Jesus de Nazaré: a procura de um rosto

Certamente não preciso de dizer expressamente que este livro não é de modo algum um acto do magistério, mas unicamente expressão da minha busca pessoal do «rosto do Senhor» (Sal 27,8). Por isso, cada um tem a liberdade de me contradizer. Peço apenas aos leitores aquela pressuposição de simpatia, sem a qual não há qualquer compreensão (25). Esta já célebre afirmação com que Joseph Ratzinger termina o “Prefácio” da sua mais recente obra Jesus de Nazaré constituiria, por si só, uma razão suficiente para uma boa série de debates e estudos teológicos. Com efeito, ela introduz uma noção de magistério que ultrapassa largamente aquela outra – redutora, mas que não raras vezes se vê usada em pensamento pretensamente teológico – de “um conjunto de opiniões (ainda que respeitáveis) pronunciadas por algum membro do Colégio Episcopal”. A partir da afirmação atrás referida, vemos claramente como o magistério está para além das opiniões daquele que as pronuncia, para além do resultado das investigações e da formulação de hipóteses, ou mesmo de teses teológicas, com as suas escolas, os seus paradigmas, os diferentes métodos no uso da razão crente. Esta afirmação de Ratzinger apresenta ainda uma novidade: ela faz uma distinção entre a pessoa do teólogo, com a sua obra de investigação, que fez com que já fosse apelidado por alguns como “o maior teólogo católico vivo”, e o magistério papal de Bento XVI, expresso nos documentos publicados sob a sua assinatura, com os seus diferentes valores, e empenhando por isso em graus diferentes o assentimento dos fiéis. O livro é pois uma obra do teólogo Joseph Ratzinger, que não hesita em conjugar diferentes autores, contemporâneos ou não, e em efectuar opções entre várias linhas do pensamento teológico. Não é, contudo, a partir destas perspectivas que irei apresentar o livro Jesus de Nazaré, por muito que tal seduzisse um professor de teologia fundamental. Se coloquei aquela passagem como pórtico desta minha apresentação foi antes por uma outra razão. Penso, com efeito, que aquela afirmação nos oferece uma grelha de leitura do resto do livro: Joseph Ratzinger, teólogo, sacerdote, bispo, cardeal e Papa, não hesita em confessar, aos 80 anos de idade, que continua a viver um caminho pessoal de crente, e que este caminho consiste numa “busca pessoal do rosto do Senhor”. 2000 anos depois, o rosto de Jesus de Nazaré continua a ser objecto de procura, e o primeiro a realizar essa busca, usando para tal todos os instrumentos teológicos ao seu dispor, é o homem crente que hoje sucede ao Apóstolo Pedro. Afinal, é precisamente no dinamismo do encontro e na procura do rosto do Senhor que consiste a vida cristã – e mesmo a própria teologia. Não se trata, obviamente, da atitude tão pós-moderna de quem caminha pelo simples gosto de caminhar, sem norte, e sem esperança de chegar a qualquer meta. Trata-se antes de perceber que quem se deixa encontrar pela pessoa de Jesus, vê abrir-se diante de si um imenso, infinito, mas, ao mesmo tempo, apaixonante horizonte de verdade. Significativamente, esta obra tem como título Jesus de Nazaré – e não Jesus Cristo, ou O Senhor ressuscitado… Com efeito, o rosto que dá origem à procura incessante que anima a vida do crente e o trabalho do teólogo é o rosto do homem Jesus de Nazaré. Não se trata, pois, da tentativa de, a partir de uma qualquer atitude de fé, passar para o papel um “retrato robot” do fundador de uma qualquer religião; também não se trata de, a partir da opinião dos vários crentes, procurar o denominador comum daquele que é objecto da fé cristã. Trata-se, isso sim, de procurar hoje a figura histórica de Jesus de Nazaré, e de colocar a hipótese de que este mesmo Jesus tenha em si a capacidade de oferecer sentido à vida do homem do séc. XXI. A obra Jesus de Nazaré é, conscientemente, uma obra polémica. Em primeiro lugar porque coloca a possibilidade de, no homem Jesus encontrarmos Deus e, depois, porque conscientemente procura ultrapassar os limites estreitos da moderna exegese histórico-crítica. Toda a modernidade – e, podemos também afirmá-lo, a pós-modernidade, ainda que numa perspectiva bem diferente – tem como princípio dogmático animador de todo o seu pensamento aquele segundo o qual não pode existir qualquer tipo de contacto entre natural e sobrenatural: Deus não pode viver a história. Esta poderá ser absolutizada e divinizada; Deus poderá ser reduzido à matéria, ou, quando muito, o divino ser considerado uma dimensão paralela à da história mas sempre sem qualquer possibilidade de comunicação com esta. Foi este dogma da modernidade que deu origem à exegese histórico-crítica. Com efeito, os 4 evangelhos, para além das incongruências de ordem cronológica e geográfica, contêm, sobretudo, uma série de relatos que, para os racionalistas de finais dos séculos XVIII, e dos séculos XIX e XX, constituem algo de verdadeiramente insuportável: os milagres. Deus