Jesus é o filho de Deus

2ª Catequese Quaresmal de D. José Policarpo Sé Patriarcal, 7 de Março de 2004 1. Evangelizar é dar testemunho acerca de Jesus Cristo. O cristianismo é uma fé religiosa, ou seja, uma manifestação da relação do homem com Deus. Não há verdadeira religião sem fé em Deus. Mas o carácter específico do cristianismo é o facto de o homem viver a sua relação com Deus na sua relação com Jesus Cristo, um homem como nós e Filho de Deus. Reconhecer em Jesus o Deus Vivo, porque Filho de Deus Pai, é o elemento decisivo da fé cristã. Não preciso de procurar Deus por outros caminhos; Ele é o caminho. Seguí-Lo como discípulo é percorrer, com Ele, o caminho que me leva a Deus; amá-Lo é fazer a experiência insondável do amor divino; comungar da Sua experiência de Filho de Deus, é descobrir Deus como um Pai, deixar que Ele me conduza à intimidade da comunhão trinitária; aceitar o seu desafio de amar os outros como Ele os ama, é descobrir que o amor a Deus nos conduz à fraternidade cristã, como comunhão de amor. Jesus Cristo basta-nos: podemos unir-nos a Ele como nosso irmão, e ser por Ele introduzidos no mistério da intimidade de Deus, de que Ele nos dá testemunho como Filho. Jesus Cristo é um caminho próprio para encontrar Deus: Ele só é resposta para quem procura Deus; devemos receber o seu testemunho de intimidade com o Pai, e descobrir a Igreja como uma comunhão de filhos de Deus, “filhos no Filho” e perceber que esse dom da filiação divina é o mais maravilhoso fruto da redenção. Ir ao encontro de Deus com Jesus Cristo 2. Deus é uma inquietação contínua do coração humano, mesmo quando não se lhe dá expressão no concreto da vida ou até se afirma não acreditar n’Ele. Nós sabemos a origem dessa inquietação: foi Deus que nos criou, recebemos d’Ele a vida, e esta clama pelo seu regresso à fonte, à Vida que nos deu vida. Fizeste-nos para Vós e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em Vós, escrevia Santo Agostinho. Jesus Cristo é a resposta para aqueles que buscam saciar essa inquietação. Caminho para a vida, só interessa a quem busca a plenitude da vida. Que poderá este anúncio significar, no nosso tempo e na nossa cidade? As inquietações religiosas do nosso tempo são diversas das do século I em que apareceu o cristianismo. Então a busca de Deus era explícita, tanto para os judeus como para os não judeus, profundamente religiosos na variedade dos deuses que adoravam. Os judeus buscam Deus através da Lei e dos Profetas e de uma religião fortemente institucionalizada; os pagãos, na proximidade dos seus “deuses”, cuja concepção situava a divindade muito próxima da realidade humana. Nessa variedade de caminhos para Deus, Jesus Cristo aparece como o caminho. Aos judeus São Paulo diz que a Lei é impotente para os levar à intimidade com Deus e que só a fé em Jesus Cristo realizará neles esse anseio. E aos não judeus, Paulo anuncia Jesus Cristo, como o Deus desconhecido que eles procuram na sua profunda religiosidade (cf. Act. 17,22 e ss). A todos o Apóstolo convida a irem ao encontro de Deus, com Jesus Cristo. Mas o que significa, hoje, na nossa cidade, esta procura de Deus? A quem poderá interessar Jesus Cristo como caminho e como resposta? Esta dimensão antropológica universal adquire, hoje, contornos e manifestações diferentes. Num país de tradição cristã, onde a maioria dos cidadãos continuam a afirmar-se católicos, a busca de Deus está ligada a essa tradição cristã. Mas isso não significa que todos os baptizados tenham percebido que é em Jesus Cristo, Filho de Deus, que encontrarão Deus. Mesmo para os cristãos é urgente um anúncio de Jesus Cristo, Deus, porque Filho de Deus, único caminho para o Pai. Para muitos cristãos a relação viva com Jesus Cristo vivo, de modo a gerar intimidade e compromisso, é débil ou mesmo nula. Exprimem a sua religiosidade em práticas e devoções que não têm, necessariamente, a