Intervenção de D. Manuel Clemente no encerramento das comemorações do centenário da República

1. Foi com algum imediatismo e atrevimento que anuí ao amável convite da Ex.ma Senhora Presidente da Assembleia da República para participar neste encontro.

Li com todo o gosto e proveito o livro Da virtude e fortuna da República ao republicanismo em Portugal, coordenado pelos Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, com quem tive o gosto de integrar – além doutros ilustres membros  e sob a presidência do Dr. Artur Santos Silva – a Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República. Na referida leitura aprendi o que pude dos excelentes textos, em particular no que à obra de John Pocock e Jürgen Habermas diz respeito. E é sugestionado também por estas leituras que ao mesmo tempo as reduzo e extravaso nalgumas reflexões que se seguem, mais à minha limitada medida pessoal do que àquela que realmente mereciam.

Ambos apelaram ao realismo, quer na verificação do passado quer na assunção do presente. Realismo que inclua a natureza não unívoca das convivências, fossem quais fossem, onde fossem e quando fossem; realismo que analise a realidade presente sem iludir nenhuma das suas componentes, materiais ou espirituais, sem apriorismos que esqueçam umas ou outras.

Constatemos desde já – e facilmente o faremos – que antes e depois de 1910, como antes e depois de 1926, este realismo falhou em demasia. Não faltaram entusiasmos, idealismos ou voluntarismos, mas foi difícil ou impossível conviver com o contraditório e sucederam-se reducionismos epistemológicos de sinal oposto. Facilmente ficaram quase sós alguns atores principais, rapidamente se alhearam maiorias pouco ouvidas. Mesmo quando o não merecessem, uns e outras.

 

2. – De que história falamos ou prevemos na nossa pátria portuguesa, cem anos passados da implantação da República? – De que história “repatriada” pelas intransmissíveis responsabilidades imediatas e simultaneamente “expatriada” pela dimensão internacional do deve e haver que é agora o nosso? – Que nos sobra realmente do passado e assim mesmo o autentica por essa mesma realidade sobrante? – E o que somos diferentemente dele, para nos relançarmos com a novidade que se impõe?

Talvez seja mais fácil começarmos pelo que não fomos nem somos. Não somos um povo imediatamente unânime, fácil e conscientemente unânime, ainda que, por contraste ou última defesa, nos sentíssemos assim.

Antes de nos dividirmos entre decadentistas e neo-sebastianistas, do século XVIII para cá, sempre fomos críticos de nós próprios, mais até do que desconfiados dos outros. Cantigas de amigo ou de amor ouviam-se em contraponto com outras de escárnio e maldizer, com as letras todas e as alusões bem claras. Autos de devoção verdadeira entremearam-se com farsas acerbas, igualmente vicentinas. Estrofes d’ Os Lusíadas tanto cantaram glórias como choraram desenganos…

E tão português era quem zarpava como era o “velho” que permanecia no Restelo. Gestas da expansão tiveram muitos contrapontos em Gaspar do Couto ou Mendes Pinto… E assim até hoje, tirando picos extremos de sobrevivência geral, como seria a revolta antinapoleónica de há duzentos anos ou mesmo a indignação antibritânica de 1890… Pouco mais, realmente pouco mais. E mesmo o ícone tão pátrio dos painéis de Nuno Gonçalves, em dezenas de olhares que conjuntamente nos incitam, contém exceções que, olhando noutros sentidos, confirmam esta regra.

Qualquer um de nós que tenha nascido na primeira metade de novecentos, passou decerto a vida a rever a linearidade patriótica dos antigos livros da instrução primária. E pode ter sucedido agora mesmo que a considerável literatura em torno da República lhe tenha dado uma ideia mais exata e distendida da variedade interna dos acontecimentos de há cem anos.

Confesso-vos que comigo aconteceu assim, especialmente na área que versei das relações do novo regime com a religião tradicional do país: é muito pouco realista e operativo tratar de tal temática a partir de dois sujeitos coletivos e extremados, tantos são os contactos e os circunstancialismos de parte a parte.

– Quem era mais republicano em 1911 e seguintes, Afonso Costa, Manuel de Arriaga ou o Padre Casimiro de Sá, “representando” este no parlamento os sacerdotes, republicanos com provas dadas, que, podendo aceitar a separação Estado-Igreja, discordavam da lei de 20 de abril que, quanto a eles, usurpara esse nome? – Quem defendeu mais consistentemente o regime até bem perto do 28 de maio, António Lino Neto, líder católico no parlamento, ou alguns republicanos de sempre que se aproximaram do movimento militar?

