JMJ: «Cada um no seu território está a tentar aproveitar e não perder estes jovens» – D. Américo Aguiar

Três meses depois da JMJ Lisboa 2023, a Igreja Católica volta a convocar os seus jovens, para um encontro a nível diocesano, convocado pelo Papa. A mensagem de Francisco para este Dia evoca o encontro mundial, que decorreu em Lisboa, no último mês de agosto, com mais de 1,5 milhões de participantes nas celebrações conclusivas. O cardeal D. Américo Aguiar, bispo de Setúbal e presidente da Fundação JMJ Lisboa 2023, é o convidado da entrevista conjunta Renascença/Ecclesia

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

A celebração deste Dia Mundial da Juventude, a nível diocesano, ainda com a experiência de agosto tão presente em todos, é uma oportunidade para “reagrupar” forças e lançar novas dinâmicas?

O Papa Francisco, no encontro em Algés, na despedida e encontro com os voluntários, deixou-nos no topo de uma onda. Aliás, ele usou a imagem da onda da Nazaré. Eu não sei como é que isso no surf se chama…

 

Estamos na crista da onda…

Pronto, não sei se a linguagem de surf é essa, mas seja, e nós não podemos perder esta oportunidade, é o que tenho dito sempre. Os quatro anos de preparação, a envolvência dos jovens – apareceram jovens de todo o lado, debaixo das pedras, nas dioceses mais interiores, nos territórios mais desertos, quanto à presença de pessoas e jovens. Foi uma surpresa, foi uma bênção, foi uma graça. E o pior que pode acontecer, como tenho dito, com aquela imagem, o pior que podia acontecer era só termos para os jovens a Missa das 11 ao domingo e mais nada.

 

Houve uma mobilização muito específica e muito direcionada. Pergunto se, nestes meses, já há um certo sentimento de orfandade?

É misto, depende dos territórios, depende das dioceses, depende das comunidades, depende de qual foi o terreno onde se alicerçou este desafio. Porque nós temos consciência de que, em muitos sítios, se partiu do zero, noutros sítios existia já algum cultivo e noutros sítios apenas foi dar continuidade e dar mais gás, digamos, às coisas. Temos coisas muito diferentes em todo o território, norte, sul, interior, litoral, continente e ilhas, por isso a realidade é muito diferente.

O que me tem chegado das dioceses, ainda das estruturas ligadas aos COD, aos COV e aos COP, aos comités paroquiais, vicariais, diocesanos, é que há consciência da importância de não perder a crista da onda. Portanto, cada um no seu território está a tentar aproveitar e não perder estes jovens. Porque muitos destes jovens não estavam ligados a nada, agora ficaram conectados a Cristo vivo, conectados ao Papa Francisco, conectados ao Encontro Mundial. É preciso agora pôr o pé na realidade territorial, da comunidade de pertença: uns são universitários, outros não vivem na sua paróquia de origem, outros não praticam ou não têm relações no sítio onde vivem. Este é outro problema: qual é a minha comunidade? É onde tenho morada efetiva, do cartão de cidadão, ou é onde eu me sinto bem a participar?

 

Até por isso faz sentido que este compasso de espera também sirva para ajustar essas propostas?

Exatamente. Agora, o que me chega do que está a acontecer no terreno é muito positivo.

 

Esta celebração diocesana é uma oportunidade para se encontrar com os jovens de Setúbal. É uma ocasião especial para o bispo?

É muito especial. Primeiro, quero dizer-vos que o encontro da juventude, a nível diocesano, é agora no domingo de Cristo-Rei e foi um filho da jornada Mundial da Juventude de Lisboa, porque o Papa mudou a data, que antigamente era no Domingo de Ramos e era muito complicada para as comunidades. Em Setúbal, ser no Cristo-Rei é jogar em casa, é muito especial ir ao Cristo-Rei, estar com os jovens de Setúbal. Eu tenho-os acompanhado na caminhada, vamos dizer, sinodal, de escuta, que eles estão a fazer, eu estou tentado, com eles, a fazer uma espécie de caminhada sinodal até 2025.