densidade de uma comunhão de vida e de amor com o Senhor ressuscitado. Outros acreditam que encontrarão Deus através de uma concentração do espírito, espécie de meditação transcendental e são vulneráveis às diversas propostas de religiões alternativas. Mas há muitos que caíram numa espécie de ateísmo prático ou indiferença religiosa; outros lutam por uma laicidade da cultura e fazem do agnosticismo a sua confissão de fé. Mas mesmo esses podem sentir, de vez em quando, “saudades de Deus”, expressas numa inquietação interior, numa ânsia de perfeição, numa busca de valores exigentes ou mesmo em dúvidas e interrogações sem resposta. Para anunciar Jesus Cristo, Filho de Deus, é preciso pressentir e saber identificar essas inquietações que podem ser busca de Deus. É que Jesus Cristo só é verdadeiramente resposta para quem procura Deus, embora possa acontecer que se encontre Deus, encontrando-O a Ele. O anúncio de Jesus Cristo a esses irmãos nossos tem de ter a força de um testemunho, isto é, eles têm de sentir a verdade de Jesus Cristo a partir do lugar que Ele tem na nossa vida de crentes enquanto peregrinos de Deus. Jesus Cristo é um caminho humano para chegar ao Deus transcendente 3. Jesus Cristo é um caminho simples e acessível para todos os que buscam Deus, porque é um caminho humano; a Sua palavra é uma palavra humana, o amor a que nos convida é um amor humano, que n’Ele tem a densidade do amor absoluto, que vive na intimidade do seu amor filial com Deus Pai. Amando Jesus Cristo, nós experimentamos que o amor é um só, que não há uma fronteira intransponível entre o amor humano e o amor divino. Caminho ao nosso alcance! O evangelista São João exprime esta especificidade do caminho cristão para chegar a Deus, logo no início do seu Evangelho: “Nunca ninguém viu Deus; o Filho Único que está no seio do Pai deu-O a conhecer” (Jo. 1,18). E na primeira Carta volta a acentuar esta perspectiva fundamental do caminho cristão: “Deus nunca ninguém O contemplou (…) mas nós contemplámos e atestamos que o Pai enviou o Seu Filho, o Salvador do Mundo” (1Jo. 4,12.14). A mensagem de São João é esta: quem acredita que Jesus é o Filho de Deus, nunca mais poderá dizer que não viu a Deus, porque Deus está ao nosso alcance, em Jesus Cristo. E esse é o testemunho que podemos dar a todos os que procuram Deus. “O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida (…) o que nós vimos e ouvimos, isso vos anunciamos” (1Jo. 1,1-3). Esta encarnação do Filho eterno de Deus, o Seu Verbo, tornando Deus próximo do homem, é o grande anúncio do Evangelho: “E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós, e nós vimos a Sua glória, glória que possui como Filho Unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo. 1,14). Mas São João foi contemporâneo de Jesus, conheceu-O pessoalmente, conviveu com Ele, tocou-O porque reclinava a cabeça no Seu peito, acompanhou-O até à Cruz e foi testemunha da ressurreição. E nós, que vivemos dois mil anos depois? Podemos continuar a dizer que O conhecemos, que O tocámos, que sentimos no calor do Seu amor a ternura do amor de Deus Pai? Esta presença humana de Deus, em Jesus Cristo continua visível e sensível para nós, ou a distância do tempo tornou Jesus Cristo invisível e intocável, como Deus é invisível? Aqui entra a força existencial da fé, que proporciona a actualidade de Jesus Cristo para os que acreditam n’Ele. E isso é possível porque Ele ressuscitou dos mortos e tornou-se vivo, para nós e no meio de nós, para sempre. A ressurreição de Cristo garante a sua actualidade como presença física de Deus, vencendo as regras da duração e do tempo, porque n’Ele o tempo tocou a eternidade. O próprio Jesus ressuscitado afirma esta perenidade da fé como caminho que permitirá a todos, em todos os tempos, unirem-se a Ele. A São Tomé, o Apóstolo “incrédulo”, Jesus responde: “Porque Me viste, acreditaste. Felizes aqueles