 

3. Aludi acima aos textos de ou sobre Pocock e Habermas, agora felizmente publicados; e dizia que ambos apelavam ao realismo, quer na verificação do passado quer na assunção do presente, realismo que inclua a complexidade não unívoca das convivências pretéritas ou atuais.

Seleciono, a propósito, este trecho de Pocock e a sua referência ao filósofo alemão: “Mal posso exprimir a pena que tenho que ele [Habermas] não tenha conseguido juntar-se a nós, uma vez que ele lidou exaustivamente com a questão do diálogo entre cidadãos cujas culturas são diferentes uma da outra, e apenas coloco uma questão de entre as muitas para as quais ele teria resposta. Qual será o significado do adjetivo ‘pós-nacional’? Uma ‘nação’ pode ser definida como uma etnia comum ou uma outra identidade: mas o que acontecerá se for definida como um sistema político com uma memória ou história comum? A historiografia tem sido maioritariamente o produto dos estados e a maioria dos estados modernos tem uma história narrativa que pode não ser monotemática ou autoritária mas intensamente debatida…” (In Da virtude e fortuna da República, p. 29).

Retomo a grande pertinência destas questões, também agora, para o nosso caso de há cem anos. Uma exemplificação entre tantas, pode ser A Portuguesa, adotada como hino nacional pelo novo regime; como adotada estava pelos muitos que a cantavam há duas décadas já, desde que Alfredo Keil e Henrique Lopes de Mendonça a tinham composto, música e letra respetivamente, na sequência do ultimato inglês.

Das três estrofes de Lopes de Mendonça só é cantada geralmente a primeira. Mas, se as tomarmos todas, ressaltará uma consciência brumosa do passado, que só o tempo definiria por certo. Na verdade, é de “entre as brumas da memória” que finalmente ressoa a voz dos antepassados egrégios (1ª estrofe); e é à própria Europa que se pede que diga ao mundo que afinal ainda existimos, pois “brade a Europa à terra inteira: Portugal não pereceu” (2ª estrofe); dum passado mais oculto do que claro é que se passará por fim à madrugada: “saudai o Sol que desponta sobre um ridente porvir” (3ª estrofe).

Nada de clareza, portanto, de trás para diante. Alma sim, mas à maneira romântica, como impulso, eco ainda de antigas andanças, em que se gritava: “Alma até Almeida e depois de Almeida alma também…”. E só isso permite compreender como 1910 se integrava na aspiração regeneradora, que já fora dos liberais – e se voltou a ouvir em 1974 e seguintes.

Do passado sobravam muitas leituras, da esquerda à direita, com projeções específicas da pátria a refazer. Houve regeneracionismos neomedievos, para recuperar comunas pré-absolutistas; houve regeneracionismos personalizados, reincarnando Joões segundos ou Pombais à escolha, que contrariassem inimigos diversos, aristocratas ou clericais; houve regeneracionismos anticatólicos, para retomar, quando muito, um cristianismo pré-tridentino; houve regeneracionismos religiosos, para dilatar “a fé e o império”; e houve, sempre disponível, um sebastianismo de serviço, mantendo o cavalo branco a sair das brumas – sempre as brumas – para sucessivos cavaleiros…

Houve de tudo um pouco, num passado de pretexto para combates do momento. Mas isto mesmo evidenciava dois pontos, igualmente importantes: primeiro que, mesmo divergente, havia a consciência vaga de que algo fora possível outrora, que permanecia apetecível agora; segundo, que essa consciência – ou quase um inconsciente coletivo – continuava a mobilizar frentes opostas mas igualmente dinâmicas.

A propensão urbana para a República ou a resistência monárquica doutros meios, alimentaram-se de tais impulsos de difícil definição e impossível conjunção; a não ser contra algum terceiro que aparecesse, dentro ou fora, como foi quase o caso da mobilização para a Grande Guerra, que até permitiria a oficialização de capelães militares.

