ter tanto clero junto, que é uma ocasião única, para dizer que tudo levava e leva a crer que seria a última vez que celebrava a Missa Crismal com eles, nesta condição.

 

Entre os acontecimentos desta década estiveram a celebração dos 300 anos da qualificação patriarcal da Diocese de Lisboa e o Sínodo Diocesanos. Seriam alguns do que selecionaria como marcos?

Como marcos, exatamente. A vida da Igreja acontece todos os dias, na vida dos cristãos e das cristãs, sejam eles quem forem e onde estiverem. Isso é a vida normal da Igreja, aqueles que são padres e têm ministérios acompanham, com a Palavra, os sacramentos, com a orientação, esses outros irmãos e essa é a vida normal da Igreja, aquilo a que nós chamamos ação pastoral. Mas eu creio que, na vida da Igreja, sobretudo assim no conjunto, tem de haver, de tempos a tempos, marcos, para utilizar o termo, que reúnam, congreguem, e também animem, reanimem isso mesmo que, depois, se faz no dia a dia. Aliás, se repararmos naqueles dois, três anos de vida pública de Jesus, também aconteceu: Ele ia acompanhando as pessoas, no primeiro ano, ano e meio, esteve mais ou menos estabelecido em Cafarnaum, na casa de Pedro, e andava à volta do lago; depois teve momentos de grande ajuntamento de pessoas, lembremo-nos da multiplicação dos pães, as bem-aventuranças, etc. Eu creio que, na vida da Igreja, como aconteceu na própria vida pública de Jesus, isto tem de acontecer, ou seja, o estar, o acompanhar, o tentar resolver ou ajudar a resolver os problemas, e, por outro lado, ter momentos em que todos nos juntamos e, de toda a maneira, nos animamos uns aos outros, para prosseguir. Isso que aconteceu em Lisboa também fiz no Porto, fui para lá em 2007 e rapidamente, com os outros agentes pastorais, fomos falando sobre como haveríamos de fazer qualquer coisa em conjunto. Fizemos a Missão 2010, que durou todos os meses desse ano, procurando que as comunidades, naquilo que já faziam, desde as janeiras às tradições quaresmais, aos santos populares, mesmo ao lugar que os defuntos têm no mês de novembro, se fizesse com um sentido missionário, que se fosse um pouco mais longe, que se chegasse a lugares onde habitualmente não se chegava, e de outra maneira. Nalguns casos, aconteceu. Depois, feita essa Missão 2010, começámos a pensar noutro horizonte, que aliás nos foi sugerido pelo Papa Bento XVI, com o Ano da Fé, e fizemos aquelas jornadas vicariais da fé. Aqui em Lisboa, quando cá cheguei, também comecei a olhar para o calendário mais largo, para o que havia no horizonte, e lembrei-me: em 2016, são os 300 anos da qualificação patriarcal de Lisboa. Isto podia ser apenas uma razão de festejo, mais ou menos cultural, com alguma celebração, mas porque é que havia de ser só isso? Se na própria constituição do Patriarcado se refere o esforço missionário, vamos fazer disto uma ocasião de relançamento missionário…

Foto: Agência ECCLESIA/MC

Entretanto, o Papa Francisco, em 2013, escreveu-nos a exortação inaugural, as linhas de força do seu pontificado, a ‘Evangelii Gaudium’, e diz que “agora, cada bispo, na sua diocese, ative tudo aquilo que é instância de colaboração e de programação, para pôr em prática este programa”. E foi o que nós fizemos, em 2014, 2015, 2016, a exortação tem cinco capítulos e reunimos vários grupos sinodais, foram centenas de grupos, pela diocese fora, que congregaram mais de 20 mil pessoas, ao longo desse tempo. Cada trimestre, estudavam um dos cinco capítulos, mandavam o resumo daquilo que tinham refletido, para a equipa do Sínodo, e com tudo isso fez-se o Sínodo Diocesano, no final de 2016, de que saiu a Constituição Sinodal de Lisboa, que são as linhas-mestras, em 70 números, daquilo que tentamos levar por diante, no que diz respeito à Palavra, à oração, litúrgica e não só, à ação sociocaritativa, ao incremento das instâncias de corresponsabilidade – Conselhos Pastorais, Conselhos Económicos, enfim, tudo aquilo que é trabalho de conjunto, no fundo de sinodalidade.

