JMJ 2023 – Frutos temporões, ‘no tempo’ e serôdios…

Luís Manuel Pereira da Silva, Diocese de Aveiro

Na terra onde me fiz gente (nasci nas terras de Don Pérignon, em França, mas fiz-me gente em Pessegueiro do Vouga), era certo e sabido que verão quente e seco dava ‘fruta temporã’, aquela que nascia antes do tempo, doce e rosadinha. Como me recordou o meu pai, há dias, esta era a fruta que vinha ‘no cedo’.

No tempo certo, haveriam de vir as mais robustas colheitas e, por fim, outras, já serôdias, viriam fora do tempo, ‘no tarde’. Todas eram, porém, bem-vindas, num tempo em que a fruta de época era mesmo ‘de época’, por não se dispor dos meios que nos permitem, como hoje, trazer fora de tempo o fruto chegado do outro lado do mundo. Haver fruto temporão abria o leque do tempo: de mais tempo de frutos se passava a dispor.

Lembrei-me disto ao refletir sobre o que pretendemos que sejam os frutos das JMJ. Frutos temporões, ‘no tempo’ ou serôdios? Ou não será que devamos ter a sabedoria de contar com frutos imediatos, talvez mais epidérmicos, frutos no tempo próprio, e frutos inesperados e fora de todo o plano? A pergunta supõe a resposta…

Percebe-se a sofreguidão de ver os frutos temporões. Vê-los é garantia de uma maior amplitude do tempo dos frutos, mas há um detalhe, não recordado acima, que pode alterar essa equação. A fruta rapidamente amadurecida, quando vinha uma borrasca ou geada, caía no chão, e esborrachava-se.

É, por isso, sábio dar tempo para que o fruto amadureça, robusto e capaz de enfrentar a intempérie.

Esta metáfora do campo, do cultivo, do jardim, percorre todo um livro cujo conhecimento é, ele mesmo, fruto temporão destas JMJ. Refiro-me à obra ‘a cultura do Éden’, de Johannes Hartl, um livro que me foi dado a conhecer pelos padres peregrinos da diocese de Colónia, acolhidos na minha comunidade paroquial de Santiago de Beduído, onde integrei a generosa equipa de voluntários. Nele me basearei para a reflexão que aqui partilho, de seguida, não sem uma nota prévia.

O que aconteceu, nos dias nas dioceses, parece ter estado a escapar às leituras que vão sendo feitas das JMJ. Um mar de novos encontros, de partilhas, de reconhecimento de diversidade de caminhares, se agigantou em todas as dioceses do país. Eu, que participei nas primeiras jornadas da juventude que tinham seguido este modelo – as de Paris, em 1997 -, estou convencido de que a colheita dos frutos não se fará, devidamente, sem ter em conta este primeiro tempo das JMJ, passado na discrição das dioceses e de pendor autenticamente catecumenal ou, pelo menos, de feição peregrinante…

 

Feita esta nota, regressemos ao livro…

Johannes Hartl, que uma rápida consulta do respetivo site permite perceber ser um reconhecido teólogo no contexto alemão e solicitado um pouco por todo o mundo para conferências, é um ilustre desconhecido entre nós. Neste livro, sempre bem fundamentado e documentado, sem afirmações gratuitas, o autor faculta-nos uma leitura do nosso tempo que é simultaneamente realista e esperançosa. A sua leitura do fundo humano permite-lhe ir para além da espuma e do imediato, levando-nos à constatação (tão oportuna para um discernimento pastoral) de que a vida humana autêntica se realiza em torno de três condições fundamentais que ele analisa, com detalhe e muita informação: vínculo, sentido e beleza.

Numa interpretação muito pessoal, ouso estabelecer uma relação entre cada uma destas condições e vetores da missão do cristianismo. Cada uma das condições analisadas constitui-se como vetor de ação evangelizadora e transformadora.

A pretexto de cada uma destas condições/vetores, recolho um sumário de ideias que nos permitem perceber o manancial de oportunidades que nos proporciona este livro, um dos tais frutos (pessoais) temporões destas JMJ.

