Jubileu: «A tradução dos sinais visa esta ponte que queremos criar e construir com a sociedade»

Ana Isabel Martins integra a equipa de apoio à Coordenação Diocesana da Pastoral no Porto. O organismo lançou um guia para a celebração do Jubileu 2025, tema desta entrevista semanal conjunta da Renascença e da Agência Ecclesia

Foto: RR/Lara Castro

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (ECCLESIA)

A Igreja Católica está a viver o terceiro jubileu nos últimos 25 anos. No seu caso, acredito que a experiência do ano santo da Misericórdia, um jubileu extraordinário que se iniciou em 2015, tenha sido de alguma forma marcante…

Sim, o jubileu da Misericórdia foi em 2016, o ano em que eu me licenciei. Eu licenciei-me em Direito, e na altura, quando se falava do jubileu, a questão da misericórdia, naquelas fitas que escrevem aos finalistas a desejar votos de sucesso na vida profissional, tive duas ou três pessoas que, ainda hoje me lembro do que me escreveram. De uma maneira resumida, falavam-me de que a justiça sem misericórdia não é verdadeira justiça.

Então, enquanto jurista, colocavam-me numa posição, e também enquanto cristã, em que eu tinha de aliar, tanto quanto possível, estas duas dimensões, não ter os estritos critérios legais, mas abrir um bocadinho o meu leque e a minha maneira até de pensar e de ser à Misericórdia, olhando aos exemplos que me davam.

 

Ou seja, a formação em Direito ajudou à celebração do jubileu?

Ajudou e deu-me um cunho diferente, porque não era só o ser jurista, estava a formar-me e a terminar uma etapa do ciclo de estudos, mas ter um olhar cristão sobre aquela profissão ou as profissões que eu poderia desempenhar a partir daquela formação. E isso marcou-me bastante, porque me deu ali um cunho cristão, logo à partida, terminando a formação, olhar para o meu futuro, mas ter sempre a Misericórdia de Deus como guia e tê-lo na minha base de valores também.

 

Relativamente a este jubileu que estamos agora a viver, o que espera pessoalmente? Considera importante que as pessoas vejam para lá das formalidades romanas, vou dizer assim, valorizando o que é o envolvimento pessoal, paroquial e até diocesano?

Sim, e eu acho que isto também leva aqui a uma outra pergunta, que é a questão se faz sentido termos jubileus hoje em dia. O jubileu, eu pego muito na palavra jubileu, que me leva ao jubilar, ao alegrar-se, e acho que é um tema que nos faz falta nos dias de hoje. Nós vivemos numa sociedade um pouco monótona, adormecida, anémica nalgumas facetas…

 

E zangada, por vezes, também…

Sim, também, também. E este alegrar-se que tem a sua esperança em Deus, acho que nos fará falta para não ser uma alegria passageira, uma alegria que nos vem das coisas materiais, mas que se funda num alicerce sólido, que é a Palavra de Deus, que vem desde há muito tempo a esta parte, mas que mantém a sua atualidade, e que deve ser o nosso mote, a nossa alegria para o futuro.

 

Lembrou-me da origem dos jubileus, ainda na Idade Média, e como eles resultaram de um certo desespero da população, que ia em busca de uma resposta a partir da ajuda divina. Obviamente que com todas as dimensões e com toda a diferença que hoje vivemos, mas este défice de esperança ainda se faz sentir hoje?

Eu acho que se faz sentir ainda mais do que na altura, no século XIV, quando a população teve este grito, porque na altura a população quando sentiu a necessidade de um jubileu, de uma indulgência plenária, no básico um novo recomeço das suas vidas, eu acredito que eles tinham a dimensão espiritual muito na sua mente, em que passava esta conversão por uma nova vida espiritual. Hoje em dia, eu acho que a vida espiritual, o crescimento, o aprofundamento, não será a primeira preocupação das pessoas, mas que com esta alegria fundada em Cristo, inevitavelmente chegaremos a uma nova abertura espiritual e a um crescimento.

 

E como é que surgiu esta ideia de um glossário? Há uma linguagem eclesiástica que é cada vez menos percetível para a sociedade em geral e até para as próprias comunidades católicas?