 

Essa foi uma ocasião de inclusão, de chegar a quem poderia não estar já a participar?

Eu creio que muito mais gente teve a consciência de que isto era importante, ou seja, de que na Igreja nós somos participantes, não somos espectadores. Não vamos à Missa como se vai ao teatro, como se vai ao cinema, enfim, muito dependentes da música que se cante ou do ator que esteja lá à frente a fazer a homilia, não é? Claro que todos esses elementos são importantes, para que tudo corra bem, mas a Missa somos nós em celebração. E no que diz respeito aos outros aspetos, também: por exemplo, se uma paróquia tem uma atividade sociocaritativa, como muitas têm, é muito grande esta rede de ação sociocaritativa de base paroquial, e não só, que as pessoas sintam isso, cada vez mais, como uma coisa sua e não apenas algo que está ali ao lado e nem se dá por isso… a mesma coisa no que diz respeito a todos os aspetos da vida da Igreja, que as comunidades incentivem este trabalhar em conjunto, que tenham realmente Conselhos Pastorais a funcionar. Senão, claro, podemos ter muito boas intenções, fazer grandes discursos sinodais, mas se isso não acontece no concreto, na prática das comunidades, se as pessoas não são constantemente estimuladas a participar, vejam lá…

 

Que avaliação faz da aplicação das propostas?

Julgo que, em termos de consciência, se cresceu. Foi muita a insistência, quer minha, quer dos meus colegas, de todos os outros responsáveis diocesanos pela pastoral, foi tanta a insistência e é, continua a ser, que se tem andado nesse sentido. Em qualquer um destes sentidos. Agora, no concreto há sempre muito trabalho a fazer, porque hoje em dia há outro fator que não ajuda muito: antigamente, as comunidades rurais, e não só, como eram muito estáveis, as pessoas viviam grande parte da sua vida, senão a sua vida toda, no mesmo sítio, sentiam tudo aquilo como muito seu: a sua Igreja, até no aspeto material, de conservação; as suas festas, as suas atividades normais, a catequese. Hoje em dia, com toda a gente a andar para um lado e para outro, é muito mais difícil estabelecer esta composição comunitária, que é absolutamente necessária para a vida da Igreja. Se não há esta vida comunitária, muito dificilmente depois há aperfeiçoamento cristão, porque Jesus prometeu que estaria no meio de nós, não é no meio de mim. No meio de nós. Qual é o nós, hoje, tão disperso, tão fugitivo? É uma Diocese de Lisboa que terá uma população residente de cerca de 2 milhões de pessoas, e que depois tem muito mais gente na sua população flutuante, que pode ir até aos 2,5 milhões – pessoas que vêm cá trabalhar, mas não moram aqui, ou que hoje estão cá e amanhã já não estarão. Tudo isto é movediço, portanto, fazer a tal sinodalidade, caminhar em conjunto, implicar conhecermo-nos, hoje, e voltar-nos a conhecer amanhã, para o ano também, e acompanharmos. As famílias conhecem-se, os filhos, os idosos, se estão doentes… mas isso requer estabilidade. É um grande problema, não só para a Igreja mas também para a sociedade, e é um grande desafio para a Igreja em função da sociedade. Não podemos esquecer que, num país como Portugal, a primeira agregação da sociedade foram as chamadas freguesias, isto até antes da constituição do país. Freguesias significa “filhos da Igreja”, mas não é da Igreja em geral, é daquela Igreja, onde eram batizados e depois também sepultados, entretanto o resto…

Havia uma base territorial e social que permitia essa convivência, fazia com que as pessoas sentissem aquilo como seu. Ainda hoje, mesmo com toda esta mobilidade, pessoas que moram durante décadas, por exemplo, aqui em Lisboa, no Natal e na Páscoa vão “à terra”, à terra onde já não estão há meio século, porque ainda há resquícios dessa pertença. Refazer estas pertenças, estas vizinhanças, é um enorme desafio para a sociedade em geral, e se a Igreja puder contribuir também, com esta sua revitalização comunitária, certamente intercomunitária, hoje não será de outra forma, para que a sociedade se reencontre, será um bom contributo, outra vez.