 

Sobre o ‘vínculo’

No âmbito da reflexão sobre a importância do vínculo para a autêntica vida humana, este autor recorda, nas páginas 90 e 91, dois estudos de 2019 que evidenciam que os adolescentes sem vínculo sólido ao pai ‘custam’ ao Estado, em média, cerca de 15 mil euros, muito mais do que os 1450€ que ‘custa’ um adolescente com vínculo seguro ao pai, sendo autores desses estudos Christian Bachmann, Jennifer Beecham e Thomas O’connor. Quantos desafios decorrem desta singular constatação! Quantas implicações para políticas de família e sociais, devendo, neste contexto, esperar-se a voz profética da Igreja a solicitar que, em nome de todos e, em particular, das crianças, dos jovens e adolescentes, se retomem como prioritárias as políticas de família verdadeiramente protetoras desta e não promotoras da sua fácil e rápida dissolução!

A importância do vínculo é sublinhada pelo autor que, após apresentar diversos estudos do âmbito da psicologia e do desenvolvimento, conclui que, para um bebé, o ‘vínculo, e não a luta pela sobrevivência, é a força motriz’ (p. 73).

A singularidade desta obra está em, não só nos facultar muita informação e documentação, mas, principalmente, em interpretá-la, descodificando o seu significado e colocando-o em confronto com o que, tantas vezes, é repetido à saciedade, de forma acrítica.

Da constatação de que o vínculo se constitui como vetor estruturante de uma vida humana autêntica resulta uma óbvia interrogação para o cristianismo: que qualidade têm os vínculos que criam os nossos lugares de evangelização: catequeses, pastoral juvenil, escolar, universitária, etc.?

 

Sobre o ‘sentido’

O ‘acriticismo’ acima referido é comum ao abordar a questão do sentido. As teses laicistas e preconceituosas em relação à religião foram gerando a convicção de que a fé era assunto de ‘menores’, de destituídos de inteligência ou do foro estritamente individual, sem importância. Hartl recorda, com frequência, o trabalho realizado por Viktor Frankl, criador da logoterapia, que estabeleceu um nexo entre a resistência (inclusive física) e a fé, e complementa com investigações mais recentes que confirmam as descobertas já realizadas por aquele psiquiatra judeu, que passara parte da sua vida em campos de concentração nazis. Estudos realizados por Aliya Alimujian e Ashley Wiensch, publicados em 2019, no Jama network open, concluem que ‘as pessoas que consideram que a sua vida tem sentido têm duas vezes e meia menos probabilidades de sofrer derrames cerebrais e enfartes.’ (p.195)

Não fique, porém, a impressão de que o livro é uma sequência de informações. Trata-se de uma muito interessante obra de tese, que analisa, a fundo, o ser humano e a sua realização contemporânea, enunciando os lugares onde o desejo humano encontra resposta na esperança cristã. A reflexão de Hartl leva-o a concluir, perante os desafios que ele detidamente analisa do transumanismo, da omnipresença do digital, etc., que ‘o futuro não pertencerá a quem calcule mais rápido, mas a quem souber reconhecer e transmitir o sentido.’ (p. 206). Como não ver aqui um repto a que se perceba a ansiosa, mas tantas vezes latente, busca de sentido de que nos falam os jovens cujos olhos procuram, sem cessar, que se lhes diga que o sentido se procura e não apenas se constrói como uma autocriação: a consciência do ‘dom’ supera os limites em que o individualismo nos enreda!

Para onde apontam as iniciativas que as nossas comunidades e instituições cristãs promovem? Falam e levam a peregrinar em direção a um sentido ou divergem em atalhos sem rumo? Como denunciam, com inteligência e criatividade, o sem-rumo de tantas vias que são beco sem saída, mas que, por temor, parecem ser legitimadas sem interrogação?

 

Sobre a ‘beleza’

Por fim, a reflexão de Hartl incide sobre a beleza…

Aqui, Hartl não deixa de interpelar as próprias comunidades cristãs que pareceram ter abandonado a consciência e preocupação com o belo.

