Li, e nem queria crer – Vi, e tive que acreditar

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

«Ninguém se pode banhar duas vezes na mesma água do mesmo rio.» Ora aqui está uma frase que, parecendo expressar simplesmente um facto óbvio da experiência, ficou na Filosofia como cartaz emblemático de uma corrente de pensamento que foi perpassando toda a história do humano pensar, centrado na dialéctica, na harmonia dos opostos, no fluxo universal dos seres e na razão que a tudo subjaz.

A frase, tornada bem popular para além de citada frequentemente nos meios académicos e eruditos, é do «obscuro» Heráclito [c. 504-500 a. C.], um dos filósofos dos primórdios do pensamento ocidental, de quem possuímos só alguns fragmentos referidos por autores posteriores, mas que estariam condensados num livro identificado com o título “Da Natureza”.

Nascido na antiga Éfeso, na actual Turquia, onde o Ocidente e Oriente se beijam, conhecida hoje pelas suas ruínas que contam histórias de séculos, desde a Grécia antiga até ao Império Romano, Heráclito, de temperamento «melancólico» e espírito solitário, mas crente de que «Existe somente uma sabedoria – conhecer a Inteligência que tudo governa, penetrando tudo», renuncia à nobreza de família a que pertenceria e entrega-se à Filosofia passando o tempo no Templo de Artemisa ou Artemis [Diana, na mitologia romana], a deusa grega da vida selvagem e da caça, filha de Zeus e irmã gémea de Apolo. É aí, no Templo de Artemisa, que o «obscuro» filósofo terá deixado manuscrito o seu livro “Da Natureza”.

O Templo de Artemisa, com as suas 127 colunas de mármore, muitas delas decoradas em relevo, era o maior edifício de mármore do mundo grego e a sua construção teria durado cerca de um século. No coração do templo erguia-se uma colossal escultura de madeira escura a celebrar a deusa grega. Passando por ser uma das sete maravilhas da antiguidade, atraía turistas e comerciantes, além de ser um centro de refúgio para foragidos porque ninguém se atreveria a profaná-lo perseguindo fugitivos da cidade. Mais ainda, constituía uma espécie de marca identitária da cidade e mesmo da cultura da antiga Grécia.

Naturalmente o Templo de Artemisa constituía o orgulho dos habitantes da cidade de Éfeso. Mas um dia, na noite de 21 de Julho de 356 a.C., o templo foi consumido por um incêndio devastador. Só ficaram as colunas de mármore enegrecidas pelas chamas e pelo fumo. Tudo o que era de madeira, tecto, portas, escadas e móveis, tudo o fogo consumiu, incluindo a escultura da deusa Artemisa que se acreditava ter caído do céu. E, naturalmente, assim se teria perdido para sempre o livro “Da Natureza” do velho Heráclito de que conhecemos hoje somente pequenos extractos que entretanto se haviam espalhado entre os letrados de então.

E a cidade chorou enquanto um tal Heróstrato sorria e confessava o crime. Tinha sido ele que, pela calada da noite e enquanto os Efésios dormiam, incendiara o monumento que orgulhava Éfeso. Confessava o feito com orgulho e dizia que fizera tal para honrar o seu nome e a sua mais elevada vontade de uma fama tal que fosse proporcional à grandiosa fama do templo. O famoso monumento de Artemisa ficara para sempre destruído, mas para sempre, assim desejava Heróstrato, ficaria ele lembrado na história dos homens.

Claro que Heróstrato foi preso e condenado. As autoridades mandaram eliminar todos os registos da sua existência e proibiram recordá-lo fosse de que modo fosse. Seria mesmo condenado com a pena de morte aquele que se atrevesse a mencionar o seu nome. Era a “damnatio memoriae” [condenação pela memória] a ser aplicada ali sem qualquer limitação e condescendência.

Nem por isso, porém, Heróstrato foi apagado do mundo dos homens. Pelo contrário, ficou com fama garantida e ele aí está na História e na Literatura, na obra de clássicos como Cervantes, ou de contemporâneos como Jean-Paul Sartre e Fernando Pessoa ao pretender estudar a imortalidade enquanto celebridade póstuma ou sobrevivência na história.

Mais presente ainda se encontra no mundo da ciência, designadamente do saber psicológico, da psiquiatria e psicanálise, onde é comum falar-se do «Complexo de Heróstrato» para se referir a situação de indivíduos que, vivendo sentimentos de inferioridade, desenvolvem uma compulsão para se destacarem socialmente a todo o custo através de acções agressivas de toda a espécie: difamação, terrorismo, vandalismo ou destruição do património público, tortura e assassinatos de animais e pessoas, automutilação e suicídio. Com este tipo de acções buscam compulsivamente esses indivíduos a fama momentânea da noite que cobre, no escuro, as fraquezas das luzes do dia. Passados dois mil e quatrocentos anos, Heróstrato é nome de complexo e o incêndio de Éfeso parece continuar bem vivo.

Quando estes comportamentos agressivos, ou outros do mesmo género, se juntam nas mãos de um jovem que, no segredo do seu quarto, age sobre crianças e adolescentes a viverem do outro lado do mundo, algo vai mal no reino da educação. Por parte dos pais, por parte da escola e por parte de outras instituições, particulares ou do Estado. E por parte das virtualidades das redes sociais tornadas areópagos de satisfação de sede de protagonismo fácil. Li, e não queria crer.

Quando a sede de fama e protagonismo fácil aproveita as câmaras televisivas de um momento da Feira do Livro para agressiva e ostensivamente virar as costas a um Presidente da República que a todos representa, deveria sentir-se ofendido qualquer cidadão de um país veterano de séculos de existência e com meio século de vida democrática. Só que aquele tempo de antena de grosseria ostensiva parece desmentir a História e a Democracia. Vi, e tive que acreditar que o civismo democrático anda por vezes na lama da rua regada por chuva miudinha das nuvens cinzentas que cobrem o azul do céu. Vi, e tive que acreditar.

Parece haver em muitos, ou em todos nós, seres humanos, esta indescritível paixão por uns momentos de celebridade, ainda que seja num fugaz instante de televisão, no domínio da rua propícia a uma manifestação, no sabor de glória vã numa rede social ou num golo de um jogo de futebol marcado na baliza do adversário num qualquer campo da vida.

Chego a pensar, e já tenho pensado muitas vezes, que andam por aí muitos heróstratos, grupais e individuais, nas sociedades em que vivemos, onde, à custa de sobrevalorizar o mérito e esquecer outros factores do êxito como as circunstâncias favoráveis da vida, se vão desenvolvendo desencantos e frustrações, terreno fértil para germinarem complexos de inferioridade quando não se encontram meios positivos de superação e sublimação das limitações que todos experimentamos.

Lemos, e nem queríamos crer. Vemos, e temos de acreditar. Lemos e vemos, e havemos de concluir que temos de nos repensar enquanto humanos e seres sociais e políticos.

Guarda, 6 de Junho de 2025
António Salvado Morgado
morgado.salvado@gmail.com

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

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