 

Que expectativa tem para a Assembleia do Sínodo, em Roma, no mês de outubro, e para novas perspetivas que daí possam surgir sobre essa reconfiguração comunitária da Igreja, a inclusão de diferentes periferias?

Eu posso alargar, agora, ao âmbito da Igreja aquilo que estava a dizer em relação a Lisboa: esta movimentação constante das pessoas, de um lado para o outro, e hoje em dia em termos até de migrações, de refugiados – não só de uma maneira normal, porque se quer ir para ali, porque tem mais condições, mas porque se tem de sair porque aqui já não é possível viver. Com todos estes fatores que notamos, uns positivos e outros muito negativos, até, torna-se muito difícil refazer a sociabilidade. Muito difícil. Estarmos a falar de sinodalidade sem haver uma pertença social é muito complicado.

Claro que uma assembleia como o Sínodo será uma ocasião para se refletir, a nível global, aquilo que fizemos em Lisboa e noutras dioceses, com iniciativas semelhantes, com contribuições de todo o mundo, quer de eclesiásticos, quer de leigos, pessoas que estão especialmente ligadas a todos estes dinamismos sociais, especialistas, outros que vivem estas realidades. Certamente, alguma coisa resultará, mas eu devo dizer que resultará se nós, antes, durante e depois, não só como Igreja mas também como sociedade, nos reencontrarmos também. Porque não há sinodalidade sem nos encontrarmos. Sínodo significa um caminho que se faz em conjunto, mas qual conjunto? Estarmos ali um mês a falar, os que lá estiverem, ou encontrar-se, eventualmente, onde estivermos? Não dá, a prioridade pastoral da Igreja do nosso tempo é refazer a sua dimensão comunitária, em termos que nós hoje não sabemos como vão ser, porque as pessoas, do ponto de vista das comunicações, estão muitas vezes mais na virtualidade do que na presença. A presença não se liga e desliga com um botão. É outra coisa, é um enorme desafio, uma enorme complicação que está por diante e que se tem de descomplicar.

 

A respeito dos casos de abusos sexuais na Igreja, foram divulgados processos e afastamento de funções pastorais de alguns sacerdotes, no Patriarcado de Lisboa. Como estão esses processos?

Os processos que decorreram em Lisboa, de acordo com aquilo que nos foi indicado pela Comissão Diocesana de Proteção de Menores, que eu tenho seguido estritamente, andaram para diante, no que diz respeito às investigações prévias, e só não estão concluídos porque tudo isto agora tem de ir para Roma. Tem de ser entregue ao Dicastério [para a Doutrina da Fé], como já está a ser, e depois há que esperar pela decisão final. Tanto quanto sei das investigações e das conclusões, em relação aos quatro processos, em três há indicação para que as pessoas assumam plenamente as funções que tinham; no outro caso, talvez que assuma parcialmente as funções que tinha. Mas, como digo, isto tem de ir tudo a Roma, e esperamos a conclusão, porque não pode ser nossa, é do Dicastério, dos serviços do Papa, que chama a si essa decisão final. Da nossa parte, cumprimos tudo o que está previsto e andamos para a frente.

 

Acha que a Conferência Episcopal deveria levar por diante aquele gesto de fazer um memorial, de prestar homenagem pública às vítimas?

Sim, isso foi decidido numa Assembleia Plenária e, com certeza, será levado por diante. Agora, a melhor maneira de o fazer, não só esteticamente mas também com projeção para as pessoas que estejam, como momento de reflexão, de decisão, até, para que as coisas não se repitam, no que têm de negativo, isso aí já não sei. Não ficará para as calendas gregas.