Sim, isso é verdade. Às vezes a Igreja ainda fala de uma maneira que não é acessível a todos e a equipa de apoio à coordenação, quando estávamos a trabalhar o tema do jubileu, acabou por perceber que era necessário clarificar algumas dimensões do jubileu, nomeadamente a questão da indulgência, o perdão dos pecados, até para desconstruir algumas ideias que o povo de Deus, mais ou menos bem informado, acabava por ter e que vão perdurando no tempo. E o glossário tenta, de uma maneira clara e simples, fazer esta destrinça, clarificar alguns pontos, para que não seja apenas, ou não seja sequer, uma atitude mercantil que se tenha nesta questão das indulgências e do perdão dos pecados.

 

Sabemos que historicamente é uma questão muito delicada e pesada, que deu origem até a divisões do Cristianismo, mas eu queria ir a uma parte talvez um bocadinho mais leve, porque no guião, para se falar de indulgências, podemos ler a expressão “a culpa não morre solteira”. Esta aposta numa comunicação criativa é essencial, é uma coisa que experimenta no seu trabalho na paróquia, até a nível diocesano?

Sim, além de desmistificar, queremos, se calhar, traduzir, por termos um bocadinho mais acessíveis às pessoas, o que é isto da indulgência, o que é o pecado, o que é o perdão. E para isso, socorremo-nos de algumas expressões um pouco mais populares, mas sem lhe tirar a carga que está associada mais no sentido da verdade dos termos. Temos é de lhe dar, às vezes, uma roupagem um bocadinho diferente, mais atrativa, para as pessoas perceberem que aquele tema não é de há séculos, é um tema que ainda hoje se coloca e que é, com certeza, essencial para as suas vidas.

Fizemos isso na equipa de apoio, na vida paroquial e até interparoquial, dadas as vicissitudes que temos, tentamos ter esta linguagem para aceder não só ao público mais jovem, mas até a pessoas de meia-idade, até um bocadinho mais velhos, uma linguagem que lhes é querida, que lhes é próxima e assim sentem-se mais entrosados com a vida da igreja.

 

Acredita que os vários sinais do jubileu, como a porta santa, as peregrinações ou até mesmo a inteligência, de que já falamos agora, podem comunicar com o mundo de hoje?

Podem comunicar e já há alguns elementos que o fazem. Por exemplo, na questão da peregrinação, hoje em dia, acho que é por demais evidente que muita gente gosta de fazer peregrinações mais ao estilo caminhadas, com alguma componente desportiva, de saúde associadas, mas o Papa até nos faz um alerta sobre isso, que a peregrinação não deve ser uma peregrinação como turista, simplesmente aquele que vai visitar uma certa igreja, vai a Roma, mas uma peregrinação interior. Eu acho que nós podemos aproveitar esta onda ou esta moda da peregrinação para lhe introduzir esta dimensão da espiritualidade, que a partir do silêncio, do caminhar, da introspeção, além de nos fazer bem fisicamente, também nos fará bem à nossa alma e ao nosso crescimento.

 

Nesse sentido, também é importante aquilo que foi feito aqui, de traduzir estes sinais…

Sim, a tradução dos sinais visa esta ponte que queremos criar e construir com a sociedade, tirar esta componente demasiado eclesiástica e se calhar vedada a alguns, para que todo o povo de Deus, nas suas diversas manifestações, idades, até níveis de vinculação, possa viver o jubileu e aprender a viver o jubileu, se calhar num sentido um pouco mais real e efetivo.

 

E para isso é preciso pensar em gestos que cheguem ao campo social, da economia e da ecologia, por exemplo?

