Na antevéspera do arranque da Jornada Mundial da Juventude de Lisboa 2023 viajamos até ao Brasil ao contacto com o responsável da diocese brasileira de Cachoeiro de Itapemirim, que foi bispo de Pemba, norte de Moçambique de 2013 a 2021
Entrevista conduzida por Octávio Carmo (Agência Ecclesia) e Henrique Cunha (Rádio Renascença)
Começamos pela preparação no Brasil para a Jornada Mundial da Juventude.
Sentiu entusiasmo jovens? É de esperar uma grande comitiva de peregrinos brasileiros em Lisboa?
Sim. Haverá uma participação muito boa dos jovens brasileiros. Não todos os que gostariam, porque as passagens são muito caras. Então nós temos muitos jovens das periferias que gostariam de participar, mas não poderão. No entanto, participaram centenas, milhares de jovens. Da arquidiocese de São Paulo, por exemplo, houve nesse final de semana o envio de milhares de jovens. As dioceses menores como a minha diocese que têm menos possibilidades, enviará 6 jovens. Mas no Brasil somos cerca de 280 dioceses. Eu penso que a maior parte delas enviará jovens. Algumas dioceses, maiores, as arquidioceses enviarão mais, evidentemente, mas os jovens estão muito entusiasmados. Aqui na diocese fizemos uma boa preparação. Os jovens aqui do Brasil acompanharão os dias da Jornada, farão vigílias, participarão acompanhando todo o programa da jornada. Há muito entusiasmo.
Há 10 anos a Jornada decorreu no Rio de Janeiro e 10 anos depois, vamos ter uma Jornada outra vez muito marcada pela lusofonia. Pergunto, qual pode ser o contributo específico dessa delegação brasileira aqui?
Eu penso que o contributo pode ser a vivência da nossa igreja. A Igreja no Brasil, ela tem algumas características que podem ajudar outras igrejas. Por exemplo, eu acabo de voltar do décimo quinto Intraeclesial das Comunidades Eclesiais de base. Eramos cerca de 1500 participantes lá na cidade de Rondonópolis, em Matogrosso, no Centro Oeste do Brasil. E havia representantes das comunidades, das dioceses de todo o Brasil. E a presença da Juventude foi muito forte. Então nós temos uma presença bonita dos jovens nas nossas comunidades, nas nossas igrejas. São muitos os jovens catequistas, os jovens que participam de vários movimentos pastorais, os jovens envolvidos nas suas comunidades. Então eu penso que essa experiência que os jovens levam do Brasil pode enriquecer a Jornada como um todo.
É uma afirmação do papel dos países que falam português na construção do futuro da Igreja. O Brasil assume aqui um particular destaque, então neste campo?
Eu penso que pode contribuir. Nós temos muito para aprender, e claro, a Jornada é o momento de troca de experiências. Aprendemos uns com os outros, mas penso que também nós podemos contribuir com essa experiência que já temos, com longos anos de pastoral da Juventude. E há um fenómeno no Brasil e creio que em outras igrejas também, que é o surgimento de muitos movimentos de Juventude. Então, além de irem jovens se apresentando às dioceses e às paróquias vão muitos jovens ligados a movimentos nacionais ou internacionais e muitos jovens também ligados a congregações a carismas de congregações. Eu penso que tudo isso pode enriquecer e pode ser muito bom, muito rico para a Jornada Mundial da Juventude.
Falava ainda há pouco das limitações que se impuseram à participação dos jovens brasileiros. A situação económica do país afetou muito a viagem de pessoas que gostariam de estar em Lisboa?
Sim. Afetou sim, porque nós estamos a vir de alguns anos de muita recessão, de muitos problemas aqui no Brasil em relação à economia.
As famílias em geral, não têm tantas possibilidades assim. A maior parte da Juventude trabalha e estuda, mas também há ainda muitos jovens, desempregados. E os jovens das periferias que não conseguem tirar esse tempo para participar do encontro e também são impedidos por causa dos altos preços das passagens.
Para um jovem hoje, para alguém sair hoje daqui do Brasil para ir a Portugal o preço é muito alto.
Então os jovens que vão participar, muitos deles fizeram rifas, fizeram festinhas na comunidade, venderam terços, venderam comida, enfim, fizeram um grande esforço para conseguirem viajar para a jornada mundial.
E como é que está a ser este processo de transição da governação Bolsonaro para o regresso de Lula da Silva ao poder?
Olha não tem termos de comparação. O Brasil esteve alguns anos mergulhado numa maneira de governar, muito estranha. Nós demos muitos passos atrás em termos de políticas públicas. Nós tivemos negação da vacina, muitos milhares de pessoas morreram por causa dessa negação, e por causa da demora em atender a população e em comprar as vacinas.
E nós tivemos também um desinteresse muito grande em relação aos pobres, às pessoas mais necessitadas. Eu penso que a mudança de governo vem ajudar a olharmos o futuro com um pouquinho mais de esperança, porque havia uma sensação de muita frustração, e de muita desesperança por causa de todos os passos que o Brasil já tinha dado, e parece que nós regredimos no tempo do Governo passado. Então há muita esperança. Os jovens acreditam, tem mais esperança, e estão tendo mais oportunidade de acesso à educação.
