Leão XIV, como o Cordeiro, mensageiro da Paz e da Justiça

Padre António Henrique, Diocese de Viseu

Algumas impressões e vivências do Conclave, a partir da Praça de São Pedro

Era de manhãzinha, ainda cedo, quando, naquele dia, o segundo da semana, uma notícia correu o mundo: o Papa Francisco acabara de viver a sua Páscoa definitiva, passara deste mundo para o Pai. Era segunda-feira da oitava da Páscoa, 21 de abril de 2025, 7:35h!

A voz dos sem voz calara-se e, no entanto, por entre um grande silêncio, continuava a sentir-se a eloquência da sua vida, dos seus gestos. A Igreja sentia-se como um rebanho sem pastor (cf. Mt 9,36) e o mundo perdia a voz que muitos consideravam ser de um pai que sabe orientar e apontar caminhos de uma Esperança que não engana (Rm 5,5), recordando à Igreja e ao mundo, que todos somos peregrinos a caminho de uma pátria que não é daqui (Fil 3,20-21; 2Cor 5,1-10).

Mas, a vida da Igreja é mesmo assim! A morte de um Papa é sempre geradora de um novo kairós de Esperança, porta que se abre como acontecimento e oportunidade de graça. Ao longo dos seus dois mil anos de história, ininterruptamente, à morte de um Papa, depois das celebrações exequiais, os Cardeais eleitores reúnem-se em Conclave (do latim cum clave, que significa com chave, isto é fechados) para proceder, no Espírito Santo, à eleição do sucessor de Pedro. E assim sucedeu. Toda a Igreja era, agora, convocada a unir-se, em oração, ao Conclave que iria eleger o 267º Pastor do rebanho do Senhor: o novo Papa.

Entretanto, ao chegar a Roma, depois de umas férias de Páscoa, senti de imediato o frenesim instalado! Os dias tinham um ritmo próprio, mais vertiginoso do que o habitual, marcado particularmente pelas Congregações dos Cardeais, as missas novendiali pelo Papa Francisco e todos os preparativos associados ao Conclave, com especial destaque para a instalação da famosa chaminé na Capela Sistina, que haveria de dar ao mundo o primeiro sinal sobre a eleição, ou não, do novo Papa.

A agitação era grande e a expectativa gerava uma curiosidade crescente no Vaticano, na cidade de Roma e no mundo, tal era a quantidade de media presente. Quem virá a ser o novo Papa? Será este ou aquele? Qual será a sua proveniência? Que nome escolherá? Os italianos, claro está, torciam por alguém que fosse “da casa”! Enfim, os homens a tentar saber qual o desígnio de Deus! Mas, o ditado é antigo: «quem entre Papa sai cardeal!». E assim foi, mais uma vez!

E, eis que é chegado o dia 07/05/2025. O Conclave ia iniciar. Estamos em pleno tempo pascal, no coração do Jubileu da Esperança. Dentro de pouco tempo um novo Papa! Depois de assistir na televisão, com espírito de oração e, também, alguma curiosidade expectante, à entrada, e respetivo juramento, dos Cardeais eleitores na Capela Sistina, quase nem conseguia acreditar que, dito o extra omnes (todos fora), poderia sair de casa, descer a rua e entrar na Praça de São Pedro, para, ali vivenciar todo este acontecimento de oração e espera(nça). Que adrenalina!

E, em cerca de 40 minutos, depois de passar toda a segurança, ali estava eu, juntamente com dois colegas, padres do Patriarcado de Lisboa e da Arquidiocese de Évora, e milhares de pessoas, na Praça de São Pedro, junto à estátua de São Paulo, a rezar e esperar em feliz esperança o Papa que Deus, pelo Seu Espírito Santo, gerava n@ (c)oração dos Cardeais, e nos nossos, ali ou em qualquer parte do mundo. A emoção era mais do que muita, mas procurava, por entre o êxtase de cada passo, viver e meditar no coração, ao jeito de Maria, tudo o que estava a acontecer. Confesso que tivera, desde sempre, uma enorme vontade em viver de perto este acontecimento de graça e rara expectativa, certamente, único na minha vida e na de muitos. Na verdade, não consigo descrever com clareza o que senti e vivenciei. É muito forte!

O desconhecido desafiava à especulação e aguçava ainda mais a curiosidade! Quanto tempo demoram as votações? São 133 Cardeais! Na verdade, na era do digital e do imaterial, onde a informação flui quase instantaneamente e se faz anunciar através de uma notificação ou atualização das redes sociais, todos esperávamos, com os olhos (as lentes, as objetivas, as câmaras dos smartphones) voltados para uma chaminé, que, mais cedo ou mais tarde, daria alguma resposta. Afinal, é importante não ter pressa e saber esperar! Já não estamos habituados a não saber o que se passa; e ninguém sabia, de facto, o que se passava, e se passou, em concreto na Sistina.