Parecendo secundar o pensamento de Hartl, as JMJ vieram desafiar à recuperação da beleza, face à demonstração de que a juventude não se rendeu, definitivamente, ao kitsch e ao feio. Os momentos de beleza musical, cénica, literária, das JMJ evidenciam que há longo caminho a percorrer, sem medo, nesta matéria, o que – deve reconhecer-se – tem sido o esforço que, por exemplo, é realizado pela Igreja Portuguesa, através do SNEC, na construção dos recursos da disciplina de EMRC em que a beleza é procurada e critério constante, recursos esses que chegam a milhares de jovens das nossas escolas nacionais, mas cuja preocupação deve ser secundada nas restantes iniciativas das nossas comunidades cristãs.

Hartl critica a submissão do belo à função (por efeito das conceções contemporâneas de arte) e considera que a busca do belo torna a realidade mais durável, recordando que a beleza pode ter efeitos nos próprios estados anímicos com forte impacto social. Conta, a título ilustrativo, como Edi Rama, que chegou a presidente da Câmara de Tirana, capital da Albânia, encontrou uma cidade feia e com elevada taxa de criminalidade, tendo decidido fazer uma opção pela beleza, na reconstrução da cidade, ‘plantando árvores e redesenhando o centro da cidade como um lugar onde agrada passear’. Tais decisões repercutiram-se na diminuição da taxa de criminalidade, afirmando o então presidente da edilidade (e, hoje, primeiro-ministro da Albânia), que a ‘beleza pode ajudar na luta contra a delinquência’. (p. 329)

As implicações pastorais (e políticas, e pedagógicas, e…) destas constatações são imensas. Que lugar têm o belo e a busca do sublime no que fazem, pensam, organizam, partilham as nossas comunidades cristãs? Que lugar tem a arte (nas suas múltiplas expressões: música, pintura, cinema, literatura, dança, arquitetura, etc.) como instrumento pastoral de concretização de um caminho com todos os que se dispõem a peregrinar?

 

Em síntese…

O desafio de Hartl não é, diante de tudo isto, um regresso ao Éden, numa lógica saudosista, mas um reconhecimento de que o Éden nos fala de um lugar (projetado no passado, mas a falar-nos do futuro) onde a beleza, a relação vinculada e o sentido (expresso, também, no interdito exclusivo e limitado) eram a condição em que não tínhamos medo da nudez que denuncia a nossa fragilidade. A perda dessas três condições fez-nos ter vergonha e temer quem somos, por nos negarmos limitados e indigentes, temendo, também, o outro por ele poder reconhecer e denunciar a nossa indigência. Medos em que se alicerçam tantas decisões individualistas hoje tornadas lei (gritam solitárias as vítimas do aborto, da eutanásia, da ideologia de género, da pena de morte, da legitimidade da tortura, etc., e gritarão, no futuro, as vítimas do eugenismo e do transumanismo) e perante as quais é preciso quem ouse continuar a dizer que o humano que somos continua a fazer-se no encontro com o outro. Recordando o pensamento de Ferdinand Ulrich, que Hartl subscreve, há que reconhecer que ‘à luz do tu, o mundo começa a falar’. Quantos reptos a um cristianismo chamado a anunciar a nova Humanidade!

Os frutos são temporões, bem certo, mas, permitem prever fecunda e duradoura colheita se não tivermos medo, pois, onde há medo, não há liberdade; onde há liberdade, não há medo.

‘Não temais’, disse-nos o Mestre e recordou-no-lo o Papa Francisco, vezes sem conta.

A colheita já começou a fazer-se, mas não é para fazer de uma só vez. Recolhamos os frutos (porque haverá frutos a colher, há esperança e ‘sentido’…), juntos (‘vínculo’), e embelezemos em forma de jardim (‘beleza’) a realidade em que peregrinamos. Se não temermos, os frutos surgirão: uns temporões, outros ‘no tempo’ e, por fim, outros serôdios.

…porque um Deus que é ‘Amor’ selará os nossos vínculos, encherá de harmonia as nossas vidas, Ele mesmo horizonte para que aponta o nosso andar.

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Agência ECCLESIA

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