Eu fiquei muito sensibilizado e tocado pelo que eu vi em Coimbra, o sr. D. Virgílio [Antunes]está a pensar para Coimbra um trabalho com o COD idêntico ao de um Sínodo. Eu acho que vamos por aí, fazer caminho com eles. Temos de abandonar aquela conversa do “vamos fazer coisas para eles”, não vamos fazer nada para eles, vamos, com eles, fazer o que eles querem.

 

Penso que essa iniciativa se vai replicar também em muitos sítios, mas não se pode criar uma certa ideia de que há um caminho que é feito escutando, mas que, para quem está envolvido, faltem algumas decisões concretas e algumas mudanças?

Há a tensão do já e ainda não. Eu tenho consciência que nós temos aqui, vamos dizer, dois pulmões: temos jovens que chegaram, têm muita expectativa, querem conhecer Cristo vivo, querem fazer caminho; temos outros que são eles os protagonistas do testemunho de Cristo vivo.  É como a carruagem com várias velocidades, nós temos de estar prontos a fazer o primeiro anúncio, querigmático, o anúncio de Cristo vivo a quem não conhece, e ao mesmo tempo fazer caminho com aqueles que têm já quilómetros de caminhada, de testemunho e de vivência de Cristo vivo. Os maiores evangelizadores dos jovens têm de ser, obrigatoriamente, e são os jovens. Os Papas vão repetindo sempre isto. Mas há sempre esta tensão, e não é só dos jovens.

Ainda há agora com o fim desta primeira sessão do Sínodo. As dioceses, os países… há aqui uma tensão deste ano seguinte. O que é que vamos fazer? O que é que não vamos fazer? Não vai voltar outra vez à paróquia e ao paroquiano, ao homem e mulher de boa vontade, mas é preciso corresponder, porque senão há um sentimento de perda de tempo, um sentimento de vazio. Isso não podemos permitir, porque quebra o ânimo.

 

Na sua mensagem para este dia, o Papa renova os seus elogios à JMJ Lisboa 2023, afirmando que o encontro mundial na capital portuguesa “superou todas as expectativas”. É uma mensagem importante, para a Igreja e a sociedade, até pelas dificuldades que se têm vivido?

Sim… eu ainda sou suspeito de falar das jornadas, mas cada vez mais me convenço de que Portugal fez bem. Portugal, os portugueses, não me canso de repetir, merecem toda a nossa homenagem e gratidão. Os portugueses, Portugal, fizeram bem. Todas as áreas, todas as profissões, todos os profissionais privados, públicos, todos, todos, todos. Mesmo as pessoas que não estavam a favor, mesmo as pessoas que estavam um pouquinho zangadas, também tiveram o seu papel, tiveram a sua importância, também foram importantes para redesenhar e melhorar os processos. Portanto, é uma gratidão transversal ao país todo.

Depois, mais uma vez, e isto faz-nos bem, quando quem está de fora, quem é responsável, tem uma visão mundial, reconhece. E o Papa, quer na viagem de regresso, quer agora, novamente, sublinha sempre essa gratidão e essa avaliação positiva, que, eu acho, deve ser motivo de alegria para todos os portugueses, todos os envolvidos. Agora, não podemos perder o elã, voltamos ao mesmo.

Na última vez que estive com o Papa, ele dizia, até numa mensagem que gravou, que a jornada não deve passar a ser um álbum de fotografias bonito, de uma coisa que aconteceu e acabou. Ora, isso nós não podemos permitir e temos de ser capazes de, com a experiência que ganhamos, das polícias, das forças de segurança, das forças de saúde, dos jovens, dos megaeventos, da mobilidade, do protocolo, tantos, tantos, tantos jovens que passaram a ter um currículo invejável, naquilo que são até oportunidades de trabalho e de futuro para eles.

 

Essa avaliação positiva é transversal, mas também há quem procure ainda olhar para aquilo que correu menos bem. Entende esta persistência na busca da polémica, quando se fala da JMJ?