 

E na Jornada Mundial da Juventude?

Estamos tão perto, eu ainda não vi projeto nem programa, mas as coisas não estão esquecidas.

 

O gesto e o acolhimento, a homenagem que se possa fazer às vítimas, de proximidade e de ajuda, acontece com o que o Papa decidir fazer na Jornada?

Sim, como tem acontecido noutros sítios, mas o Papa faz isso sempre muito discretamente e só se sabe depois como foi e onde. Isso por causa das próprias pessoas, que já foram vitimadas e agora não querem ser publicitadas, naturalmente.

 

Falemos da Jornada Mundial da Juventude. Acredito que se recorde do momento em que pensou apresentar a candidatura de Lisboa, para esta Jornada. Alguma vez se arrependeu?

Não, nunca me arrependi. Aliás, devo dizer que estou na Conferência Episcopal desde o final de 1999, ainda como bispo eleito, e várias vezes isto vinha à tona, quando ouvíamos falar numa Jornada ou quando nós próprios participávamos em Jornadas, como bispos, etc. Depois refletíamos, “isto era tão bom que existisse em Portugal”… chegou-se a pensar, por exemplo, em 2017, no centenário de Fátima, mas claro que Fátima não teria possibilidade disso, porque não cabem no recinto um milhão e tal de pessoas, não há capacidade sequer, ali à volta, de acolher tanta gente, não há vias de comunicação, o comboio fica longe, há uma autoestrada com duas faixas que entupia ao fim de um quarto de hora. Enfim, estas coisas práticas.

Depois pensava, quando estava no Porto, olhando para a geografia da cidade e arredores, mas quando regressei a Lisboa e se começou a falar na Jornada do Panamá, em 2019, mas ainda antes disso, a ideia começou a germinar, olhando aqui para estes arredores, à volta, talvez, talvez seja possível… também fui falando, claro está, com os meus colegas das outras dioceses, porque isto tem de se fazer em conjunto. Todos eles foram muito favoráveis, o que já vinha de trás, aliás; depois também falei com todas as autoridades do Estado, desde a Presidência da República às Câmaras Municipais mais diretamente envolvidas, em todo o lado encontrei muito entusiasmo, muito boa vontade, não só pela marca Portugal ficar, assim, uma semana em evidência, nos ecrãs mundiais, mas pelo que isto significa de mobilização juvenil, de refrescamento até da própria sociedade portuguesa. Apresentei a candidatura ao Papa, o Papa aceitou-a até com gosto, rapidamente.

Dá-me a ideia de que há outro fator que contribuiu: há muito que, em Roma, porque estas Jornadas são iniciativa romana, se pensa fazer uma Jornada em África, que ainda não se conseguiu fazer, porque, como estamos a ver em Portugal, isto envolve custos e grandes organizações que não são fáceis – aliás, com o crescimento das Jornadas, estou para ver se no futuro será assim tão fácil continuar a fazê-las com esta dimensão. Espero que sim, pelos bons frutos que resultam.

Olhando aqui para a geografia, reparamos que Portugal está aqui nesta ponta sudoeste da Europa, a olhar para o Atlântico, em frente a América, logo aqui em baixo tem a África, as nossas relações multisseculares, a presença de muita população africana em Portugal, em crescimento mesmo entre o clero, entre os fiéis – temos aqui paróquias onde a maior parte dos que lá estão são oriundos de África, em primeira, segunda ou terceira geração. Creio que todos estes fatores contribuíram para que a escolha do Santo Padre fosse Lisboa. Havia mais candidaturas, creio que mais duas da Europa, pelo menos…

 

E isso vai traduzir-se numa presença africana na Jornada, com elementos concretos?

Sim, muito. E, como digo, nem precisavam de vir de África, porque já aqui estão muitos, graças a Deus, em Lisboa e em Portugal inteiro. Aliás, veem peregrinos de quase todos os países do mundo, segundo me dizem os que estão mais ligados a este aspeto da organização, por isso será uma Jornada verdadeiramente mundial, também neste aspeto.

