Lisboa: Homilia da Celebração da Paixão do Senhor

A glória da cruz, como chave da história

Caríssimos irmãos

De tudo quanto ouvimos e continua decerto a ecoar no nosso coração, falará mais alto a última frase de Cristo, e exatamente por ser tão total: «Tudo está consumado!» Como acontece na vida que só integralmente se vive; como acontece na Igreja, onde nada se pode reduzir; como acontecerá no mundo, que pede igual inteireza. Porque agora vivemos a partir do fim: do fim que Cristo atingiu, sofreu e venceu, atraindo o princípio em que ainda estamos, respondendo a todos os anseios e cumprindo toda a promessa.

Estamos, irmãos, e permanecemos, junto à cruz do Senhor. Aqui nos manteremos, como em lição nunca acabada, nunca por demais aprendida. Também como orientação definida do olhar e do espírito, para esse último ponto que Ele próprio garantiu: «Eu, quando for erguido da terra, atrairei todos a mim» (Jo 12, 32). A nossa presença aqui, bem como em idênticas celebrações pelo mundo inteiro neste momento, comprova a inegável verdade da palavra de Cristo.

Caso para nos interrogarmos, caso para verificarmos em nós a verdade profunda da sua atração universal. Lei espiritual e muito mais do que física. Verifiquemos então e agradeçamos sempre, pois é do Pai que tal atração provém, fixando-nos em Jesus, pelo ímpeto do Espírito. Esta hora, caríssimos irmãos, não é principalmente nossa: agradeçamo-la a Deus, que, em Cristo, também nos recupera e consuma, a cada um de nós, na glória da cruz.

Daí que a fé seja absolutamente teologal, também no ensinamento de Cristo, superando o que concluiríamos “pela carne e o sangue”, ou seja só por nós. Retorquindo ao apóstolo, que o confessara como Messias e Filho de Deus vivo, disse assim: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu» (Mt 16, 17). Assim dalgum modo aos que aqui estamos, ouvindo como se fosse a primeira vez a narrativa da Paixão, ou fixando-nos daqui a pouco, na cruz que adoraremos.

Concluamos ainda, convertidos sempre, que esta hora é toda de Deus, passando-se connosco – coração e consciência – o que apenas Ele determina e consegue: a fixação na cruz, a devoção da alma, a mudança da vida. E o que seria motivo de repulsa, «pois tão desfigurado estava o seu rosto que tinha perdido toda a aparência de um ser humano», como ouvimos ao profeta, torna-se vivência acrescida, como brota em sangue e água daquele peito lanceado.

Detenhamo-nos noutras palavras que disse: «Tenho sede!». Imediatamente tomadas, manifestam a secura mortal dum terrível instante. Mas o evangelista guardou-as, porque significavam muito mais: a ansiedade infinda do Filho pelo Pai e do Irmão pelos irmãos, em comunhão completa. Como o cantara um salmo: «A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo!» (Sl 42 (41), 3). Como o dissera ele a quem nos representava a todos: «Dá-me de beber!» (Jo 4, 7). Se queremos viver esta hora no coração de Cristo, guardemos estas frases como o maior dos tesouros, para recolhermos o seu anseio pelo Pai e para recolhermos o seu anseio por nós, cada um de nós.

Reparemos também na desadequação da resposta: para a sede de Jesus, ofereceram uma esponja de vinagre… E reparemos bem, e do fundo da nossa consciência magoada e finalmente desperta.

O mais convincente destes momentos de Jesus, que nos salvam a nós, é ultrapassarem em absoluto o nosso modo natural de ser, a nossa maneira usual de pensar, a forma prevista das expetativas comuns. Queremos Deus, certamente. – Mas que “Deus” continuamos a querer? Esperamos a salvação. – Mas de que é que nos queremos realmente salvar? Almejamos a realização perfeita dos nossos destinos individuais e coletivos. – Mas exatamente quais?

Também Jesus o desejara, profundamente desejara: «Eu vim lançar fogo sobre a terra; e como gostaria que ele já se tivesse ateado! Tenho de receber um batismo, e que angústia a minha até que ele se realize!» (Lc 12, 49-50), referindo-se assim à perfeita conclusão da sua hora total e à missão cumprida. – E nós, irmãos caríssimos, aqui reunidos numa hora que não permite enganos, nós que fomos batizados no Espírito e no fogo que Jesus nos trouxe (cf. Lc 3, 16), estamos assim ansiosos por que se cumpra em nós a hora da cruz, sem nos sobrar nada que não seja para Deus e sem guardarmos nada que devamos aos outros?!

Cumpriram-se finalmente as profecias, resumiu-se num momento a história bíblica, fermento da que há de ser geral. Ali se percebeu, como agora se contempla, que a consumação ansiada é a vida retribuída. A totalidade da cruz apenas se entrevê. Mas bem visível é Cristo, Filho de Deus e Filho de Maria, pela humanidade que dela recebeu e o irmana connosco.

Vivendo a sua paixão, tal significa a religião perfeita, como Jesus a demonstra e o seu Espírito proporciona. Vida filial e autêntica, de quem tudo devolve e nada retém para si. “Nada” significa dotes de inteligência, sensibilidade ou fortuna; “nada” significa intenções, sonhos e projetos. Como os braços da cruz, tudo acima para o Pai e tudo alargado para os outros.

Concretizando sempre, algum de nós tem dúvidas de que a própria consumação duma sociedade perfeita, começada já, não poderá ser outra coisa senão vidas compartilhadas, dotes repartidos, atenção continuada a todas as necessidades dos outros – que são outras tantas oportunidades e exigências de nos consumarmos na entrega?

Deixai-me duvidar, caríssimos irmãos, que alguma sociedade se tenha consumado já assim, ao ponto de legitimamente se chamar “cristã”… Aliás, creio que “cristão” e “cristã” só podem ser substantivos, não adjetivos, da substância de Cristo em nós e por nós no mundo.

Como Paulo pôde dizer, ele que tinha morrido inteiramente para si, para com Cristo se entregar aos outros: «Trazemos sempre no nosso corpo a morte de Jesus, para que também a vida de Jesus seja manifestada no nosso corpo» (2 Cor 4, 10). E, porventura ainda mais claramente: «Estou crucificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim» (Gl 2, 19-20).

Todavia, não sabendo se alguma sociedade se pôde chamar legitimamente “cristã”, sei, de facto sei, que a paixão de Cristo continua inteiramente disponível para se tornar na paixão dum mundo realmente de Deus e por isso compartilhado. Vislumbro-o em muitos que se comprometem, dia a dia, com o bem comum de todos e na dignificação do próximo: de quem precisa de nascer, de crescer, trabalhar e envelhecer em paz; de quem precisa de viver, na plenitude de Deus e na plenitude do homem. Na glória da cruz, como chave da história.

A nossa presença aqui revela-se então como esperança para o mundo. Não a defraudemos a Deus, nem aos outros.

D. Manuel Clemente
Sé de Lisboa, 18 de abril de 2014

 

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