Estão sendo oferecidas mais oportunidades de emprego. Eu penso que nós retomamos o rumo. Respira-se melhor e há mais esperança no Brasil.
Já é possível notar uma maior aposta no combate à pobreza?
Com certeza. Foram retomados os programas sociais que haviam sido paralisados pelo governo anterior. Não se trata, evidentemente, de apenas dar pão e de dar coisas, não. São programas que envolvem as pessoas que, além de dar o necessário no momento, mas também preparam as pessoas através de cursos profissionalizantes, acesso à educação, acesso à universidade.
Enfim, oportunidades para que as pessoas possam sair da situação em que se encontram. Nós chegamos a um tempo atrás, há uns anos, a sair do mapa da fome, mas o Brasil, nos últimos anos, voltou para o mapa da fome. Para ter uma ideia, este ano, nós trabalhamos na Igreja a campanha da fraternidade com o tema da fome. A campanha da fraternidade é uma campanha que a Igreja faz anualmente e sempre traz um tema, uma ferida da sociedade para ser refletida, e para ser enfrentada. Nesse ano nós trouxemos pela terceira vez o tema da fome, ou seja, dá pão a quem tem fome. E também oferecer outros tipos de saídas para que as pessoas que passam fome possam ter um emprego, possam com seu trabalho buscar o pão de cada dia.
- Luiz Fernando Lisboa foi bispo de Pemba, no Norte de Moçambique, tendo sido um dos principais denunciadores da da tragédia associada ao terrorismo na região de Cabo Delgado. Como é que olha para o momento atual e para o comportamento das autoridades, perante a situação?
Olho ainda com muita tristeza, porque a situação da guerra continua. Já há mais de cinco anos dessa guerra maldita, que ceifou a vida de tantas pessoas, de milhares de pessoas, e que deslocou das suas aldeias, das suas cidades cerca de um milhão de pessoas.
Quando olhamos para um encontro como esse, a Jornada Mundial da Juventude, fico pensando em tantos jovens dos países em guerra – nós temos no mundo cerca de 50 guerras e mais ou menos 30 guerras estão na África –, como estão esses jovens? Eu sei que o novo cardeal e auxiliar de Lisboa [D. Américo Aguiar] esteve na Ucrânia, encontrando-se com jovens um gesto muito bonito. Mas quantos jovens gostariam de estar participando nem vão poder acompanhar a Jornada Mundial da Juventude, porque são refugiados, porque são migrantes, porque são deslocados, porque tiveram de sair das suas terras, das suas casas em procura de uma vida mais digna? Fugiram da fome ou da guerra ou da falta de oportunidades.
A guerra em Moçambique, infelizmente, continua, penso que as autoridades não fizeram tudo no tempo certo, o que deveriam fazer. Começaram por negar a guerra, demoraram muito para tomar providências e a guerra tomou as proporções que ela tomou, que todos nós acompanhamos. Infelizmente, continua uma região com muita insegurança: em Cabo Delgado, as pessoas ainda estão fora das suas casas. O Governo tentou incentivá-las a voltar para as suas aldeias, mas foi um absurdo, uma falta de responsabilidade, porque as pessoas voltaram e tiveram de fugir outra vez, porque a guerra ainda continua.
Provavelmente não temos a informação toda sobre a situação. Recentemente, houve a informação de um massacre em Palma, no qual inicialmente se falava de algumas dezenas de mortos, mas veio a saber-se, depois de uma investigação jornalística, que terão morrido mais de 1500 pessoas…
Houve, na verdade, muitos massacres. Enquanto ainda estava lá, falávamos do massacre do Chitache, cerca de 50 jovens de uma só vez.
Acompanhei também com muita preocupação, com muita dor, essa investigação dizendo que teria passado de 1300 pessoas [em Palma, a 24 de março de 2021]. Se isso realmente aconteceu, e eu não duvido, porque o Governo sempre teve uma atitude de negação, e se esconderam esses dados, então é um crime em cima de outro crime. Eu penso que a população não merece isso, não só passar por isso, mas a população em geral, de Moçambique, não merece ter dados escondidos, não merece ficar sem chorar os seus mortos.
- António Juliasse pediu que pediu que fosse decretado um dia de luto nacional…
Exatamente, o bispo de Pemba pediu isso e com toda a razão, deveria ser falado de forma aberta para a população. É muito pior quando se esconde a verdade, porque quando ela vem à tona causa muito mais dor.
Como vê a participação de jovens de Pemba na JMJ? Espera que possam chamar a atenção para a crise na região?
Acredito que sim e naquilo que depender de mim, vou ajudar a chamar essa atenção, porque o mundo precisa de conhecer, precisa de saber. A guerra da Ucrânia é também uma dor profunda para o Santo Padre e para toda a Igreja, para a humanidade, mas acabou escondendo outras guerras, como a guerra de Moçambique, por exemplo, de Cabo Delgado – depois que começou a guerra da Ucrânia, quase não se fala, a imprensa já não divulga, mas são muitas as guerras. Eu gostaria de encontrar-me com esses jovens que vêm d Pemba.