 

Será, para a Igreja Católica em Portugal, uma ocasião de aproximação aos jovens e entre a Igreja e a sociedade?

Eu creio que sim, sobretudo de uma presença muito cativante e motivadora como é sempre a presença juvenil. Já é: se começarmos a fazer umas contas por alto, a organização da Jornada não se faz apenas nem sobretudo nesta equipa centrada, chamada COL. Ela começa na base, com os Comités Organizadores Paroquiais, e nas tantas paróquias que há no país, quase todas têm o seu Comité Organizador, envolvendo jovens, diretamente. Alguns já estão a trabalhar há três anos, com tarefas concretas e constantes, até porque a Jornada decorrerá aqui em Lisboa, mas é precedida por essa semana nas dioceses. Em cada diocese. Portanto, isto envolve milhares de jovens, dezenas de milhares de jovens, não apenas como participantes, mas como organizadores.

Depois há os Comités Vicariais, que reúnem conjuntos de paróquias, e os diocesanos. Se os juntarmos, são dezenas de milhares de jovens que, há três anos, estão a trabalhar nisto.

 

Há o risco de desmobilizarem, no dia 7 de agosto?

Em relação à Jornada, obviamente, acabou o trabalho. Mas tenho a certeza de que esta experiência militante fica e será uma nova geração para a sociedade portuguesa.

 

Não será necessário traçar novas metas?

Sim, que não serão estas, de qualquer maneira. Voltamos ao início da nossa conversa, quando disse que a vida da Igreja decorre nestes dois âmbitos: o âmbito da vida de todos os dias e naqueles momentos mais fortes, que nos motivam para trabalharmos melhor. Este é um momento mais forte, mas esta experiência de militância, de tantos milhares de jovens, certamente vai criar uma geração, a geração 2023, e isso vai-se notar nas décadas seguintes. Não tenho dúvida nenhuma.

 

Vai notar-se também na participação?

Com certeza, porque quem participou tanto, quem mobilizou tanto, depois não fica a ver. Ganhou o hábito de participar, de estar, de sentir isto como coisa sua, quer na Igreja quer na própria sociedade.

 

Um estudo da Universidade Católica apontava para 50% de jovens que se afirmam católicos, muitos deles praticantes. Estes números surpreenderam-no?

Não me surpreendeu muito ou, se quiser, até digo de outra maneira: olho para trás, para os longínquos tempos da minha juventude, na minha terra, e quando eu vejo, faço contas, de todos os meninos e meninas que andavam na instrução primária, da altura, quais os que estavam na catequese; e quando olho depois, mesmo os que estavam na catequese, quando chegaram à juventude, e continuaram a participar na vida da Igreja, estes números de quase 50% dizerem-se católicos e desses tantos se assumirem praticantes, não ficam atrás. Mais: naquela altura, ainda havia assim uma cobertura institucional, era tudo católico, quase que se confundia o ser português com o ser católico. Hoje, não: hoje estamos numa sociedade muito polarizada, de muitas pertenças, de muitas conexões. Haver esse número, em relação ao que era no meu tempo e com esta alteração das circunstâncias, é muito positivo. Se me surpreendeu, foi pela positiva.

 

No Plano Pastoral para o próximo ano, diz que a JMJ constitui algo marcante e criador de futuro. É a tal geração 2023?

A geração 2023, não tenho dúvidas nenhumas. Todos estes que participaram mais diretamente, e são dezenas de milhares, contando toda esta malha que há bocadinho referi, das paróquias às dioceses e o nível nacional, todos eles, tão vinculados à organização de um acontecimento assim, marcarão isso mesmo na sociedade e na Igreja. Não tenho dúvidas.

 

Que expectativas deposita nessa geração 2023, em termos concretos de participação e de reconfiguração comunitária?