que hão-de acreditar sem terem visto” (Jo. 20,29). Acreditar em Jesus Cristo ressuscitado, o Filho do Deus eterno, é muito mais do que aceitar uma afirmação; é criar uma união pessoal a esse Cristo Vivo, que o pode tornar tão concreto e tão vivo nas nossas vidas, como Ele o foi na vida dos apóstolos e primeiros discípulos, embora de outra maneira. Esta actualidade de Jesus Cristo, na nossa vida, é garantida por via sacramental, na Igreja. Não foi por acaso que o Senhor se identificou com a Igreja; na Igreja eu posso sempre ver, tocar, escutar, sentir Jesus Cristo. Unidos a Ele, para a eternidade, desde o baptismo, convivemos com Ele na Eucaristia, na adoração, na escuta da Palavra, no amor fraterno. É nesses momentos de verdade, que nós vivemos na humildade e no realismo da fé, que Jesus cristo continua a conduzir-nos ao Pai, no seio da comunhão trinitária. Continuemos a escutar o testemunho do Apóstolo São João: “O que nós vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós estejais em comunhão connosco. E nós estamos em comunhão com o Pai e com o Seu Filho Jesus Cristo” (1Jo. 1,3). Escutar o coração filial de Jesus Cristo 4. Nesta actualidade de Jesus Cristo, que nos é garantida pela fé, nós podemos escutar sempre, para participar neles, os sentimentos filiais de Jesus Cristo para com Deus Seu Pai. E como Filho, na perenidade eterna da sua relação filial com Deus, Ele ensina-nos a descobrir Deus como Pai e a sentirmo-nos filhos seus. O que de mais precioso podemos aprender de Jesus Cristo, é a profundidade dos seus sentimentos filiais para com Deus. Na sua vida terrena Jesus manifesta claramente esta sua intimidade com Deus: “O pai e Eu somos um só” (Jo. 10,30). Jesus sabe-se enviado por Deus. Os fariseus não conhecem esse Deus que O enviou. Mas Ele reconhece-o: “Eu conheço-O, porque venho de junto d’Ele e foi Ele que Me enviou” (Jo. 7,29). Ele sabe que o Pai é a Sua força, tudo o que Jesus faz, fá-lo em nome de Deus e com a força de Deus. Sente-se amado por Deus: “O Pai ama o Filho e mostra-lhe tudo o que faz” (Jo. 5,19-20). Jesus considera-se, apenas, a testemunha autêntica do amor infinito de Deus Pai pelos homens. Perante o crescimento do Reino, Jesus glorifica o Pai: “Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelastes aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque isso foi do Teu agrado. Tudo me foi entregue por Meu Pai; e ninguém conhece o Filho senão o Pai, como ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt. 11,25-27). É a nós que o Senhor quer revelar essa intimidade do seu coração filial. E essa revelação Ele fá-la pelos caminhos insondáveis da fé e do amor. Nessa intimidade aprendemos com Ele quem é Deus; “serão todos ensinados por Deus”. O próprio Deus nos conduzirá à intimidade com Jesus Cristo. “Ninguém vem a Mim se o Pai, que Me enviou, não O atrair” (Jo. 6,44-45). É na Eucaristia, celebrada e adorada, que podemos escutar, em cada momento, a fidelidade do Filho em relação a Deus, Seu Pai. A obediência filial, manifestada dramaticamente no Jardim das Oliveiras, actualiza-se em cada Eucaristia. Em Getsémani Jesus rezou assim: “Abba (Pai)! Tudo Te é possível; afasta de Mim este cálice; no entanto faça-se o que Tu queres e não o que Eu quero” (Mc. 14,36). Na Eucaristia aprendemos que toda a exigência da nossa vida cristã é a manifestação de uma obediência fiel à vontade de Deus, nosso Pai. É escutando Jesus, aí, no momento radical do Seu amor filial que nós penetraremos, a pouco e pouco, no insondável mistério de Deus e do Seu desígnio. Aprender com Jesus Cristo a ter um coração de filho 5. Jesus torna Deus mais próximo e acessível. E essa proximidade proporciona aos homens criarem intimidade com Deus, pois esse é também o grande desejo de Deus, que levou a que o seu próprio Filho encarnasse e se fizesse homem. Ao revelar-nos a sua intimidade filial com Deus Pai, Cristo