Sim. A proposta que a equipa fez para a Diocese viver um bocadinho o jubileu, tenta abranger essas dimensões. Nós fazemos um conjunto, até bastante alargado, de propostas que tocam esses quadrantes que falou, desde a economia social, desde o apoio aos mais frágeis, e temos também uma proposta que nós, a nível paroquial, estamos a assumir como ponto de honra para este jubileu, que é fazer com que o jubileu não passe apenas como mais um evento, e então temos de criar ou arranjar uma forma de o assinalar verdadeiramente para memória futura. Por exemplo, posso-lhe dar o caso da paróquia da Senhora da Hora, de onde eu sou originária, e também sei que a paróquia de Guifões o fará, queremos marcar o jubileu na paróquia de uma maneira clara, e um dos propósitos que o Papa Francisco enumera na bula de proclamação do jubileu é o cuidado da vida, da vida emergente, nomeadamente os mais pequeninos. Na nossa paróquia temos uma instituição que apoia a vida desde a tenra idade, de bebés que, por diversos motivos, não estão com a família biológica, e entendemos que um apoio mais institucional, mais formal, assumir um vínculo e um compromisso entre a paróquia e essa associação, seja ele a nível monetário e com uma periodicidade definida entre as partes, e apoio em tudo o que eles precisam, de bens materiais, apoio aos bebés, poderia ser uma forma da Igreja estar em contacto com a sociedade, de pôr em prática esta questão jubilar, deste cuidado também com os mais frágeis, e criar bases para o futuro, que eu acho que o jubileu também tem que fazer isso, não é só o viver, o alegrar-se neste período, e quando o jubileu for oficialmente terminar, voltarmos à vida anterior que tínhamos… acho que não, será lançar bases para o futuro, esta esperança que queremos passar, e neste caso concreto, na vida dos mais pequeninos, mas que poderá largar-se a outros âmbitos.

 

Eu queria fazer-lhe uma pergunta exatamente sobre as propostas que o Papa lança na bula de convocação deste ano jubilar que estamos a viver, até aproveitando a sua formação em direito, que tem a ver com a amnistia aos reclusos. Quando se fala em amnistia, a opinião pública muitas vezes reage mal a essa ideia, a esses pedidos de perdão que o Papa faz: como podemos entender esse gesto e esse pedido específico para que o ano do jubileu também seja marcado por gestos de clemência. em relação a quem está na cadeia?

Eu pego mesmo nessa última palavra, que usou, clemência, que eu vou traduzir na misericórdia que tanto me falaram quando eu me licenciei. A justiça em si, o direito, visa também a reinserção daquele que cometeu um crime, vamos dizer assim. Não é uma justiça olho por olho, nem dente por dente, mas que visa a reintegração da pessoa que falhou. Este apelo do Papa tem já ecos, como estou a dizer, no ordenamento jurídico, mas nunca é bem visto, porque é sempre uma ideia de um perdão, simplesmente um apagar, e aquela pessoa, e isto falo mais na minha agora perspetiva cristã, aquela pessoa que é amnistiada, que é perdoada, não é um simples apagar da sua falta ou da sua falha, ela sabe que falhou, mas estão-lhe a esticar a mão para ela se poder reerguer e voltar a ter uma vida. Eu acho que o Papa, com estas insistências, quer também tentar moldar um bocadinho a maneira das pessoas se verem e interagirem entre si.

 

Foto: RR/Lara Castro

Olhando para a origem bíblica do jubileu, fica a ideia de um ano sabático, do ponto de vista económico, jurídico e ecológico, que talvez seja uma questão emergente: a ideia de um ano em que a natureza também descansa pode ser um desafio para sociedades como a nossa, que vivem em ritmos frenéticos de exploração e de consumo?

Sem dúvida, porque quando fala na questão da origem do jubileu, falava-se no descanso das terras, no pousio, e isso vai entroncar nestas preocupações que temos do cuidado da natureza, da vida, da sobre-exploração que fazemos dos nossos recursos, muitas vezes sem necessidade, e com certeza quase todos eles sem necessidade, e também uma economia voraz que nos quer demolir e, portanto, consegue também estragar a nossa natureza. Nessa medida, este propósito ecológico, que preocupa não só a Igreja, mas com certeza toda a sociedade, poderá ser também mais um ponto para que o jubileu extravase as paredes da igreja e tenha eco na sociedade.

 

As gerações mais jovens costumam compreenderem e acolher com entusiasmo os desafios relacionados com o meio ambiente, e desse ponto de vista também pode ser uma boa forma de elas entenderem ou perceberem melhor o que está por trás da proclamação deste Ano Santo…

Às vezes é preciso pegar em pontos que são comuns, como é a questão da proteção do meio ambiente, que muito ocupa os jovens e as novas gerações, para os fazer perceber que a Igreja não é só missais, nem livros de capa vermelha, digamos assim, mas que tem esta preocupação com a criação. E será também uma maneira de os evangelizar, a partir daí temos pontos em comum, perceber quem é que nos criou e porquê, e a necessidade deste jubileu, deste ano zero, deste ano sabático. De facto, a terra grita esta necessidade de cuidado e há aqui uma grande ponte que podemos criar.

