Intervenção do presidente da CEP no congresso «Ordens e Congregações Religiosas em Portugal»

Presença Eloquente

O Congresso Internacional, “Ordens e Congregações Religiosas em Portugal – memórias, Presenças e Diásporas”, permite-me, na qualidade de Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, reafirmar o que foi dito na Nota Pastoral de 2004, a propósito dos 50 anos da CNIR e da FNIR, agora fundidas, desde 2005, na CIRP. A referida nota dizia o seguinte: “procuramos ajudá-las (Comunidades cristãs), para que tenham uma maior compreensão e apreço pela vida religiosa (e se sintam estimuladas a colaborar na promoção das vocações de Consagração). É também uma mensagem amiga, expressão de gratidão e de estima dirigida a todos os religiosos e religiosas de Portugal, que queremos estimular sempre mais na sua fidelidade e na disponibilidade para com Deus e os irmãos” (n.1).

A Igreja e a sociedade portuguesa agradecem o testemunho e o amplo trabalho realizado pelas Ordens e Congregações religiosas em prol da fé e da humanidade. A nossa história está cheia de exemplos de homens e mulheres que se entregaram de corpo e alma à causa do Evangelho. Não é possível pensar a história portuguesa sem o contributo das ordens religiosas na construção da nossa identidade cultural. Para traduzir o nosso sentimento colectivo de gratidão, permitam-me que recorra novamente à referida Carta Pastoral, realçando, em primeiro lugar, a dimensão material, para depois recordar os frutos da dedicação no interior da Igreja e das suas estruturas e no serviço em vários sectores da sociedade de harmonia com a pluralidade de carismas.

Assim, “queremos, neste momento e por este modo, recordar e assinalar, com gratidão e admiração, o que a Igreja em Portugal deve aos religiosos e religiosas, pelo seu trabalho e zelo em tempos passados e, actualmente, pela sua acção diária, percorrendo, ontem e hoje, os caminhos do Evangelho vivo que Jesus proclamou. São muitos os marcos históricos a assinalar, durante séculos, de modo eloquente, a vida e a acção dos religiosos e religiosas nos seus conventos e comunidades, espalhados de norte a sul. Para além do apostolado realizado, que deixou raízes em muitas gerações e por todo o país, temos ainda a recordá-los a arte das suas igrejas, a riqueza das suas bibliotecas, a tradição da sua cultura e zelo, a sua acção transformadora junto das populações rurais. A espoliação dos bens, casas e obras de arte, que atingiu a Igreja em Portugal nos séculos XIX e XX, que enriqueceu o Estado de imóveis monumentais e encheu os seus museus de valiosas obras de arte, atingiu, de um modo especial, as ordens e congregações religiosas” (n° 3).

«Actualmente encontramos os religiosos e religiosas activos no campo da cultura, educação, comunicação social, saúde, no cuidado dos mais pobres, na entrega abnegada a crianças e adolescentes, na dedicação, sem limites, aos idosos das instituições, na entrega diária a doentes do foro psíquico, no acolhimento privilegiado aos jovens de todas as condições, na assistência e promoção das famílias mais vulneráveis e fragilizadas.

Encontramos religiosos e religiosas por esse mundo além, no acolhimento e ajuda espiritual e fraterna aos emigrantes portugueses e, também, aos imigrantes que, rapidamente e nem sempre nas melhores condições, vieram até nós e se espalharam por todas as nossas dioceses. Encontramo-los activos em inúmeras paróquias, nas catequeses, na animação litúrgica das assembleias dominicais, na formação dos agentes pastorais, na atenção dialogante aos dinamismos sociais hoje mais determinantes.

Encontramo-los ainda, com o ardor que lhes vem de um grande amor dedicado à causa missionária, a partir, cada ano, para os mais variados campos de missão, e a animar projectos que entusiasmem e comprometam jovens e adultos, a responder, de diversos modos, à urgência da evangelização.

E na pluralidade das situações humanas e sociais mais preocupantes e marcadas pelas maiores necessidades, que surgiram e continuam a surgir os carismas fundacionais, mostrando o cuidado e o carinho de Deus para com todos. Estes carismas são abraçados e seguidos depois, ao longo dos tempos, por jovens e adultos que se sentem chamados a seguir Jesus na peugada dos seus fundadores, e estimulados, diariamente, pelo seu generoso testemunho, a responder a iguais situações e carências humanas, sociais e eclesiais» (n° 4).

Se o estudo e o reconhecimento do trabalho realizado pelas Ordens e Congregações suscitam gratidão e admiração, este momento deve tornar-se, também, um estímulo de esperança para confirmar o percurso espiritual e humano e ousar reinterpretar o papel dos carismas na edificação da Igreja e no serviço ao ser humano. Faço-o através de três considerações:

 

1 – Interioridade e escuta do Espírito

Ao longo da história a Igreja sempre soube lidar com a pluralidade fecunda de carismas, que sob a força do Espírito Santo, fez de muitos homens e mulheres autênticos testemunhos de vida. Foram muitos os momentos de tensão criativa entre a Igreja hierárquica e a Igreja Carismática. A primeira apostada teimosamente em conservar ritmos de vida e a segunda mais aberta à novidade porque sensível à realidade. O Espírito confirmava esses caminhos novos de que a Igreja e o mundo viriam a beneficiar.