 

4. Fosse como fosse, conseguiram-se algumas plataformas, de 1913 em diante. Refiro, compreensivelmente, a político-religiosa, que se revelou, aliás, mais fácil do que outras, entre os próprios grupos republicanos…

Foi nesse ano que os bispos propuseram militâncias católicas no quadro geral e aceite do regime novo, iguais entre iguais, inspirações entre inspirações. Foi nesse quadro também que o catolicismo oficial e político entrou abertamente no jogo democrático e parlamentar, sobretudo de 1919 em diante, afastando-se doutros crentes que continuavam a ligar a causa religiosa à restauração monárquica.

De 1920 a 1926 sucedem-se as expressões dum republicanismo mais aberto, onde caberiam os que quisessem, crentes de várias crenças ou nenhuma, regeneracionistas mais ou menos todos, menos definidos de passados estreitos para futuros parciais, ideologicamente parciais. E tanto assim é que, nos derradeiros anos do regime, deparamos com republicanos inquestionáveis a defender causas muito caras aos católicos – e não só! – e ouviremos alguns crentes de primeira linha a defender claramente a República.

Como sabemos, a legislação pós 5 de Outubro, não só acabou com a confessionalidade do ensino público como a afastou do particular. Pois bem, alinhando com Leonardo Coimbra, outros não monárquicos pronunciaram-se desta forma em 1923: “Estou absolutamente ao lado de Leonardo [Leonardo Coimbra demitira-se de ministro da Instrução, porque o parlamento rejeitara o seu projeto de liberdade de ensino religioso nas escolas particulares]. Concordo absolutamente com ele. Mais. Vou ainda mais longe. Eu queria ainda uma mais larga liberdade de ensino religioso. Uma liberdade que atingisse todas as escolas” (Raul Brandão, Diário de Notícias, 12 de janeiro de 1923). “O gesto de Leonardo Coimbra é o primeiro de ampla e profunda simpatia humana nesta República. […] O sentimento religioso tem sido sempre a força aperfeiçoadora da alma humana e a prova mais clara da sua realidade” (Teixeira de Pascoaes, A Pátria, 22 de janeiro de 1923). “Portugal é hoje o único país, o único! tome nota, onde há essa disposição bárbara e selvagem de proibir, nas escolas particulares, o ensino religioso. Acabemos com ela. É uma afronta. Uma vergonha” (Guerra Junqueiro, Diário de Notícias, 26 de janeiro de 1923)[1].

Como esclarecedoras são algumas declarações parlamentares do líder do Centro Católico Português, António Lino Neto. Assim a 20 de abril de 1923, definindo a posição católica: “Os católicos não reclamam situações de privilégio. Apenas querem liberdades comuns, para que todos se sintam bem e possam colaborar na obra progressiva que torne Portugal grande, política, moral e economicamente”. Ou ainda, a 9 de janeiro de 1924, defendendo a câmara legislativa que integrava e já era atacada por muitos: “Resulta que o Parlamento deve ser modificado, porque de facto ele tem defeitos. Mas pergunto: – qual é a instituição que não tem defeitos? Sr. Presidente: é pelo Parlamento que o país tem feito o desafogo de todas as dificuldades coletivas”[2].

Finalmente, só isto explica que, pouco antes do 28 de maio, o próprio Presidente da República, Bernardino Machado, tenha proferido as seguintes palavras, a 6 de fevereiro de 1926, numa sessão de homenagem a Pio XI na Sociedade de Geografia: “Graças ao espírito de concórdia com que Sua Santidade tem concorrido para que se estabeleça a paz até entre os portugueses, nunca mais será possível em Portugal um conflito entre o poder religioso e o civil” (Novidades, 7 de fevereiro de 1926)[3]. Permiti-me dizer ainda agora: – Deus o oiça!

E eis como, retomando a lição de Pocock e Habermas, uma leitura menos condicionada do passado nos reserva sempre algumas surpresas para o presente. Também sobre o nosso Portugal e a sua República.

Assembleia da República, 20 de outubro de 2011

D. Manuel Clemente, bispo do Porto

 

NOTAS:

[1] Para estas citações, cf. LOURENÇO, Joaquim Maria – Situação jurídica da Igreja em Portugal. Coimbra Editora, 1943, p. 218-219.

[2] NETO, António Lino – Intervenções parlamentares (1918-1926). Coord. de António Matos Ferreira e João Miguel Almeida. Lisboa: Assembleia da República e Texto Editores, 2009, p. 196 e 249, respetivamente.

[3] Cf. LOURENÇO, Situação jurídica, p. 220-221.

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