Sim, eu acho que isso é fruto dos tempos que vivemos. Eu respeito, eu vivo bem com a liberdade da expressão, não tenho problema nenhum, absolutamente. Às vezes dói e magoa, é incompreensível, não só nas questões da Igreja, também noutras da sociedade portuguesa e até fora das nossas fronteiras e da nossa realidade, essa permanente busca de sarilho, de conflito, alimentar e construir-se por cima das ruínas, dos destroços. Isso não é a minha praia, não é a nossa praia, mas infelizmente é a praia de muitos, o que resulta em tantos conflitos mundiais. Às vezes perguntamos por que há guerra na terra de Jesus, por que há guerra na Ucrânia, porque há guerra no Mali, na República Centro-Africana, no Sudão… as coisas começam assim, quando optamos pela discórdia.

 

Uma delegação da JMJ Lisboa 2023 vai ser recebida por Francisco, no próximo dia 30 de novembro, no Vaticano. O que significa este encontro? O que espera deste momento?

É cumprir calendário, faz parte da dinâmica do pós-jornada, com pessoas ligadas à Fundação, ao Comité Organizador Local. Nós convidamos dois jovens de cada diocese, de cada comité diocesano, a comitiva dos voluntários, dos trabalhadores, dos empenhados, ultrapassa as 100 pessoas. E depois também convidamos as empresas, os benfeitores, os patrocinadores, os parceiros, são várias centenas de pessoas que vão agradecer.

Decorreu tudo muito bem e foi tudo espetacular, graças a dois intervenientes e protagonistas especiais: O Papa e os jovens. Eles é que foram os responsáveis de que tudo tenha corrido bem e tão bem, como vamos testemunhando.

 

Olhando para a realidade da Fundação, há um momento que é muito aguardado, que é a apresentação de contas. Eu pergunto se ela está para breve e se espera que sejam boas notícias…

Sim, boas notícias serão. Isso aí já podemos partilhar.

 

E qual é a dimensão da boa notícia?

É muito boa, é muito boa. Nós temos de aguardar até 31 de dezembro, não é uma questão de empurrar com a barriga, são os prazos legais. As contas fecham-se a 31 de dezembro. Depois nós trabalhamos com a Deloitte, que fará a auditoria dessas mesmas contas, a qual nos diz que entre maio e junho poderá fechar e entregar o relatório da auditoria das contas. Depois também há um prazo de março, que tem a ver com as responsabilidades das empresas, o primeiro trimestre, que significa faturas que chegam, compromissos legais, bem, essas coisas todas. Mas, a 31 de dezembro, já teremos uma ideia quase total daquilo que é o deve e haver, já sabemos que haverá um superavit que será reencaminhado, como temos dito, para projetos, de acordo com decisão do Governo, da Câmara de Lisboa, da Câmara de Loures e da Igreja.

 

Mantém-se, portanto, a intenção de trabalhar com o Governo e com as autarquias que estiveram mais diretamente envolvidas, em projetos direcionados especificamente para jovens…

Para jovens. E por que Lisboa e Loures? Porque são os municípios mais envolvidos, até materialmente falando. É lógico, há projetos que podem acontecer em Loures, em Lisboa e depois podem ser usufruídos por jovens de outros locais: falamos nos universitários, falamos nas residências, falamos em tantos, tantos projetos que podem acontecer e que, de acordo com estas várias instituições, será dado seguimento.

 

A JMJ é vista como um exemplo de colaboração entre Igreja e instituições públicas. Acredita que é possível replicar essa colaboração, a outros níveis?