Esta capacidade de discernir as interpelações do Espírito na complexidade das situações hodiernas poderia ser um contributo precioso, não exclusivo, dos Carismas à Igreja hierárquica, aqui e agora. A vertente da interioridade e do silêncio, não substituindo ninguém, é o ambiente gerador das condições para um acolhimento daquilo que Deus quer dizer à Igreja em Portugal. A renovação pastoral que se pretende pode correr um risco: um sonho demasiado técnico, alicerçado nas forças e cálculos meramente humanos. É sempre oportuno reconhecer que a Igreja vem doutro lado e o condutor do Povo de Deus é sempre o Espírito a agir em todos, embora com responsabilidades particulares para alguns.

 

2 – Fuga/presença no Mundo

Se no passado as Ordens e Congregações se refugiavam nos conventos e mosteiros, no desejo da “fuga mundi” como condição para o encontro com Deus, hoje, face ao tumulto ruidoso dos problemas, encontramo-nos diante da necessidade da eloquência do silêncio meditativo. Essa fuga denotava por vezes exageros e medos que só podem compreendidos à luz duma situação histórica concreta. Tratava-se dum abandono quase absoluto pois tudo era visto como perigo ou uma negação da bondade das coisas e das pessoas. Só a fuga facilitava e proporcionava as condições para um amor ablativo e exclusivo. 4

Hoje, esta mesma fuga deve converter-se num êxodo permanente e encontro com as grandes questões da sociedade, no respeito pela especificidade de cada carisma. O mundo não pode atemorizar o discípulo de Cristo. A vida do cristão encontra-se ancorada na certeza inconfundível do Seu amor e na esperança duma comunidade verdadeiramente fraterna. Tal como Cristo, incarnado, se edificou com as situações de negação de Deus colocando-as no horizonte da salvação, hoje, o mundo é o campo aberto e inspirado duma presença criativa de soluções. O testemunho torna-se diálogo e este permite o anúncio de verdades em confronto com um pluralismo cultural e religioso. É aqui, numa liberdade interior que nada nem ninguém pode condicionar, que hoje devemos montar a tenda conventual, de modo a gerar vida nova no serviço simples e humilde aos mais carenciados. Tudo isto se pode realizar no maior dos silêncios porque a gratuidade e a generosidade não se compagina com a espectacularização da vida humana.

 

3 – Abertura ao Pátio dos Gentios

A Presença no mundo, como nova expressão da Fuga Mundi, pode e deve ter um sentido de missão. A itinerância era o estilo dos Apóstolos e S. Paulo deixa-nos experiências que podem ser paradigmáticas.

A sua estadia no areópago de Atenas, perante uma pluralidade cultural, levou-o a interpelar os ilustres atenienses sobre o “Deus desconhecido”. A luta da comunidade primitiva estava na dúvida de ir ou não ao encontro dos gentios, daqueles que estavam fora do âmbito considerado religioso. Triunfa a orientação missionária com a responsabilidade de a Igreja aprender a estar perante a diferença, testemunhando Jesus Cristo por uma presença alegre no quotidiano da vida.

O Santo Padre falou-nos duma experiência pastoral que ainda não foi acolhida. Trata-se do “Pátio dos Gentios”. Seriam lugares abertos – e são tantos na sociedade actual – onde nos sentamos para dialogar sobre as razões da nossa fé. Outrora construíram-se catedrais, hoje teremos de ser mais despretensiosos e construir comunidades de pessoas com fé viva que se interrogam sobre as questões centrais da nossa existência. A arte, com o colorido das suas manifestações, pode encontrar a nossa simpatia e deixar a Beleza manifestar-se no amor cruciforme que salva o mundo.

O mundo das ciências exactas e da cultura são permanentemente Pátios Abertos ao diálogo entre a fé e a razão na procura progressiva da verdade do Homem, de Deus e do mundo. Sei que este ou estes “pátios” não são confiados só aos religiosos. Hoje, os leigos são chamados a direccionarem o seu compromisso de cristãos para estes ambientes. Esta presença humilde será actuante e abrirá novos caminhos a toda a Igreja se as comunidades religiosas assumirem os seus diversos carismas na formação de um laicado maduro e identificado com os valores do Evangelho.

Creio que a obra dos carismas cristãos ao longo dos anos é algo de patente e muito claro. Muitos poderão não querer aceitar; outros pretenderão desconsiderar. Nós afirmamos que “se houve exemplos menos positivos não ofuscam nem minimizam em nada a riqueza imensa deste dom de Deus à Igreja, que é a vida religiosa” (Nota pastoral nº 2).

Gostaria de terminar a minha partilha com a expressão do conhecido Principezinho “o essencial é invisível aos olhos”. Talvez muitos nunca cheguem a compreender isto. O facto é que ao longo da história as ordens e congregações religiosas nunca estiveram ausentes na construção da Igreja, da cultura e da sociedade em geral. O essencial ficará sempre por dizer. Reconheçamos esta presença cheia de vida e da sua importância para a renovação da Igreja face a um mundo em constante mudança.

Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 05-11-10

† Jorge Ortiga, A.P.

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