Era o que lhe ia perguntar, se espera concretizar esse encontro?
Espero, com certeza, vou procurar a delegação de Moçambique e quero encontrar-me com os jovens de Moçambique, especialmente os de Pemba.
A situação em Cabo Delgado levou-o ao Vaticano. Privou com o Papa. Francisco optou por uma presença mais prolongada do que é habitual na Jornada. Atribui algum significado especial ao facto? O que espera do Papa em Lisboa?
Bom, em primeiro lugar, eu vejo que é um Papa muito ativo e tem mostrado uma alegria muito grande, afirmando sempre que temos de ser uma Igreja que transborda alegria. Ele tem mostrado muita força para governar a Igreja. Quando me chamou lá [Vaticano] para conversar, eu me senti muito amparado por ele. Eu sei que se preocupa com todas as regiões onde as pessoas estão sofrendo.
Ele vai ficar bastante tempo na Jornada Mundial: com os problemas de saúde que teve, com as cirurgias que fez, ele está a querer marcar a sua presença. Ele quer mostrar a força do Evangelho e, como um sinal de Deus neste mundo, mostrar que Deus está presente, para que não desanimemos e a juventude se sinta amada por Deus, para que possa assumir o seu protagonismo.
Penso que será uma Jornada muito bonita. As nomeações que fez, a criação de novos cardeais, inclusive a do auxiliar de Lisboa, mostram o amor que tem pela juventude, são vários sinais que tem dado e a sua presença vai ser muito importante para toda a juventude e para a Igreja no mundo inteiro.
A partir da sua experiência como missionário, que papel vão ter as novas gerações africanas na construção do futuro do continente? Há esperança numa mudança de rumo?
Penso que os jovens da África, como jovens de toda a parte, devem olhar as experiências atuais e procurar perceber o que que é importante fazer e o que que não é importante. Porque se nós olharmos p para a governação, para os políticos atuais… quanto mau exemplo, quanta coisa errada quanta corrupção. A África precisa, como o mundo precisa, de líderes que sejam honestos, que sejam corretos, que tenham uma verdadeira preocupação com a população e que governem de maneira especial para os mais pobres. Muitos governos governam para manter alguma classe política, uma classe e é de ricos, que dominam, que comandam, mas não é possível que isso continue. Espero que os jovens africanos e do mundo inteiro aprendam que podem ajudar a construir o futuro, começando agora, preparando-se bem e não entrando nesse tipo de manipulação que acontece nos dias de hoje, que não se deixem cooptar nem pela corrupção nem pelos corruptos, por aquelas pessoas que lhes querem roubar a esperança. O Papa Francisco diz nos seus documentos: não deixemos que nos roubem a alegria, não deixemos que nos roubem a esperança, não deixemos que nos roubem o futuro.
E o futuro está nestes jovens. Que contributo podem ter na vida da Igreja?
Em primeiro lugar, eles precisam de sentir que são Igreja. Eles, os jovens, são Igreja.
A Jornada poderá contribuir para isso?
Com certeza, a Jornada vai contribuir. Um jovem não precisa de pedir licença para entrar na Igreja, eles são Igreja. É importante que as comunidades também reflitam sobre isso: qual o espaço que damos aos jovens, na nossa Igreja. Há muitos adultos que têm dificuldades em acolher a juventude e eu pergunto sempre isso aos pais, aos avós: na sua casa, o jovem coloca a sandália no lugar certo, os chinelos, não deixa espalhado pela casa? Na Igreja também é assim, os jovens são jovens, eles têm a sua maneira de ser e nós precisamos de os acolher, aceitá-los, valorizá-los para que eles possam assumir o seu papel, o seu protagonismo.
São lições que temos de tirar da Jornada?
Penso que a Jornada trará muitas lições e uma delas, começando pelo Papa, é esse acolhimento da juventude: devemos fazer o mesmo nas nossas dioceses, paróquias e comunidades. Devemos mostrar ao jovem que é importante para Deus, para a Igreja, que a Igreja sem ele não é a verdadeira Igreja de Jesus – lembrando que Jesus chamou um grupo de jovens para estar com ele, os apóstolos eram um grupo de jovens e os jovens podem muito.
Costuma dizer-se que, 10 anos depois, ainda sentem os efeitos da Jornada, no Brasil ainda sentem os efeitos da Jornada de 2013, no Rio. Podemos também ter essa expectativa em relação a Portugal?
Com toda a certeza. No Brasil, a Jornada foi um despertar da juventude e vocações. Há poucos dias eu ouvi um testemunho, de um padre, dizendo que a decisão dele foi tomada na Jornada Mundial. A partir da Jornada, ele entrou para o seminário, hoje é padre e agradece ao Papa Francisco, agradece à Jornada por isso. Penso que é um momento de revigoramento, um momento de renovação. É um momento de despertar a juventude, com certeza. Lisboa e Portugal vão falar, durante muitos anos, dessa Jornada e receber os frutos que trará para Portugal e para a Igreja no mundo todo.