Ela acontece no nosso território. Eu trabalhei na Diocese de Porto, na Diocese de Lisboa, agora em Setúbal, percorri o país todo e as autarquias, as entidades públicas, privadas, em todo o país, colaboraram de mãos dadas para que a Jornada acontecesse e até, nomeadamente, aquilo que foram os dias nas dioceses, qualquer coisa de extraordinário, em todo o país. E nós só temos de agradecer e replicar. Em equipa que ganha não se muda. Acho que, no território, devemos continuar de mãos dadas, naquilo que eu disse também em Setúbal: estamos cá para o mesmo, para o bem comum, cada um com as suas competências, cada um com a sua jurisdição, com as suas responsabilidades, mas não faz sentido, às vezes, que, num território, as instituições, os agentes e os protagonistas estejam de costas voltadas ou tomem decisões que não apontam todas para o mesmo, que é o bem comum da comunidade que servimos.

 

Nesse olhar sobre a realidade sociopolítica, como é que acompanha o atual momento de crise? Teme que haja uma degradação da vida democrática e um aumento do populismo?

Sim, com preocupação, porque é assim. Eu tenho dito isto muitas vezes e volto a dizer. Aliás, eu tenho currículo cadastro de ter sido autarca. Primeiro, custa muito que, com muita facilidade, se diga que todos são ladrões e vigaristas e criminosos. Mas isto, infelizmente, acontece quando há qualquer coisa que liga políticos, quando há qualquer coisa que liga padres, quando há qualquer coisa que liga qualquer outro profissional.

 

Mas essas generalizações não criam um clima de degradação? 

Mas, com certeza, a minha preocupação perceber, na segunda-feira,

a seguir, quando se dinamita tudo aquilo que é representação, tudo aquilo que é autoridade, tudo aquilo que é serviço público, é na segunda-feira quem é que sobra para reconstruirmos o quê, e juntos?

Portanto, custa muito e até tenho uma preocupação. Com o continuar disto, eu não sei se daqui a 5 ou 10 anos nós temos pessoas disponíveis para ser candidatas às juntas, às câmaras, a deputado e ao governo. E, isto porquê? Temos de o dizer com toda a coragem: os eleitos ganham mal. Os eleitos ganham mal. Aliás, ganha mal quem recebe o salário mínimo e ganham muitos outros. Toda a gente ganha mal, com a exceção de poucos. Portanto, os eleitos ganham mal. Não podemos encher a boca e afirmar: ladrões ganham e enchem os bolsos. Os eleitos ganham mal.

Depois, são pessoas, que não trabalham das 8 às 5 da tarde.  Trabalham 24 horas por dia, 7 dias por semana. Depois, as suas famílias sofrem muito. Eu uma vez falei com um autarca que acompanhei, que estava destroçado, porque tinha chegado a casa e os miúdos chegados da escola e perguntaram ao pai: ó pai, tu és ladrão? É que na escola dizem que tu és ladrão. Isto é inaceitável. E, portanto, mal remunerado, desrespeitado, precário… o que é que nós queremos? Como é que nós somos capazes de captar os melhores da nossa sociedade para nos governarem, independentemente de ser direita, de esquerda, do centro, etc. Isto não me interessa nada. Aliás, eu tenho amigos em todos os partidos, falo com todos e trabalho com todos para o tal bem comum. Por aí não vai. Agora, preocupa-me muito o que estamos a viver e não sei quem é o maestro. Quem é o maestro disto? Porque o que é certo é que estamos a dinamitar tudo. São os professores, são os polícias, são os juízes, são os políticos, é a igreja. Tudo está a ser dinamitado. Até parece que está a ser pensado e orquestrado, que é muito grave.

 

E qual é então a solução ou que soluções preconizaria? Até porque  

alguns dos argumentos que utilizou são aqueles que teorias mais populistas usam para precisamente denegrir a imagem de quem serve? 

Exatamente. O Papa, neste último documento que sucedeu à ‘Laudato Si’, ou que o complementa – a ‘Laudate Deum’ – a certa altura diz uma coisa muito interessante, até sobre os ativistas ambientais. Aliás, eu volto a dizer, já o disse aqui na antena, sou contra este tipo de ataques a pessoas com tintas, etc. Acho que um dia isso vai correr mal, vai correr muito mal, quando em vez de tinta for uma faca e quando em vez de uma brincadeira for uma coisa séria.

