Irmã Ângela de Fátima Coelho, Vice-Postuladora da Causa de Canonização do Francisco e da Jacinta Marto
O teólogo Hans Urs von Balthasar afirmou que “há santos feitos pela Igreja e que Deus acolhe, mas também há santos feitos por Deus e impostos à sua Igreja”. Por outras palavras, há santos cuja canonização é uma verdadeira interpelação de Deus à Igreja e à sociedade de cada tempo. Mais do que uma iniciativa da Igreja, a santidade de alguns cristãos é sobretudo um desafio que a própria Igreja acolhe, sentindo-se também ela questionada e estimulada na sua procura de santidade.
Talvez possamos incluir o processo de reconhecimento da santidade dos Pastorinhos de Fátima neste segundo modelo. De facto, apesar de o Concílio Vaticano II ter chamado a atenção para a vocação universal à santidade, até 1981 não era possível a canonização de jovens não mártires com menos de 16 anos. Foi devido à santidade do Francisco e da Jacinta que João Paulo II se sentiu na necessidade de mudar esta disciplina eclesiástica.
Trata-se, portanto, de figuras que merecem toda a nossa atenção, já que são modelos de vida cristã e “exemplo de vida evangélica” (1), com uma actualidade reconhecida e uma força expressiva impressionante.
Neste sentido é perfeitamente oportuna a celebração do centenário do nascimento de Jacinta Marto, já que é uma boa ocasião para reflectir sobre a vida e a personalidade desta menina, a quem Nossa Senhora apareceu em 1917. Compreender a personalidade da pequena Jacinta é um bom ponto de partida para nos deixarmos questionar pela sua santidade.
Não podemos esquecer que caracterizar ou descrever a personalidade duma pessoa é sempre uma tarefa muito difícil. A personalidade da pequena Jacinta é também complexa e abrangente, mesmo se a comparamos com a do seu irmão Francisco. Um exemplo da riqueza multifacetada da sua pessoa é visível durante a sua estadia na prisão, quando Lúcia lhe pede para escolher uma intenção pela qual oferecer os sacrifícios: pelos pecadores, ou pelo Santo Padre, ou em reparação ao Imaculado Coração de Maria. A Jacinta responde: “eu ofereço por todas, porque gosto muito de todas” (2). Transparece aqui não só a sua vontade de incluir nas suas preocupações tudo aquilo que reconhece como importante, mas também de se entregar com todo o coração a tudo aquilo que estiver ao seu alcance.
Tentando encontrar uma imagem que exprima os traços próprios da Jacinta surge-nos o coração, porque toda ela é marcada por uma paixão que conduz as suas escolhas e a sua forma de viver. Certamente que falamos do coração em sentido bíblico, que “significa o centro da existência humana, uma confluência da razão, vontade, temperamento e sensibilidade, onde a pessoa encontra a sua unidade e orientação interior” (3). O coração fala-nos de uma forma profunda de ver a vida e de pensar os acontecimentos.
Na Jacinta encontramos uma característica pouco comum em crianças da sua idade e muitas vezes ausente na sociedade actual. Falamos da sua tendência para interiorizar as experiências que vivia, para meditar no significado dos acontecimentos, para encontrar razões para o seu agir. Nesta criança é marcante uma grande interioridade e profundidade. Esta sua atitude pode ser percebida em diversos momentos da sua vida. Um dia, quando a Lúcia lhe perguntou porque não queria brincar, a Jacinta respondeu: “Porque estou a pensar” (4). Noutra ocasião, em resposta a uma interrogação de sua mãe, surpreendida pela sua atitude reflexiva, sobre o que a ocupava tanto tempo, apenas respondeu: “Gosto muito de pensar” (5).
Neste aspecto a pequena Jacinta faz-nos recordar a atitude de Maria que o Evangelho de Lucas nos transmite, ao dizer que ela “conservava todas estas coisas, ponderando-as no seu coração” (Lc 2,19). Trata-se de captar em profundidade os acontecimentos, descobrindo-lhes o sentido profundo e procurando ver neles a possibilidade de esperança. Por outro lado, também deixa que os acontecimentos a toquem em profundidade, aceitando transformar-se por eles, envolvendo o seu coração.
Esta é uma atitude que contrasta com a cultura actual marcada pela superficialidade e pela busca de uma felicidade epidérmica. As pessoas têm dificuldade em pensar sobre o que é verdadeiramente fundamental e decisivo na vida, refugiando-se habitualmente nas questões periféricas da existência humana.
A Jacinta vê para além da superfície e do momento, vê em profundidade e ao longe, afasta-se da superficialidade e não vive meramente no imediato. Também nisto, esta criança é modelo para os crentes de todas as idades.
Irmã Ângela de Fátima Coelho
Vice-Postuladora da Causa de Canonização do Francisco e da Jacinta Marto
NOTAS:
1 – João Paulo II, Alocução da Audiência geral de 17.05.2000
2 -Memórias, 53
3 – J. Ratzinger, Comentário teológico à terceira parte do segredo, in: Memorias, 227
4 – Memorias, 45
5 – Memorias, 61