abre-nos as portas à filiação divina, onde experimentaremos, também nós, essa intimidade filial com Deus. Ouçamos, ainda, o testemunho do Apóstolo São João: “A quantos O receberam, aos que n’Ele crêem, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo. 1,12). Esta é a grande surpresa existencial da fé cristã: ao sentirmo-nos filhos de Deus, tudo muda na nossa vida. É como se nascêssemos de novo, como se uma vida nova nos fosse dada, participação da vida nova do Ressuscitado. Esse é o testemunho de Deus acerca de seu Filho: “Deus deu-nos a vida eterna e esta vida está no seu Filho. Quem tem o Filho tem a vida, quem não tem o Filho não tem a vida” (1Jo. 5,11-12). A verdadeira fé é vida, fonte de vida. A expressão “vida da fé” ganha uma grande densidade, pois sem anular a nossa realidade humana, sobretudo a realidade corpórea, dá-lhe uma liberdade e uma dignidade inauditas. É o testemunho de Paulo na Carta aos Gálatas: “morri para a Lei, a fim de viver para Deus. Estou crucificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si Mesmo se entregou por mim” (Gal. 2,19-20). Ao sentirmos, no mais íntimo do nosso coração, que somos filhos de Deus, percebemos melhor Jesus, na Sua qualidade de Filho, sentimo-nos unidos e semelhantes a Ele nesse coração filial e louvamos o Senhor por nos ter dado, na encarnação, a proximidade com o Seu próprio Filho. Então sentimos o que é ter sido redimidos, o que é ser continuamente redimido, pois a redenção é uma acção contínua do Espírito de Jesus em nós, vencendo a força do pecado. Esta experiência filial é dom gratuito, pois a nossa natureza humana, marcada pelo pecado, nunca se abriria espontaneamente a essa novidade inaudita de nos sentirmos filhos de Deus. É o que diz São Paulo aos Romanos: “De facto, coisa impossível à Lei, que a carne tornara impotente, Deus, ao enviar-nos o Seu próprio Filho, com uma carne semelhante à do pecado e por causa do pecado, condenou o pecado na carne, para que a justiça da Lei se realizasse em nós, cuja conduta não obedece à carne, mas ao espírito” (Rom. 8,3-4). 6. A experiência da filiação divina é a dimensão mais jubilosa da nossa existência cristã. Fonte de alegria, leva-nos à caridade e nela encontramos a força para vencer todas as dificuldades que o discípulo encontra no seu caminho. O nosso testemunho dessa experiência é também jubiloso e torna-se, necessariamente, um testemunho acerca de Jesus Cristo, Filho de Deus. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca Na ousadia de facilitar a leitura do texto, uma referência aos diferentes pontos: 1. Trata-se duma Catequese centrada na pessoa de Jesus Cristo. A relação do homem com Deus através de quem, sendo Deus, também é homem, Jesus Cristo, constitui o carácter específico do Cristianismo. O Cristianismo não é uma religião que reconhece o transcendente, distante, separado da pessoa humana 2. Fazendo uma referência implícita ao Congresso da Nova Evangelização que se prepara para Lisboa em 2005, o texto levanta a questão de saber o que significa para os habitantes da grande cidade essa religião centrada em Jesus Cristo… Segue-se então o elenco das diversas categorias de crentes que povoam Lisboa, pedindo, cada uma delas, formas adequadas de lhes ser anunciado Jesus Cristo. 3. A densidade humana da Pessoa, da Palavra e da Acção de Jesus Cristo credita-O como o “caminho simples e acessível para todos os que buscam Deus, porque é um caminho humano.” 4. De forma acessível e testemunhante, Jesus Cristo revela-se o mestre e pedagogo experimentado na relação pessoal e íntima com Deus: revela a sua intimidade, a mais profunda. 5/6. A projecção de toda essa vivência naqueles que seguem Jesus Cristo, torna presentes e actuantes na vida social de hoje, homens e mulheres que, testemunhando a fé, transformam a sociedade. Não de forma subjugada, mas no júblico e na esperança.

Partilhar:
Scroll to Top