não poderia intervir na história, não poderia modificar, por um pouco que fosse, as leis que Ele próprio promulgara ao criar o mundo, e que a razão humana, em particular às ciências naturais – e apenas elas – poderiam perceber. Num mundo em que as ciências naturais e a técnica são as rainhas do saber, à exegese caberia, assim, a tarefa de purificar os relatos evangélicos de tudo aquilo que tivesse um sabor a milagre, acantonando esses “desperdícios” no arquivo dos “relatos mitológicos”. O “milagre” e a sua narração seriam apenas a interpretação da pessoa de Jesus, realizada há 2 mil anos por homens que não tinham acesso à civilização científica e técnica. A partir do momento em que esta é uma realidade, seria indigno para qualquer pensador a abordagem dos Evangelhos a partir de outra perspectiva que não a da razão natural. Seria pois necessário reescrever os evangelhos: daí que os exegetas se tenham lançado na escrita das célebres “Vidas de Jesus”, a mais conhecida das quais da autoria de Ernest Renan. Coube a Albert Schweizer, no início do séc. XX, mostrar como os resultados desta investigação eram mais o fruto de uma projecção subjectiva e imaginativa do exegeta sobre a pessoa de Jesus, do que o resultado efectivo de uma investigação histórica. Às suas conclusões pessimistas juntou-se depois R. Bultmann, defendendo que não apenas seria impossível conhecer a figura histórica de Jesus de Nazaré a partir dos relatos evangélicos, como tal seria mesmo indesejável para a fé. Esta consistiria antes no significado que cada crente constrói na sua existência a partir do anúncio da ressurreição de Jesus: trata-se da conhecida e nefasta divisão entre o Jesus da história (desconhecido e inútil) e o Cristo da fé, único a poder animar a vida do crente. Felizmente, a exegese não se contentou com tão parcos resultados. Com efeito, existem nos evangelhos relatos de afirmações e de gestos de Jesus que se apresentam como absolutamente originais e injustificáveis, seja a partir do judaísmo seja a partir do cristianismo dos primeiros anos. A única possibilidade para a existência de tais narrações é que elas tivessem na sua origem a pessoa histórica de Jesus. Partindo delas, seria possível apresentar um retrato histórico, absolutamente fiável, de Jesus de Nazaré. Em meados dos anos 80 um outro passo foi dado na procura do Jesus histórico. Se até então a exegese sublinhava o contraste, a originalidade entre Jesus e o judaísmo do seu tempo, agora toma-se consciência de que Jesus foi um judeu. Com efeito, ele nunca renegou a fé de Israel e sempre se inseriu na vida religiosa do seu povo. Por isso, mais que sublinhar o contraste, haveria que sublinhar a integração de Jesus no judaísmo de há 2000 anos. Mas, para que não restassem quaisquer possibilidades de contestação, continuaria a ser essencial passar os relatos evangélicos pelo crivo de uma dúvida metódica, considerando histórico apenas o que não apresentasse qualquer justificação no judaísmo ou no cristianismo de há 2000 anos, e que, ao mesmo tempo, se integrasse nos usos e costumes judaicos. Por isto mesmo, o ponto de partida não poderia ser a fé e as suas afirmações; quando muito, seria a exegese a determinar os limites e o conteúdo da fé. Os acontecimentos teriam pois sempre uma explicação racional; desta deveria desaparecer qualquer afirmação de milagre. Parece que, finalmente, se teria chegado ao “método” para ler os evangelhos e conhecer a pessoa histórica de Jesus. Contudo, a leitura das obras até agora publicadas por esta corrente não deixa de criar uma grande perplexidade. Jesus aparece nelas ora como um camponês judaico, ora como um mago, ora como um revolucionário… Ou seja, encontramo-nos, uma vez mais, perante a projecção da imagem que o exegeta tem de Jesus. A partir destas considerações, aqui necessariamente superficiais, e com a ajuda de uma afirmação de Bento XVI em 7 de Maio de 2005, podemos compreender o método com que o livro Jesus de Nazaré foi redigido. Dizia o Papa: Onde a Sagrada Escritura é separada da voz viva da Igreja, torna-se vítima das controvérsias dos peritos. Sem dúvida, tudo o que eles têm para nos dizer é importante e precioso; o trabalho dos sábios é para nós uma ajuda notável para poder compreender aquele processo vivo com o qual a Escritura cresceu e, assim, compreender a sua riqueza histórica. Mas a ciência, por si, não nos pode fornecer uma interpretação definitiva e vinculante; não é capaz de nos oferecer, na interpretação, aquela certeza com a qual podemos viver e pela qual podemos até morrer. Para isso é necessário um mandato maior, que não pode surgir unicamente das capacidades humanas. Para isso é necessária a voz da Igreja viva, daquela Igreja confiada a Pedro e ao colégio dos apóstolos até ao fim dos tempos. Significará isto que, de novo, regressámos ao cepticismo sobre a possibilidade de conhecer a pessoa de Jesus de Nazaré? A resposta de Ratzinger não poderia ser mais negativa: