Caros irmãos sacerdotes, irmãos e irmãs em Cristo,
Celebramos, com alegria, a Missa Crismal, quando já estamos às portas do Tríduo Pascal. Se a Páscoa é o coração de toda a Liturgia da Igreja, então a Missa de hoje coloca-nos no limiar desse “coração”. E fá-lo, olhando para o Dom e Mistério do sacerdócio que, todo ele, está enxertado no Sacerdócio de Cristo.
Logo, no crepúsculo da tarde, celebraremos a Ceia do Senhor, a instituição da Eucaristia, para vivermos e fazermos memória da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus.
A Missa Crismal, portanto, é como que a entrada no Mistério da Páscoa, que nos encontra reunidos, como presbitério de Lisboa, e que constitui um dom especial do Senhor Ressuscitado.
Agradeço, por isso, a todos os Sacerdotes aqui presentes, porque hoje encontramo-nos juntos novamente, dando corpo e visibilidade ao presbitério. Todos! Mesmo aqueles que não podem aqui estar, por motivos de doença, ou razões de trabalho ou estudo distante, também os recordamos; assim como recordamos os irmãos que já partiram e já nos precedem no Céu, essa alegria da Páscoa eterna.
Vivamos, por isso, esta Páscoa com gratidão. Gratidão que desejo e quero expressar-vos, essencialmente, pelo que sois e fazeis enquanto Padres.
Jesus Cristo instituiu o novo e eterno sacerdócio, que se realiza plenamente na sua configuração mediadora, reconhecendo nós, com a Igreja de todos os tempos, que foi existencialmente e de forma prática, que o próprio Cristo desenvolveu e atuou essa sua condição de Mediador.
Enquanto verdadeiro Deus, Ele executa na perfeição a união e aderência a Deus, numa total obediência sacrificial e na absoluta consagração da sua vida humana à vontade do Pai; como verdadeiro homem, assume integralmente a condição humana, porque “só o que foi assumido será salvo”, e a sua conformação à humanidade manifestou-se na solidariedade plena pelos homens. Como refere o hino da Carta aos Filipenses: “Cristo Jesus, assumindo a condição de servo, tornou-Se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz” (Fil 2, 6-7). Ele foi tentado, sofreu, conheceu os grandes e pequenos dramas da humanidade, fê-los seus, até ao último suspiro.
A Revelação ensina que é na força incondicional da partilha e da solidariedade que reside um dos pilares da esperança libertadora. A profecia de Isaías, inspiradora da missão messiânica de Jesus, confirma-o quando acomete à dócil disponibilidade do Ungido pelo Espírito, de “levar a boa nova aos pobres, de proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos, e a proclamar o ano da graça do Senhor” (Is 61- 1-3; Lc 4, 18-19). E São Paulo estabelece uma ligação entre “a esperança que não engana e a dádiva do amor que Deus, pelo Espírito Santo, derrama em nossos corações” (cf Rm 5, 6). No mesmo sentido, o Papa Bento, na Encíclica Spes Salvi, ao falar dos lugares da esperança, focaliza na participação ao destino do outro, precisamente a força desse lugar, escreve: “Aceitar o outro que sofre significa, de facto, assumir de alguma forma o seu sofrimento, de tal modo que este se torna também meu. Mas, precisamente porque agora se tornou sofrimento compartilhado, no qual há a presença do outro, este sofrimento é penetrado pela luz do amor e da esperança”[1].
Caros irmãos, nada vos peço, somente vos proponho sermos juntos a força da “esperança que salva”, na medida em que realizarmos o nosso sacerdócio na esteia da proximidade e da participação nas vicissitudes da humanidade. No espírito da Gaudium et Spes 1: “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, (têm de ser) também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não pode existir realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”[2].
A partilha da situação de cada pessoa, na realidade da sua existência, é sem dúvida, o modo mais pertinente de derramar o bálsamo da esperança para curar as feridas da desilusão, do desespero, do cansaço e do desalento que atingem hoje muitas pessoas. Que o presbitério de Lisboa, atuante na fidelidade ao genuíno sacerdócio de Cristo, seja lugar existencial de esperança.
Ninguém fique indiferente ao atual estado de elevada fragilidade do nosso País: poder-se-á considerar que é meramente conjuntural, mas, para a vida real, é sinónimo de mais pobreza e maiores dificuldades. Por isso, partilhai a pobreza dos Pobres, comungai do sofrimento das Vítimas de todas as formas de abusos, partilhai a solidão dos que estão sós – e acendereis neles a luz da esperança numa vida nova.
Falando, ainda, da mediação, como dimensão estruturante do nosso sacerdócio, reconhecemos que ela é, realmente, de elevada abrangência.
Cristo vive e mantém viva a comunhão com o Pai e uma perfeita relação com a humanidade.
