Manuel Castelo Branco, Diocese de Coimbra
Pelas 23h40 de 14 de abril de 1912, no quarto dia da sua viagem inaugural, o inafundável RMS Titanic colidiu com um iceberg. Menos de duas horas depois repousava no fundo do mar.
O destino do transatlântico é fonte de compulsivo fascínio, desde então. Pelo violento recordar da decisiva importância do acaso no trajeto das nossas singulares vidas, em primeiro lugar. Em duas horas, sem que nada o fizesse prever, a fina flor da riqueza mundial descobriu a vanidade do poder económico e da importância social.
Do conforto asiático dos camarotes de luxo e dos salões de fumo e de dança ao medo glacial e à morte gelada vai o tempo breve da chama de um fósforo. Não estamos nunca preparados para a morte. Mas estamos para a morte sempre prontos.
A história do Titanic transporta, além deste sinal existencial, uma esquecida lição anti-iluminista.
Em 1912, como na atualidade, assistia-se a um pico da arrogância da leitura técnico-científica do mundo. Morto Deus, primeiro por Nietzsche, depois pelo positivismo, abrir-se-iam, alegadamente, as portas de um admirável mundo novo de expulsão do sagrado e de domínio humano da Natureza, finalmente domada e submissa aos insaciáveis caprichos da misteriosa Razão.
Sabemos o resultado. Pois a morte de Deus representa, antes de tudo, a morte do Homem.
O século do progresso iluminista não deixou, nesta sede, os seus créditos por mãos alheias. Da primeira guerra mundial à gripe espanhola, do Crash de 29 a Hitler e Estaline, do Lager e do Gulag a Hiroshima e ao Vietname, da predação dos recursos naturais à tragédia ambiental e à catástrofe climática – eis o caderno de encargos de um mundo desencantado de deuses e de Deus.
Não aprendemos nada com as dolorosas lições do século XX. A nova centúria iniciou-se sob o signo da espetacular falência das disciplinas econométricas, videntes cegas dos Lehman Brothers. Falência aparente, e logo esquecida: não continuam as senhoras Lagarde os senhores do mundo?
Esquecemos já o Covid, esse vírus anacrónico e obscurantista. O Donbass e Bakhmut, como antes Aleppo e Kabul, estão a caminho de cumprir o seu buarqueano ideal de locais exóticos para afortunados turistas de guerra.
O Titanic e o Titan são uma única e mesma barca da morte, no preciso sentido do poema de D.H. Lawrence.
Não precisamos dela.
Manuel Castelo Branco
Comissão Diocesana Justiça e Paz