 

Depois daquela que foi a grande experiência em Portugal, da Jornada Mundial da Juventude, o encontro que está previsto para o verão de 2025, em Roma, com o Papa, pode ajudar, ou se pensa que pode ajudar a reabrir vias de comunicação entre a Igreja e as novas gerações?

Eu acho que essa via, pelo menos em Portugal, já foi aberta com a Jornada Mundial da Juventude. E o que eu vou sentindo no pulsar dos jovens com quem contacto é que este jubileu em Roma será uma segunda fase, ou uma segunda parte, se calhar será melhor dizer assim, desta via de comunicação e deste carinho que através do Papa Francisco conseguimos estabelecer entre a Igreja e os jovens, pela maneira de ser dele, pelas ideias que ele defende, que na prática são os que os jovens também defendem, mas ele coloca de uma maneira muito subtil e muito carinhosa a centralidade da mensagem de Jesus. E eu acho que isto será um dos grandes momentos de 2025, com certeza.

 

Mas é preciso alterar alguma coisa para que se note a diferença? Os efeitos que eram esperados da Jornada Mundial da Juventude, sentem-se no terreno ou não?

Eu acho que não sentimos tanto como pensávamos que poderíamos sentir. E falo isto também de experiência própria, a nível paroquial, vicarial e até da diocese. Porque eu não tenho dúvidas que a mensagem não os deixa indiferentes, que fica uma semente para o futuro, mas há uma certa relutância em assumir um compromisso. Mas essa relutância não se verifica só em relação à Igreja. Também se vê os jovens a ter relutância a assumir compromissos em muitas outras dimensões. Isto será um tema que, pouco a pouco, passo a passo, com todos e percebendo o que todos precisam e como querem caminhar – lá está, posso pôr aqui a questão da sinodalidade, caminharmos todos juntos, ouvir o que todos têm para dizer, para conseguirmos arranjar uma solução e um caminho que todos consigamos percorrer.

 

No final deste ano de celebrações e de encontros, espera que todos entendam melhor o que é um jubileu?

Espero que entendam e vamos fazer tudo para que se perceba isso. Agora, acho que temos que ser muito hábeis em arranjar um compromisso entre a parte celebrativa, uma parte festiva, de que toda a gente gosta, e esta dimensão da nossa peregrinação interior, da nossa oração, que também é um dos pilares de um ano jubilar, a nossa renovação, também o sacramento da reconciliação, para que de facto o jubileu floresça. Senão o jubileu será apenas mais um evento festivo, bonito, bem organizado, mas que não trará frutos interiores. Eu acho que isso vai partir muito da nossa habilidade nas nossas paróquias, com os nossos jovens, com os nossos adultos também, mais idosos, em arranjar um bom compromisso entre estas duas dimensões. Isto vai ser uma festa, queremos que seja, mas que parta também de dentro.

 

Tem de haver um empenho particular, nomeadamente parte da igreja, para tentar explicar melhor?

Explicar melhor, promover ações que expliquem o porquê de um jubileu, o que é que podemos fazer de um jubileu. Temos a questão, como já referi, das peregrinações, que podem ser sectoriais, por grupos de pastoral, grupos paroquiais, a diocese também organiza uma peregrinação no seu todo, o importante será fazer o caminho sempre em conjunto, nunca deixar ninguém por si só a tomar conta deste jubileu, que se quer de esperança, mas é de peregrinos, é por isso que o logo do jubileu tem quatro peregrinos, que na prática estão abraçados entre si, e um deles é que vai agarrado à cruz. Eu acho que é importante olharmos para este logo e fazer dele um mote, e a Igreja, através dos seus sacerdotes, pessoas consagradas, leigos, que os leigos são a maior parte e têm também um papel importante, possamos ter esta união e este caminhar juntos.

 

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