podemos e devemos conhecer a pessoa histórica de Jesus. Mas, ao mesmo tempo, ela afirma que, para conhecer esta pessoa em toda a sua riqueza, não bastam os resultados, mesmo que “importantes e preciosos”, dos peritos em Sagrada Escritura. Se é certo que “o método histórico é e permanece uma dimensão irrenunciável do trabalho exegético” (15), não é de menor importância que este deve ser realizado não num pretenso “ambiente neutral” – perante a pessoa de Jesus não existe neutralidade possível – mas claramente no seio de uma decisão de fé. Mais: em cada narração evangélica ressoa constantemente a mútua interpretação entre Antigo e Novo Testamento, pelo que se deve reafirmar o princípio segundo o qual a Escritura é a primeira exegeta de si própria. E devemos ainda ir mais longe, e ter em conta todas as leituras e interpretações realizadas ao longo de 2000 anos de teologia e de vida eclesial. Nestes vinte séculos, a riqueza de Jesus de Nazaré deu origem a uma pluralidade de leituras, a um enorme conjunto de interpretações teológicas e existenciais: se queremos perceber hoje a riqueza da pessoa de Jesus não as podemos, sobranceiramente, ignorar. É com o conhecimento de toda esta riqueza que Joseph Ratzinger ousa apresentar o resultado da sua busca crente do rosto de Jesus de Nazaré. Com ela, Ratzinger procura mostrar como os quatro evangelhos, lidos com uma abordagem que tenha em conta todo o património eclesial (e, portanto, também o exegético), constituem o melhor retrato histórico de Jesus: o retrato coerente de Alguém que, ultrapassando os limites culturais e temporais, continua a interrogar o homem contemporâneo como outrora interrogou os discípulos: “Quem é este homem?” Mas a obra Jesus de Nazaré vai mais longe. Ela mostra, com efeito, que a afirmação de Jesus como Deus constitui a única hipótese que permite perceber coerentemente a pessoa histórica do Nazareno. A fé cristã, que vê em Jesus o “Filho” de Deus, não começa apenas na manhã da ressurreição, ignorando ou modificando a pessoa e o ministério de Jesus de Nazaré. Pelo contrário, é precisamente na pessoa e no ministério do Nazareno, é neste homem concreto, que Deus se diz à humanidade. Deus não se revela numa qualquer doutrina ou num qualquer acontecimento esmagador e extraordinário: Deus revela-se na vida concreta, histórica, na pessoa de Jesus de Nazaré – e nisto consiste “o milagre” por excelência. Esta é a razão pela qual a pessoa do Nazareno é tão sedutora. É a razão que impele o crente a procurar sempre o seu rosto. Ao fazê-lo, o crente encontra o homem Jesus de Nazaré – e, a um dado momento, percebe que, afinal, foi este Jesus quem o encontrou e lhe mostrou Deus em 1.ª pessoa. O que seduz em Jesus não é apenas a realidade do homem mas o mistério de Deus que se diz e se faz encontrar neste homem de Nazaré. Por isso, o livro Jesus de Nazaré não se limita ao enunciado de umas quantas conclusões arqueológicas acerca do Nazareno, antes mostra, passo a passo, como Ele continua a oferecer hoje o sentido pleno da vida humana. A obra Jesus de Nazaré mostra como é razoável considerar que em Jesus, Deus e o homem se encontraram definitivamente. Com Jesus, o tempo passa a trazer consigo a marca da eternidade, de tal forma que não será mais possível serem conjugados separadamente: o Deus verdadeiro é o homem Jesus de Nazaré; e o homem verdadeiro é o Deus Jesus de Nazaré. Não se diviniza a criatura, não se reduz o Criador e, muito menos, não se consideram os dois paralelamente, sem qualquer hipótese de comunicação: no centro da história, em Jesus de Nazaré, Deus encontra o homem e, ao fazê-lo, descobre-lhe o sentido, a razão plena da sua existência. Fica assim também claro aquilo que J. Ratzinger considera como o centro caracterizador do cristianismo, e que não cessa de sublinhar na conclusão de cada capítulo: o cristianismo não faz sentido e não propõe o sentido da vida numa doutrina, numa ideologia, numa moral, num sentimento; o “próprio” do cristianismo é a pessoa de Jesus de Nazaré. Isto mesmo é afirmado numa das últimas páginas da obra, que levanta também o véu sobre o próximo volume, que sabemos já estar em elaboração, acerca dos acontecimentos pascais. Diz Ratzinger: No fundo, o homem tem necessidade de uma única coisa que tudo contém; mas primeiro deve aprender a reconhecer, através dos seus desejos e anseios superficiais, aquilo de que precisa verdadeiramente e o que realmente quer. Tem necessidade de Deus. Deste modo, fica claro o que, em última instância, se encontra por detrás de todas as expressões figurativas: Jesus dá-nos a “vida”, porque nos dá Deus. E pode-no-Lo dar, porque Ele mesmo é um só com Deus; porque é o Filho de Deus. Ele mesmo é o dom: Ele é “a vida”. Por isso mesmo, Ele é, por natureza, comunicação, “pró-existência”. É isto mesmo que aparece, na cruz, como a sua verdadeira exaltação (434). Nuno Brás da Silva Martins

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