Intervenção do Coordenador das Capelanias Hospitalares no Encontro Inter-Religioso sobre Assistência Espiritual e Religiosa no SNS

Hoje é um dia desejado e projectado e construído ao longo de muitos anos.

Em 2003, quando convidada a intervir na elaboração do Plano Nacional de Saúde, que definiria as Orientações Estratégicas para o período 2004-2010, a Coordenação Nacional das Capelanias Hospitalares, modo colegial de exercer a missão que a anterior regulamentação – Decreto Regulamentar 58/80 – previa, aceitámos o convite e tivemos a alegria de ver a nossa proposta considerada na íntegra e inserida no texto definitivo do Plano.

Em síntese, no diagnóstico da situação referíamos a crescente pluralidade de opções espirituais e religiosas presentes na sociedade portuguesa e a insuficiência do modelo de serviço religioso vigente, que só definia o estatuto dos capelães hospitalares da Igreja católica. Nas sugestões, apresentávamos como caminhos inadiáveis a consideração da questão do acompanhamento espiritual, para além da assistência religiosa e, no que a esta concerne, a necessidade de reconfigurar os Serviços Religiosos Hospitalares, tendo em conta, para além da Concordata que, por esses dias, se dizia por novas palavras, também a Lei da Liberdade Religiosa que, há anos já, pedia regulamentação.

Desde aí, a defesa da causa enunciada – a oferta da possibilidade de acesso aos Doentes internados por parte de todos os cultos e opções espirituais sem restrições nem barreiras – esteve na primeira linha das nossas prioridades. Sabíamos, como muitas vezes dissemos, que a consciência que o quotidiano nos dava, da importância para os católicos da assistência que lhes proporcionávamos, nos obrigava a sermos os primeiros na reivindicação de igual possibilidade para todos.

A Igreja católica não lê, na especificidade – que não quer desrespeitada – do seu carácter histórico e maioritário na sociedade portuguesa, uma fonte de privilégios, mas uma responsabilidade social e pastoral em relação a todos os demais Credos e opções espirituais. A prová-lo está a história que nos trouxe a este dia, a este encontro inter-religioso e ao Decreto-Lei 253/2009 de 23 de Setembro que o motiva.

Ao longo destes anos trabalhámos efectivamente, no terreno dos hospitais do nosso país, na paciente laboração dos gabinetes e na larga praça mediática que forma a opinião pública, no sentido de tornar possível este Decreto-Lei que, com as possibilidades que abre e as insuficiências que ainda não foi possível superar, oferece, no entanto, um horizonte novo ao exercício da missão que cabe às Religiões no contexto que, com premente insistência, reclamam o seu contributo, para salvaguardar a integridade dos cuidados de saúde que se praticam nos hospitais do SNS.

Algumas palavras-chave que usámos abriram os diversos intervenientes no processo a este passo que, não sendo dado, significaria um recuo cultural em contra-corrente com todo o mundo ocidental em que nos integramos:

– O acompanhamento espiritual e religioso é, antes de mais, um direito dos doentes, sem deixar de ser, ao mesmo tempo, direito e dever das entidades religiosas, a todas reconhecido e por todas assumido, mas sempre em razão desta centralidade única que é a pessoa que está doente, na expressão da sua necessidade de ser acompanhada e assistida nesta dimensão da sua identidade, que a experiência da doença torna particularmente importante e que a sociedade toma como tarefa sua considerar, formulando-a como direito;

– Direito dos doentes a que só as Religiões – salvaguarda-se aqui a questão que fica por resolver do Agnosticismo e do Ateísmo, que o tempo torna progressivamente relevantes – podem corresponder, situados como estamos no terreno mais sagrado da liberdade de consciência, de religião e de culto, critério último de aferição da verdade democrática e da tolerância em qualquer sociedade;