Eu sou um antigo, perigoso ativista ambiental e por isso respeito muito, compreendo, mas é preciso condenar este tipo de gestos e que sejam mais inteligentes e mais inovadores a fazer coisas que não agridam as pessoas.

Mas nesse documento o Papa diz que, com todo respeito por estes jovens, normalmente, ia dizer que eles estão a ocupar um espaço que a cidadania está a desocupar. Porque se

nós temos eleições e metade fica no sofá sentado, se nós temos um grande déficit de participação cívica, política, partidária dos cidadãos, depois os lugares são tomados por outros tipos de opções

para a sociedade, que também são válidas.

A democracia não pode ser só quando nós achamos bem. Na democracia temos de aceitar, como contrato de Estado, que funciona, seja qual for a opção. Eu olho para a América Latina e preocupo-me muito com opções muito coladas a um lado ou com opções muito coladas a outro. Eu prefiro sempre soluções que sejam mais transversais, mais englobantes de toda a sociedade.

Mas se as pessoas escolhem para um lado ou para o outro, nós temos de respeitar.

 

É esse o risco, em Portugal?  

Ponto um, os votos são todos iguais. E ainda bem. E é uma conquista de abril; destes 50 anos. Os votos são todos iguais. Cada um de nós vale um. E eu acho que isso é importante. Agora, se alguém está preocupado com os votos de um lado ou com os votos do outro, temos de nos questionar porque é que os cidadãos tomam aquela opção. E isso sim, isso deve ser um trabalho dos partidos, dos movimentos partidários, de maneira que entenderem qual é o sentido do cidadão, para tomar esta ou aquela opção

e agir em conformidade. Porque é assim, vamos lá ver uma coisa. Todos queremos mais professores. Eu também. Todos queremos mais médicos. Eu também. Todos queremos mais ordenado. Eu também. Todos queremos mais tudo. Estamos todos de acordo. Como é que isso se faz? Eu há dias disse: Por amor de Deus, não andemos até 10 de março a discutir o caso influencer. Até 10 de março é importante saber o que é que o Chega quer, o que é que o CDS quer, o que é que o PSD quer, o que é que o PS quer, o que é que a CDU quer, o que é que o Bloco de Esquerda quer, o que é que o PAN quer, o que é que a IL quer, e agora não sei se falta algum. Mas o que é que querem? O que é que propõem aos portugueses, para os portugueses escolherem? E a mim não me importa nada que escolham o que quiserem. Mas que escolham com consciência, com responsabilidade, para onde é que vamos juntos. Para onde é que vamos juntos. Porque se vamos discutir quem é mais simpático, quem é menos simpático, quem faz mais barulho, quem é mais reivindicativo, eu acho que chegamos à noite eleitoral e temos um problema matemático para resolver.

 

Queria olhar um bocadinho agora para a sua nova missão como bispo de Setúbal. Queria perguntar-lhe como é que está a correr esta adaptação ao território de Diocese Setúbal?

Está a correr muito bem. Eu estou a tentar corresponder a uma promessa que fiz, a única, e

que era tentar até dezembro visitar todos os agentes e protagonistas deste território,

da Diocese de Setúbal.

Tenho já uma dor. Eu visitei os dois estabelecimentos prisionais, do Montijo e de Setúbal, e eu vou ter de gritar bem alto que não se pode privar a liberdade de homens, de cidadãos, de pessoas,

e tê-las a viver em condições sub-humanas como estão a viver. Eu visitei o estabelecimento prisional de Setúbal e só me vinha a ideia, imagens de filmes da América Latina. E visitei ontem o estabelecimento prisional do Montijo e vinha uma imagem, coisas da África profunda.

 

E como é que a sociedade vive bem com essa realidade?

Eu fiquei muito triste e aliás, estou a digerir, porque nós dizemos que acreditamos num sistema de reinserção. Nós acreditamos que um cidadão comete uma falha e cumpre uma pena.