«A nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo» (1 Jo 1, 3) afirma São João, para revelar que a comunhão de amor de Cristo, Filho eterno do Pai, é a fonte de toda a comunhão da humanidade, com Deus e com o próximo. E só na comunhão de amor do Filho com o Pai, o Filho que em Cristo se fez homem, é possível e acessível aos homens entrarem na intimidade com Deus. Foi pela vinda do Filho até nós e pela efusão do Seu Espírito, que o mistério inacessível do Pai entrou em relação com os homens (filhos no Filho), e é por Ele que os homens acedem ao Pai.
O Catecismo da Igreja Católica afirma que “Jesus, o único mediador, é o caminho da nossa oração”[3]. E este ano, de preparação ao Jubileu, e dedicado à Oração, afigura-se como “um momento privilegiado para redescobrir o seu valor e a sua importância”[4], sobretudo para o atual contexto da era digital. O nosso múnus sacerdotal, desafia-nos a ser mais do que mestres de oração, exige que sejamos mediadores de relação. Que não valha apenas a experiência de Deus que um sacerdote faz, mas aponte-se para a experiência de Deus que uma comunidade, ou mesmo um povo inteiro, pode fazer através da experiência de Deus que o sacerdote vive.
Nesta celebração, também procedemos à bênção dos santos óleos, destinados à celebração dos mistérios fundamentais da vida cristã. Possuidor de um carater eminentemente terapêutico, o óleo instituiu-se como sinal sacramental da força salvífica de Deus, o que nos remete para a boa nova da salvação, qual libertação do mal e dádiva de vida nova. Assim, eles sinalizam ao sacerdote a sua vocação de “curador”; não um “Curador ferido”[5], como apregoava Carl Jung, mas, permitam-me dizer assim, como um “Curador curado”. Através da participação na morte e ressurreição de Cristo, passámos do homem velho ao homem novo. Através dos santos óleos, podemos ser força restauradora de vidas desfeitas e desprotegidas, de histórias interrompidas…
Neste momento, gostaria de descer ao concreto: ao drama da guerra, em muitas partes do mundo, e que, há mais de dois anos, assola a Ucrânia, barbaramente agredida pela Rússia, a que se juntou a má-nova da Guerra na Terra Santa. Não podemos, tão pouco, ignorar o sofrimento e o desamparo de tantas pessoas que, na sua condição de refugiados e migrantes, são vítimas de exploração e discriminações várias, mesmo entre nós. E, os recentes índices sociológicos revelam que a pobreza real não cessa de aumentar, estando já a atingir não só as classes mais desfavorecidas, mas também a classe média… é uma profunda amargura, que turva o horizonte do mundo.
Por isso, sintamos hoje com renovado vigor, que, enquanto padres, estamos investidos da vocação ao amor. À imagem do Sagrado Coração de Jesus que entra no Mistério da sua Paixão, como se mergulhasse num abismo infindável, abramos o nosso coração ao mistério da existência humana.
O óleo! Evoca o amor do Bom Samaritano; assinala a sabedoria e os critérios de Deus que escolheu e ungiu o jovem David; indica a fé, como a das virgens prudentes indo ao encontro do Esposo.
O óleo da unção, óleo da ternura e da delicadeza, mostra que o Senhor quer atrair com o Seu amor aqueles que vai curar e salvar. O óleo da unção é este óleo da cura: só quem é curado pode ser enviado a realizar a cura dos outros. Só quem primeiro encontra o amor de Deus na sua vida pode levar outros a descobrir que Deus os ama incondicionalmente. Só quem primeiro faz caminho de conversão pode ser iniciador de itinerários de conversão.
Caríssimos padres, somos ungidos porque o Senhor sabe e quer tocar a vida de cada um de nós para a transformar em sacramento de Cristo, o Bom Pastor. O Pastor é aquele que está sujeito a ser ferido, mas, principalmente, está disponível para dar a vida na defesa do seu rebanho, quando os lobos procuram arrebatar as suas ovelhas. E, também aí, sabemos que o Supremo Pastor vai ao encontro dos seus amigos.
Iluminados e conduzidos pelo Espírito de Cristo Ressuscitado, que o Patriarcado de Lisboa resplendeça como Igreja sinodal: na esperança, na comunhão e na missão. Ámen!
D. Rui Valério, patriarca de Lisboa
[1] Bento XVI, Spes Salvi, nº 38.
[2] Gaudio et Spes, nº 1 [3] Catecismo da Igreja Católica, nº 2674 [4] R. Fisichella: O Ano da Oração para semear esperança na vida da Igreja e do povo de Deus in https://www.vaticannews.va › vaticano › news › coletiv… [5] Claire Dunne, Carl Jung. Curador ferido de almas. Ed Alaúde. |