A resposta, essa, viria do alto, com a leveza de uma fumaça: preta, a indicar que não houve eleição ou branca, a proclamar, como primeiro anúncio, que temos um novo Papa. Quem diria que na era do digital a espera seria por uma fumaça analógica com o poder brutal de informar o mundo inteiro acerca da notícia mais aguardada! Que mundo, este! E eis que saíram os primeiros sinais de fumo, ao início da noite, e, como era de esperar, eram de fumo preto. Os milhares de pessoas que se tinham dirigido à Praça de São Pedro regressavam agora a suas casas desejosos do dia seguinte! A noite passou num fechar e abrir de olhos!

E chega o segundo dia. Logo de manhã, a Praça começava, novamente, a encher para ver de que cor seria o fumo após as duas votações matutinas. Mas, enquanto não havia sinais de fumo, durante o tempo de espera, as pessoas rezavam, liam, conversavam, brincavam, sorriam, faziam fotografias, visitavam a Basílica… e eis que pelas 11:50h (hora local) os gritos e o voltar de cabeças, quase sincronizado, em direção à chaminé, faziam estremecer o coração e a mente, colocando todos em alerta máximo: “está a sair fumo”, gritavam! Mas, rapidamente nos apercebemos que ainda não era da cor desejada! Novamente fumo preto. Era hora de almoço e todos dispersámos. Era necessário retemperar as forças.

Logo ao início da tarde, debaixo de um calor tórrido, as pessoas começavam a chegar e a procurar aquele que entendiam ser o melhor lugar. Eram crianças, jovens, famílias, de várias idades e nacionalidades! Todos afluíam à Praça! Eu, juntamente com os colegas, procurei ir para o lugar onde sempre tínhamos estado, na primeira linha, junto à estatua de São Paulo, de frente para a chaminé, com ótima visão para a varanda central da Basílica, onde seria apresentado o novo Papa, e diante de um ecrã gigante, onde podíamos ver todos os pormenores. À medida que a tarde ia avançando, iam-se juntando outros colegas portugueses e angolanos, residente no Colégio Português, todos na expectativa do resultado das votações daquela tarde, quarta e quinta, respetivamente. As últimas eleições de Papas aconteceram entre a quarta e a quinta votações. Seria agora?

Eram 17:30h/18h e todos pensávamos: “bem! temos que esperar pela quinta votação ou pelo dia de amanhã, se houvesse novo Papa já teria saído a fumaça…” e sem que ninguém estivesse à espera, todos distraídos a olhar para as gaivotas que teimavam em não desarmar de junto da chaminé, desta vez, para gaudio da multidão, com uma cria, eis que, da chaminé mais observada do planeta, começa a sair fumo: é branco! É branco! Começam a ouvir-se gritos de alegria e júbilo! Seriam umas 18:08h! Que emoção! Era impossível não se arrepiar e comover.

Na euforia daquele instante, como seria de esperar, o primeiro habemus Papam foi pronunciado festivamente pela multidão em coro: «Habemus Papam!», ouvia-se por entre gritos, palmas, abraços, lágrimas, arrepios e sorrisos…! Ainda ninguém sabia quem era o novo Papa e já este era amado e aclamado por todos. O fumo continuava a sair… juntaram-se-lhe os sinos da Basílica que tocavam festivamente. As pessoas, saindo de todos os lados, corriam em direção às imediações da Praça. A via da Conciliazione, num instante, parecia um rio de gente! Ninguém queria perder aquele momento!

Uma hora e pouco depois do fumo branco, eis o anúncio solene, pelo Cardeal Dominique Mamberti: annuntio vobis gaudium magnum: habemus Papam (anuncio-vos uma grande alegria: temos Papa): Robert Francis Prevost. Um americano! «O menos americano dos americanos», dizia um jornal, que esteve longos anos em missão no Peru, em particular como bispo da diocese de Chiclayo, e que, para surpresa de todos, escolheu para si o nome Leão XIV, evocando o Papa Leão XIII, que escrevera a primeira encíclica social, Rerum novarum.

Instantes depois, por entre uma imensa ovação e gritos de alegria, ei-lo: o Papa Leão XIV, de rosto sereno, mas firme, aparece na varanda central da Basílica de São Pedro para se apresentar, saudar a multidão e dar a bênção à Igreja, à cidade e ao mundo. Finalmente, associava-se um rosto ao nome. Era um «filho de Santo Agostinho». Visivelmente emocionado, procurava dominar as lágrimas, sorrindo e saudando a multidão que gritava efusiva e incessantemente, em uníssono: “viva o Papa! Viva o Papa!”, alternando com o grito do seu nome: “Leão! Leão!”.

As suas primeiras palavras, fortes e convictas, penetraram instantaneamente o coração de quem as escutava, fazendo-me cair as lágrimas. Impressionante! São uma citação, composta, do Evangelho: «A Paz esteja com todos vós (cf. Jo 20,19). Caríssimos irmãos e irmãs, esta é a primeira saudação de Cristo Ressuscitado, o Bom Pastor, que deu a vida pelo rebanho de Deus. Também eu gostaria que esta saudação de paz entrasse no vosso coração, chegasse às vossas famílias, a todas as pessoas, onde quer que se encontrem, a todos os povos, a toda a terra. A paz esteja convosco! Esta é a paz de Cristo Ressuscitado, uma paz desarmada e uma paz desarmante, que é humilde e perseverante. Que vem de Deus, do Deus que nos ama a todos incondicionalmente. […] Quero […] caminhar convosco, como Igreja unida, procurando sempre a paz, a justiça, esforçando-se sempre por […] fiéis a Jesus Cristo, sem medo, […] anunciar o Evangelho, para ser missionários».

