J. Pinharanda Gomes

Na aridez inverniça, um tempo de alegria e de comunhão. De boa vontade e, sobretudo de paz campestre ao som do correr dos sinos Acção, lugar e tempo. Trilogia, muito conhecida na arte do teatro, serve para esta evocativa memória. Quanto à acção, pois equivale à celebração natalícia, em que um Menino nos foi dado para se constituir redentor da Humanidade. O lugar era uma aldeola sita na raia beiroa, na margem do alto Côa, rés-vés na Espanha. O tempo deveras complexo: ainda se faziam sentir os efeitos sociais da Guerra Civil espanhola, que deveras afectarão tradicional comércio fronteiriço e popular, e logo se começaram a viver as dificuldades resultantes da II Grande Guerra, na qual o nosso país se não envolveu, mas que houve de sofrer as consequências económicas, mediante a carestia e vida e o necessário racionamento de muitos produtos que escasseavam no mercado. Como o açúcar. As filhós são boas com ou sem açúcar, mas um pouco polvilhadas do branco maná sabem muito melhor. Faltava porém, o açúcar. E também o azeite para fritar a massa. As sopas podiam ser temperadas com um pedaço de toucinho, mas para fritar só com azeite, pois na época outros tipos de óleo não tinham expansão. Tempo, ainda, frio. Por vezes, os campos nevados. Fazia sentido as loas “ó meu Menino Jesus/ó meu Menino tão belo,/ Logo viestes nascer/ Na noite do caramelo”. Arrecadados os frutos estivais da terra, sobretudo o pão e as batatas, já nos campos germinavam novas searas, ainda em marfolho. O Natal abria uma clareira nos trabalhos e nos dias. A garotada, e éramos mais de uma dezena, ansiava por receber ordem das catequistas para ir ao musgo e aos ramos de hera, para se erguer o presépio, no altar d Nª Srª do Rosário, do lado do Evangelho. Descomedida, por falta de estimativa, trazia musgo e hera que chegavam para mais do que um presépio, que as senhoras montavam, portas da igreja fechadas, para só se ver na missa do galo. Era a magia das imagens. Para as crianças, mais do que as imagens – santinhos, incluindo os pastores e outras figuras e, talvez, até o galo e o cão do pastor, todos enfim, filhos do mesmo Criador, ali presente a imagem do Filho ainda bebé, na caminha de espigas de centeio deitado, sob o olhar dos pais e do bafo da vaquinha e do burrinho. Por outros caminhos, a mocidade (quer dizer: os solteiros, vintões) já identificado o tronco ou madeiro e o lugar onde se iria buscar, tratava do madeiro, da fogueira de Natal, que arderia toda a noite, até o fogo se extinguir durante o dia seguinte. O madeiro afastava alguma mocidade da missa do galo, mas a generalidade do povo participava (ao tempo dizia-se: assistia) na missa da vigília. Rezada, pois era em latim, sendo poucos os cânticos de ilustração vernácula da liturgia. Rompiam estes, com o “Entrai, Pastores, entrai” ou o “Concebido no ventre/ nove meses/ no ventre da Virgem Mãe” e outros, quando o pároco, tomando o berço e o Menino, percorria a igreja, levando-o ao ósculo de todos e de cada um. Ninguém saía do lugar. Era o Menino que vinha ao encontro dos fiéis. Para ele, se os mais velhos ofereciam um óbolo (naquele tempo o óbolo mais modesto era o de meio tostão, que dava, todavia, para comprar meia dúzia de rebuçados com retratos dos jogadores de futebol) as crianças levavam laranjas, e figos secos, castanhas piladas e, sobretudo, as rosquinhas, uma espécie de donut, mas de maior perímetro, que levávamos enfiadas o pulso e destinadas ao Menino. Crianças, acreditávamos que Maria, José e o Menino comeriam aquelas coisas boas porque, na missa solene do dia 25, já todas as ofertas haviam sido retiradas. A propósito dos cânticos, entoavam-se principalmente durante a cerimónia do beijo, os cânticos tradicionais, mas, com o aparecimento de grupos da Juventude Agrária, que recebiam formação e informação, começaram eles a introduzir melodias mais concordes com a liturgia. Foi o tempo, lá na aldeia, da introdução do cântico “Gloria in excelsis”. Introdução que levou algum tempo a fixarem porque, no início a assembleia dividia-se. Uns cantavam uma coisa, enquanto outros cantavam a nova em geral desconcerto. Ceava-se antes da meia noite, e antes para que, no dia seguinte e dadas as normas do jejum eucarístico ao tempo, se pudesse comungar. Por isso, a missa do galo celebrava-se por volta das 11 da noite e quem não fosse comungar no dia seguinte, podia estender a ceia por mais tempo. Feitas as filhós e as rosquinhas, por vezes também o caldudo (uma sopa de castanhas piladas e cozidas em leite) era o ensejo para os garotos serem mandados pelas mães a levar duas ou três filhós a cada de alguma viúva, homem só ou indigente. Pouco, mas partilha. No dia da festa quem primeiro começava a trabalhar era o pároco, pois tinha de celebrar missa numa localidade anexa. Ia de mula, por caminhos sendeiros, e regressava a tempo da missa paroquial. Com esta, em boa verdade se concluía a festa do Natal propriamente dito, na expectativa de novos dias santos: o primeiro do ano e, na época, o dia 6 de Janeiro, feriado e dia dos Reis Magos, com novas doçarias. Na aridez inverniça, um tempo de alegria e de comunhão. De boa vontade e, sobretudo de paz campestre ao som do correr dos sinos. Jesué Pinharanda Gomes, filósofo

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top