Lançar às feras

Dentro de casa, com os amigos, a meia voz, com preâmbulo harmónico, diz-se quase tudo acerca de todos. Até se pensa, por vezes, que é legítimo ou até pedagógico destroçar o vizinho. E há quem julgue que é higiénico e terapêutico criticar, dizer mal, acrescentar uns pós para tornar a narrativa interessante, começar por declarar que “é uma conversa aqui entre nós”. E aí vai o mundo duma ponta à outra numa mordacidade venenosa onde ganha legitimidade a parábola, a hipérbole, a maledicência pura, o escárnio, a humilhação, a mentira, a calúnia. Tudo parece legitimado pela grossura das paredes e pela confiança imensa que se deposita no interlocutor que vai repetir o esquema parcial ou totalmente. E assim sucessivamente. Chegado ao estertor do maldizer expira-se um alívio com ar de quem apenas, inocentemente, desabafou sem prejudicar ninguém, nem colocar na praça pública a mais pequena mácula acerca de quem quer que seja. A tecnologia não alterou este estado de espírito. Ampliou, amplificou, multiplicou, fez alastrar a superfície do privado, espalhou, como vento rodopiante, as penas leves duma ave imaginária que era o bom nome de alguém que, mesmo não sendo perfeito, nem por isso perdeu direito à dignidade. Se se trata de personalidade em palco ou no pelourinho da aldeia, parece que a crueldade redobra numa espécie de sadismo verbal. Explode a condenação, acende-se a fogueira, lança-se o réprobo, sem direito a honra, história, família ou afecto. Como se fora um manequim descarnado e insensível. Com culpa, meia culpa, ou culpa nenhuma. Tudo isto parece um jogo mas não é. Lançada no enriço dos media, a crueldade multiplica-se por quan-tos exemplares se imprimem e por outros tantos ouvintes ou espectadores, ou inter-nautas do grande circo mediático. Porque – outra agravante – passa a ser puro objecto de divertimento. Como nos coliseus e anfiteatros onde o ranger de dentes das feras a trucidar pessoas era apenas uma diversão do povo. É um regresso ao paganismo. Onde aos cristãos se pergunta em que se distinguem dos outros nos juízos cruéis que aplicam a inocentes ou culpados. Ou como deixam cair a túnica branca para se banquetearem com o sangue da dignidade dos outros. António Rego

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Agência ECCLESIA

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