Este Papa, ao jeito de Cristo, é um Leão que, na verdade, entra e se apresenta como o Cordeiro que anuncia a Paz e a Justiça. A este propósito, o Livro do Apocalipse é bastante elucidativo: antes de introduzir «o Cordeiro, de pé, como imolado» (Ap 5,6), o único capaz de abrir o Livro selado, Este é apresentado como «o Leão vencedor da tribo de Judá» (Ap 5,5).

Estes dois animais, numa linguagem simbólica (tereomórfica) messiânica, sublinham a humildade e a mansidão do Cordeiro, que levado ao matadouro não abriu a boca (cf. Is 53,7; Jr 11,19; Ex 12,1.27) e a coragem e a força irresistíveis do Leão (cf. Gn 49,9-10), ambas conjugadas na pessoa de Jesus Cristo Ressuscitado. Esta elaboração simbólica do autor do Apocalipse está em linha com a teologia joanina (cf. Jo 1,29.36) que nos fala da vitória pascal do Senhor, qual Cordeiro imolado, que traz em si os sinais visíveis da Paixão e se apresenta aos seus discípulos anunciando, precisamente, as palavras que inspiraram a saudação do novo Papa: «A Paz esteja convosco» (cf. Jo 20,19-22).

Da união das figuras do Leão e do Cordeiro, em Cristo, agora de algum modo encarnadas no novo Pastor universal, fala-nos Santo Agostinho, seu pai e mestre, no seu Discurso 375/A, onde nos apresenta o Crucificado e Ressuscitado como um rei inocente e poderoso, nossa Páscoa e nossa Esperança, que na Paixão foi Cordeiro e na Ressurreição foi Leão, ou melhor dito, na Paixão e Ressurreição, foi Cordeiro e Leão: Cordeiro porque viveu a Paixão sem a evitar e Leão porque, morto, matou a morte e agora vive eternamente.

Com a escolha do nome e com as palavras de saudação, o Papa Leão XIV diz ao que vem: com a humildade de quem assume a Cruz de Cristo, mas com a coragem de quem nela descobre a força para ser a voz dos injustiçados e dos últimos, afirmando que «queremos ser uma Igreja sinodal, uma Igreja que caminha, uma Igreja que procura sempre a paz, que procura sempre a caridade, que procura sempre estar próxima, sobretudo dos que sofrem».

Deste modo, o Papa Leão vai-se apresentando e dando a conhecer, como alguém que, por um lado, renova e reafirma a plena adesão ao caminho «que a Igreja universal percorre há décadas na esteira do Concílio Vaticano II» e, por outro, à atualização que o Papa Francisco empreendeu «na Exortação Apostólica Evangelii gaudium, […] sublinha[ndo] alguns pontos fundamentais, tais como: o regresso ao primado de Cristo no anúncio (cf. n. 11); a conversão missionária de toda a comunidade cristã (cf. n. 9); o crescimento na colegialidade e na sinodalidade (cf. n. 33); a atenção ao sensus fidei (cf. nn. 119-120), especialmente nas suas formas mais próprias e inclusivas, como a piedade popular (cf. n. 123); o cuidado amoroso com os marginalizados e os excluídos (cf. n. 53); o diálogo corajoso e confiante com o mundo contemporâneo nas suas várias componentes e realidades (cf. n. 84; Gaudium et spes, 1-2). Trata-se de princípios do Evangelho que sempre animaram e inspiraram a vida e o agir da Família de Deus, valores através dos quais o rosto misericordioso do Pai se revelou e continua a revelar-se no Filho feito homem, última esperança de quem procura com sinceridade a verdade, a justiça, a paz e a fraternidade (cf. Spe salvi, 2; Spes non confundit, 3)».

Na esteira do Papa Francisco, mas à sua maneira, o Papa Leão, apresenta-se como um Peregrino de esperança que, como mensageiro da paz, com audácia, deseja imitar o Senhor que «passou pelo mundo fazendo o bem» (At 10,38), como confirmam as suas palavras na conclusão da homilia, na missa de início do seu ministério petrino: «com a luz e a força do Espírito Santo, construamos uma Igreja fundada no amor de Deus e sinal de unidade, uma Igreja missionária, que abre os braços ao mundo, que anuncia a Palavra, que se deixa inquietar pela história e que se torna fermento de concórdia para a humanidade. Juntos, como único povo, todos irmãos, caminhemos ao encontro de Deus e amemo-nos uns aos outros».

Do coração do novo Papa, brota para toda a humanidade um rugido de Paz, «desarmada e desarmante», emitido com a humildade e mansidão do Cordeiro e a força corajosa e irresistível do Leão que venceu o mundo: Jesus Cristo Ressuscitado, nossa Esperança e nossa Paz.

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

Partilhar:
Scroll to Top