Agora não lhe podemos colocar uma pena dupla em cima, que é viver, em condições, abaixo do limiar da dignidade da pessoa humana. Não podemos permitir isso, mas eu acho que nós permitimos. E depois é aquela coisa que, e permitam-me, isto não é só cristão, isto é humanidade pura e dura, que é: eu sei que quando estamos do lado da vítima, da pessoa que foi assaltada,

da pessoa que morreu, da pessoa que foi prejudicada, queremos, nem que seja por segundos, queremos o pior para o criminoso. E quando estamos do lado do amigo, do familiar e não sei o quê, queremos o melhor possível para o criminoso; ou para a pessoa que falhou, para o pecador.

Mas nós temos de encontrar aqui um ponto de encontro. Entre aquilo que é a correção, é a penalização e aquilo que nós dizemos acreditar no mundo, enfim, moderno, no mundo humanizado, no mundo, enfim, pós-moderno, no mundo (pintem-no lá como quiserem), mas nós não podemos andar aí a tratar de coisas tão importantes, mas que não me parecem, que sejam tão prioritárias como criar as melhores condições para alguém que está privado da liberdade e que lhe estamos a dizer que durante aquele tempo ele vai ser corrigido, melhorado e vai voltar à sociedade para retomar a sua vida. E as condições que eu encontrei no Montijo e no Estabelecimento Prisional de Setúbal, com uma ressalva, vi excelentes profissionais, desde a direção da cadeia, passando pelos guardas prisionais, e por todos os trabalhadores são magníficos; mas no caso estou a falar dos espaços físicos e de vida que são muito, muito, muito, muito abaixo daquilo que nós possamos imaginar como bitola para o respeito pela dignidade da pessoa humana.

 

Encontramos aqui uma das prioridades do cardeal D. Américo. Outra das suas grandes  

prioridades será a procura de soluções para os mais vulneráveis, numa região onde  

ainda é assinalável a pobreza?

Sim, mas Setúbal já não é a fotografia que os portugueses têm gravada dos anos 80, da fome e das bandeiras negras. E felizmente não é. Há problemas, há dificuldades, mas há muita coisa boa. Aliás, eu tenho dito, vou começar a falar da ‘Rive Gauche’. Qual margem sul? A ‘Rive Gauche’ que é mais gourmet, não é?  É estrelas Michelin. Porque é inaceitável que nós continuemos até negativamente a referir-nos a um território nacional que é exemplar, que dá cartas, que é muito importante e que é decisivo em muitas áreas. E não estou a falar só da AutoEuropa, que é x% do PIB. Estou a falar de muitas outras coisas. Portanto, Setúbal, os municípios de Setúbal, a população de Setúbal é muito mais, muitíssimo mais, e tem de ganhar gosto, e temos de vestir todos a camisola, os autarcas, as empresas, as pessoas. Temos problemas? Temos. Temos bairros complicados? Temos, mas Lisboa e Porto têm piores. Portanto, nós não somos os desgraçadinhos e uns coitadinhos, que juntamos ali todo o mal que existe à face da terra. Não. Nós temos capacidade, nós temos vontade, nós temos capacidade instalada, nós temos gente nova, nós temos famílias novas. E também temos problemas. E, portanto, nós temos é que ser capazes de para grandes problemas, encontrar grandes soluções. E juntos. E é isso que vamos tentar fazer.

E nestas visitas estive com os representantes da UGT e da CGTP, e encontrei outros dois grandes problemas graves. Um, os picos de violência doméstica. Os picos de violência doméstica, eu não sei se isto está transversal ao país, mas aqui é-me sinalizado números além daquilo, que possa ser expectável. E o outro, a famosa malta do nem-nem – Nem trabalha, nem estuda, nem tem formação; numa faixa etária 18-30. Ora, isto é um desafio que nós, Igreja, e nós Sociedade Civil e os eleitos, temos de olhar com especial enfoque, porque é uma fase da vida decisiva para construir o futuro.

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Agência ECCLESIA

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