– Direito que, por ter que ser exercido em instituições públicas, exige um responsável compromisso do Estado, que não pode de modo algum recuar para a posição de mero facilitador demissionário mas, cabendo-lhe, como cabe, garantir a integridade dos cuidados de saúde que oferece aos seus cidadão, deve actuar positivamente, não só abrindo possibilidades como oferecendo-as, no respeito pelo princípio da separação e pelo da cooperação, que estabelecem uma plataforma de isenção e colaboração nem sempre fácil mas gerador de uma tensão positiva que cria futuro;

– Acresce, ainda, a defesa de uma consideração antropologicamente fundamentada e culturalmente enraizada do fenómeno humano, que, fazendo emergir um determinado conceito de mistério da pessoa, pede consequências no modo de definir o que é a saúde e de compreender o que é a doença e o sofrimento e a morte, matéria prima deste lugar tão especial da sociedade em que nos encontramos – a prestação de cuidados de saúde: sem a luz que só a antropologia oferece, por mais ética que se injecte, os cuidados de saúde não respeitam a totalidade, integridade e unidade da pessoa humana. Ao longo destes anos, muitas vezes nos sentimos a defender o Sistema de Saúde de si mesmo, de visões ideologicamente redutoras; visões que, se se impusessem, ditariam de opções reducionistas.

Movidos por estas convicções, em diálogo progressivamente estreitado com muitas das entidades hoje aqui presentes, e outras que não puderam estar, fomos erguendo os fundamentos deste dia. Foi com este Ministério da Saúde que, finalmente, se reuniram as condições de sabedoria que tornaram possível este Decreto-Lei que, repito, ainda é apenas o possível, como será sempre apenas o possível o que venha a ser o seu futuro, porque a vida é que apresenta as circunstâncias que definem limites e abrem caminhos. Mas é claro desde já que, aplicação da nova regulamentação superará o regulamentado. A vida é sempre mais do que a lei e é bom podermos dizer, de uma lei, que a vida que por ela se regulamenta, não encontra nela entrave, mas, pelo contrário, incentivo a ir mais além, a aprofundar-se, a expandir-se, a ser mais vida e mais humana. É isso que o dia de hoje, este Encontro inter-religioso, promete.

Resta-me formular uma esperança, que onze anos como capelão hospitalar e com esta história vivida, me permitem e me obrigam a dizer: cada vez mais, os hospitais são chamados a uma nova missão social: a de serem lugar de uma pedagogia cultural de valorização do essencial, de uma didáctica do sentido e de uma gramática dos fundamentos. É nos hospitais, autenticamente lugares existenciais integrais, que acontece a vida nos momentos cruciais de revelação do essencial, quando todo o acessório e ilusão se quebram, no confronto com a verdade da nossa radical contingência – talvez, melhor, indigência. Creio que, este Encontro e o novo quadro em que ele acontece, potencia os hospitais para, também neste aspecto, cumprirem a sua nova vocação a serem lugares de pedagogia cultural de valorização do essencial. Neste caso, o essencial é a aprendizagem de uma laicidade positiva que, aferindo-se pela verdade da sociedade de que dimana o Estado para a servir, cria condições para que floresça a tolerância e a liberdade justamente entendidas, resistindo às tentações de terraplanagem ideologicamente negativa da história e da cultura, com o pluralismo de Tradições que a constituem e enformam, e oferece lugar às diferenças para se expressarem e aos seus sujeitos, espaços para se encontrarem, dialogarem e colaborarem.

Como cidadão deste país, felicito o Ministério da Saúde que soube, neste aspecto concreto, entender positivamente a Laicidade do Estado como potenciação de um espaço de emergência, não de apagamento, da diversidade; no fundo, reconhecendo que a qualidade da Democracia reside tanto no respeito pela maioria como na inclusão das minorias que constituem a sociedade que lhe cumpre servir.

O futuro está-nos confiado. E o futuro não se pode desenhar sem o contributo das Religiões. Em nome da verdade da Pessoa Humana.

Obrigado.

Pe. José Nuno, Coordenador das Capelanias Hospitalares

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