É a capacidade de sonhar, a capacidade de realizar, de ter a experiência de fazer uma coisa que parecia absolutamente extraordinária, além das suas capacidades, e que a conseguiram fazer. Isto fica, isto é uma enorme revelação para eles próprios, quer no que respeita à sociedade, quer no que respeita à Igreja. Aliás, eu propus aqui aos meus colegas das Vigararias da diocese, que quando chegar a outubro, reúnam os que participaram nestas equipas vicariais, e não só, partilhem a experiência que fizeram e, de certa forma, pensem como é que agora vão canalizar isso, nas suas paróquias – e posso alargar isso aos Institutos, aos movimentos – para o futuro. Certamente teremos surpresas, boas.

 

Poderemos ter surpresas a respeito da organização das Jornadas Mundiais da Juventude, estes encontros com milhões de jovens, podem ter uma nova configuração no futuro?

Se se alargar muito, o problema é quem será capaz de as organizar. Porque nós estamos a olhar para Portugal e vemos tudo o que foi preciso juntar, as boas vontades que se dispuseram, estamos num país onde há um bom lastro católico. Mas isto é assim em todo o mundo? Não é. Até em continentes inteiros, na Ásia há algum país que tenha esta expressão católica e capacidade económica para organizar? Há, segundo me soa, parece que a próxima será exatamente num desses países asiáticos, que tem bom suporte económico e social, onde o catolicismo tem crescido, mas não haverá muitos. Tirando as Filipinas, onde já houve…

Olhamos também para a América Latina, os nossos amigos do Panamá foram uns heróis, em conseguir organizar; mesmo na Europa, que tem 500 milhões de habitantes, por aí… vamos ver.

 

Umas das propostas que foram feitas para a própria Jornada Mundial da Juventude era ter um caráter ecuménico, não ser só da juventude católica, mas da juventude cristã, por exemplo…

Quer no campo inter-religioso, quer no campo ecuménico, as Jornadas estiveram sempre abertas. Isso, qualquer uma das nossas igrejas, quando vamos celebrar, a porta está aberta para quem quiser entrar. Muita gente entra e, às vezes, até começa uma aproximação ao Cristianismo dessa maneira. As Jornadas sempre estiveram, desde o princípio, abertas à participação de quem quer vir, mas o sujeito que organiza é, obviamente, o Papa, e isso é uma marca católica indelével.

 

A dimensão ecuménica pode decorrer do perfil do próprio Papa?

Sim, com certeza. Tudo o que tem acontecido nas Jornadas, como aliás na vida da Igreja, está aberto, nós somos uma Igreja de portas abertas.

 

O que espera para o dia 7 de agosto, de que forma vai olhar para esta etapa na história da Diocese de Lisboa, de Portugal, do seu trabalho ministerial?

Nessa altura, só terei impressões. Como é sabido, tenho uma formação do tipo histórico, e o olhar requer mais distância. Sou capaz de ver o impacto que tiveram coisas como o Concílio Plenário Português, em 1926, na base da Ação Católica, na base da catequese organizada… isso sou capaz. Sou capaz de ver já, até, o impacto que teve o Concílio Vaticano II, agora, a Jornada, no dia 7, terei impressões. Daqui a uns tempos poderei dizer mais algumas coisas…

 

Mas essas impressões serão motivadoras para ações concretas…

Com certeza. Aliás, todos nós raciocinamos a partir das impressões, ninguém raciocina no vazio.

 

Fechamos esta conversa com a ocasião do seu aniversário. Disse que espera uma nova liderança para o Patriarcado, que possa reconfigurar também a equipa episcopal. Como cardeal, continuará a servir o que o Papa pedir, seja em Roma, seja cá…

Foi isso que ele me pediu e foi isso que eu prometi. Cá estou. Que haja vida e saúde.

 

E o gosto pela investigação histórica, vai ter mais espaço e tempo?

Isso para mim vem mesmo antes de estudar História. Desde pequenino, sempre ouvi histórias e contei histórias, sou um contador de histórias.

 

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Agência ECCLESIA

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