Leiria-Fátima: Homilia de D. José Ornelas na Missa Crismal

 

Foto: Diocese de Leiria-Fátima

Irmãos e irmãs,

Nesta manhã de Quinta-feira da “Semana Maior” do ano, reunimo-nos na Igreja-Mãe da nossa Diocese de Leiria-Fátima, para uma celebração muito especial e reveladora daquilo que é “ser Igreja” e participar da sua vida e da sua missão.

Reunimo-nos, este ano, num tempo especialmente desafiador e suscitador de esperança. Temos ainda a memória viva da JMJ 2023, como exemplo revelador da vida que o Espírito do Senhor Jesus suscita na sua Igreja, em todo o mundo, e que se manifestou com tanta alegria entre nós, no mês de Agosto passado. Estamos a viver um momento sinodal em toda a Igreja e, entre nós, encetámos um caminho de “conversão pastoral”, que pretende renovar a vida das nossas comunidades a partir da alegria do Evangelho, vivido, partilhado e anunciado, como Igreja missionária.

Partimos para este projeto, pretendendo dar especial atenção ao Espírito que todos recebemos no batismo e que nos torna irmãos e irmãs, filhos e filhas do Pai do Céu. É esta a realidade fundamental que constitui a Igreja, que nos torna a todos discípulos de Jesus, nosso Senhor e Mestre. É esse mesmo Espírito que nos une, apesar da nossa diversidade, que concede dons diferentes a cada um para a edificação da Igreja e para a sua missão no mundo. Esta é a base, o dom fundamental, da Igreja e de cada um dos seus membros.

É nesta comunhão de irmãos e irmãs, que surge também o ministério sacerdotal, como dom especial do Espírito de Jesus à sua Igreja, que hoje, de modo especial celebramos e ao qual quero dedicar alguns pontos de reflexão.

Aqueles que fomos chamados a este serviço não deixamos de ser discípulos, para passarmos a ser mestres, pois um só é o Mestre de nós todos. Mas recebemos um dom especial do Espírito, que dá lugar a um caminho de formação e de real experiência de serviço na Igreja, para que, através da nossa palavra e ação, ajudemos os irmãos a chegar ao conhecimento e à comunhão com Jesus e a viverem e anunciarem também a alegria do Evangelho. Surgimos da comunidade, mas, pelo dom do Espírito, somos igualmente dom de Deus para as comunidades a que pertencemos.

A sinodalidade não vem nivelar a Igreja, tirando importância aos dons estruturantes da comunidade cristã, concretamente ao ministério ordenado de Diácono, Presbítero e Bispo. Pelo contrário, dando importância aos outros ministérios na construção da comunidade, o ministério ordenado recentra-se na sua função específica. Compete-lhe presidir, coordenar, acompanhar as pessoas e os outros ministérios, com a mesma atitude de serviço de Jesus, de modo que a Igreja se edifique na comunhão do Espírito e no alegre anúncio do Evangelho.

A conversão pastoral não é apenas uma “reforma administrativa” ou uma “redistribuição democrática de poderes”. É preciso entrar na lógica de Jesus, que veio para oferecer o dom da vida de Deus ao mundo e se dá totalmente por amor, com essa finalidade. Por isso, quando Ele chama alguém para conhecê-lo, para segui-lo, não é só porque precisa de mão de obra. Esse é um supremo ato de amor, que reflete o amor paterno/materno de Deus para com o seu povo, a começar por aquele a quem chama.

Antes de um serviço e uma função, qualquer ministério e, de um modo especial, o ministério ordenado, é um dom que se recebe, uma preferência, uma eleição, que fundam um relacionamento pessoal com Jesus, como Ele diz a Natanael: “Antes de Filipe te chamar, Eu vi-te quando estavas debaixo da figueira!” (Jo 2,48). Esse olhar de afeto pessoal e direto cria uma relação viva com Jesus e com o Pai, que se traduz no convite ao discipulado e à missão, pela ação do Espírito Santo: “Assim como o Pai me amou, assim também Eu vos amei. Permanecei no meu amor” (Jo 15,9); “Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós.” (Jo 20,21). Esta comunhão trinitária é que nos torna ministros e colaboradores do projeto salvador de Jesus, associando-nos à missão de Jesus.

Esta é a base da nossa conversão pessoal e pastoral, pois ela simplifica muitas coisas, colocando-as sempre sob o critério do nosso relacionamento com Jesus através do seu Espírito, como diz o Papa Francisco na Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”: “Toda a vida de Jesus, a sua forma de tratar os pobres, os seus gestos, a sua coerência, a sua generosidade simples e quotidiana e, finalmente, a sua total entrega, tudo é precioso e fala à nossa vida pessoal.” (AL 265). O sentir-se amado, acompanhado, escolhido, no contato direto com Jesus na oração e na contemplação, é que vai criando a sintonia missionária com Jesus no nosso sentir, sonhar e agir. Só desse modo nos poderemos tornar “outros cristos”, não só porque realizamos os gestos sacramentais que Ele nos deixou, mas porque aprendemos a amar e dar-nos segundo o seu estilo, como Ele nos diz: “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração.” (Mt 11,29).

Dessa relação discipular gerada pelo Espírito nasce igualmente uma relação nova com os outros/as que foram igualmente amados, chamados e enviados a dar fruto na missão: o amor de Jesus por cada um modela o relacionamento entre aqueles que vivem desse amor e o anunciam. “Já não vos chamo servos, pois o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai. Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos enviei, para que deis fruto e o vosso fruto permaneça, para que tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome Ele vo-lo conceda. Isto vos mando: que vos ameis uns aos outros.” (Jo 15,16-17).

A conversão pastoral parte, pois, da comunhão discipular com Jesus, na leitura da Palavra, na oração e na contemplação, através do Espírito, que nos liga à Trindade de Deus e ao seu projeto de oferecer vida à humanidade. Aqueles que somos assim unidos a Jesus somos também reunidos em Igreja e, juntos, sentimos o apelo do Espírito, pois “O amor de Cristo nos impele” (2Co 5,14) em missão, como diz Paulo, para levar esse amor a todo o mundo.

Na missão, esse relacionamento de amor do Bom Pastor é a fonte da verdadeira alegria, da confiança e da esperança, porque nos faz perceber que não somos nós que agimos, mas Ele, pois a vida que podemos transmitir e os gestos sacramentais que realizamos, não provêm de nós mas dele. E sentimos toda a alegria do Evangelho em perceber que esse mistério do amor, da graça, do Espírito, passa através de nós, apesar da nossa imperfeição e pequenez.

Pelo contrário, quando caímos na tentação autorreferencial de “privatizar” esse dom e de nos apoderarmos dele, ficaremos apenas com a frágil caricatura dos vasos de barro em que levamos tamanho tesouro. É a liberdade do despojamento a exemplo de Cristo que é fonte de alegria e que nos torna verdadeiros canais através dos quais pode passar a graça libertadora do Evangelho no nosso serviço à Igreja.

Como discípulos e apóstolos, aprendamos de Maria, Mãe e modelo da Igreja, a verdadeira atitude de liberdade, alegria e urgência de filhos de Deus e discípulos de Jesus, para que, com ela, possamos sempre cantar, sob a ação do Espírito: “A minha alma glorifica o Senhor … que olhou para a pequenez da sua serva … o Poderoso fez em mim maravilhas, Santo é o seu nome!” (Lc 1,46-49).

 

 Sé de Leiria, 28 de março de 2024

D. José Ornelas, Bispo de Leiria-Fátima

 

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