Intervenção de D. Manuel Clemente no Congresso do Ensino Superior

A Educação e o Estado

1. No momento atual da nossa história coletiva

Sobre o tema que me propuseram, deixo-vos simples e breves considerações, certamente fruto de alguma vida vivida e convivida em ambientes escolares e dentro da cidadania geral que nos integra a todos.

Teço-as no momento atual da nossa história coletiva, que requer de cada um e de todos o melhor contributo pessoal e institucional, para construirmos um futuro digno dos atuais e futuros portugueses, bem como dos que connosco partilham o devir europeu e extraeuropeu.

Tal contributo que devemos dar terá algo de quantitativo, no tempo gasto e oferecido, onde a vida, a profissão ou o cargo nos colocaram, sem desistências nem conformismos. Mas deverá ser muito especialmente qualitativo, pois todos sabemos que não nos basta prolongar o que tínhamos – ou julgávamos ter -, antes devemos recriar-nos coletivamente para um futuro mais rico de humanidade compartilhada.

Como é óbvio, a educação tem aqui um lugar primeiríssimo. Pois de valores se trata, da sua assunção e transmissão de uns para os outros e dos que estão para os que chegam. É um longo processo este, intrinsecamente ligado à cultura e à transmissão cultural.

 

2. Cultivando valores…

Como sabemos, a primeira aceção da cultura foi a mais imediata e urgente, ou seja a dos campos, como agricultura e subsistência própria e dos seus. O étimo latino (colere) teve essa aceção, enquanto não ganhou outra, refluindo do cultivo para o próprio cultivador.

Mas assim foi, passando da terra à “alma”, como cultivo interior e enriquecimento erudito e sábio. Mais perto de nós, com o romantismo, alargou-se à alma nacional e à cultura popular; com a etnografia e a sociologia passou a incluir tradições e instrumentos do viver e conviver, população a população. Hoje ganhou o sentido amplo de tudo quanto nos permite compreender e agir no meio natural e humano envolvente, com o melhor que recebemos do passado para resolver os problemas do presente e com tudo o que este vai criando para prosseguirmos em frente.

E, quando dizemos “o melhor que recebemos”, estamos já no campo dos “valores”, ou seja, do que demonstrou valia e importância para a realização pessoal e coletiva. O apuramento e transmissão desses valores constituem o cerne da nossa tradição viva. Essa mesma que faz de nós portugueses, europeus e seres humanos em geral, no quadro universal dos direitos e na partilha corresponsável dos deveres.

 

3. É disto que falamos ao dizer “educação”…

É disto mesmo que falamos, ao dizer “educação”. Como a cultura, também ela é dinâmica e ativadora, em relação a si próprio e – no caso familiar e escolar – muito especialmente em relação aos outros, por isso mesmo educandos.

A palavra significa também “extração” (e-ducere), para extrair dos outros o melhor deles mesmos, que só assim realizam as potencialidades que detêm, em benefício próprio e alheio. Não exagerando as coisas, lembro um antigo professor de filosofia, que dizia não sobrepor, antes extrair dos alunos o que já lá tinham; como os escultores que entreveem na pedra a imagem que pretendem, “limitando-se” depois a tirar com o escopro o que sobeja da ideia…

Será isto o essencial, pois insiste no aspeto personalista da educação. Mas inclui necessariamente todo o conteúdo teórico e prático entretanto conseguido e absorvido, área por área. Bom educador será quem “extraia” do educando tudo o que ele possa realmente dar; mas só a fará se transmitir todo o conhecimento que lhe desperte a capacidade de aderir, aprofundar e criar por sua vez. É neste sentido que a erudição enriquece a cultura e o bom educador surpreenderá os educandos – e ainda mais se surpreenderá com eles.

 

4.O princípio básico é a dignidade da pessoa humana

Quando não podemos fugir à circunstância, podemos torná-la ocasião, ocasião positiva. Aproveitemos então o momento – não só deste Congresso, mas o que “passamos” todos – no sentido amplo da palavra, que tanto significa sofrer como ultrapassar – para nos recriarmos como sociedade e a partir da educação, de melhor educação.

Na linha de pensamento que perfilho – também chamada Doutrina Social da Igreja – insiste-se em quatro “princípios permanentes”, aliás adotados por outras escolas, nisto mesmo coincidentes, ainda que com variada formulação. São eles que, também agora, me levarão às restantes considerações sobre a educação e o Estado: 1º) A dignidade da pessoa humana; 2º) O bem comum; 3º) A subsidiariedade; 4º) A solidariedade.

O primeiro e básico é a dignidade da pessoa humana. Tão primeiro e básico que atrai os outros em seu favor, sendo o seu objetivo e critério. Pode traduzir-se na irredutibilidade de cada ser humano, que não pode ser esquecida nem secundarizada, mas antes e praticamente servida em cada criança, adolescente ou adulto. Mas trata-se de “pessoas”, quer dizer sujeitos recetivos e ativos da relação social em qualquer dos seus níveis, nessa mesma relação se realizando por si e com os outros, ou de si para os outros e dos outros para si, em absoluta reciprocidade.

Assim mesmo somos e não de outra maneira, como também por contradição se poder apurar: – Que restou, de facto, das derivas individualistas ou massificadoras, que, ou esqueceram a dimensão social ou desconsideraram tal caráter irredutível de cada ser humano? As primeiras olvidaram o conjunto, as segundas a liberdade e a responsabilidade do sujeito. No todo, o saldo foi tão negativo que só vale como demonstração do que absolutamente teremos de evitar – e muito principalmente no processo educativo.

Mas, quando se fala de dignidade da pessoa humana, dá-se-lhe um sentido ativo e ativador. Dignidade em abstrato requer  também dignificação em concreto, pois não basta afirmá-la em declarações sem a promover precisamente e caso a caso. Olha o educador para os educandos, vai-os conhecendo a pouco e pouco: não tardará em descobrir o que falta a um para poder estudar em condições, o que falta a outro para conseguir afirmar-se, o que falha a muitos para se descobrirem no que podem e valem…

 

5. O segundo princípio, ou seja, o bem comum

Conseguir os meios para superar tais lacunas, leva-nos imediatamente ao segundo princípio enunciado, ou seja, o bem comum. Pode ele traduzir-se no conjunto de condições e meios de toda a ordem – material, cultural, social, espiritual – que permitam a realização cabal de cada pessoa duma determinada sociedade. Só globalmente se consegue e, dado o progressivo desenvolvimento humano, nunca estará completo no seu todo.

Algumas vezes atende-se sobretudo aos aspetos materiais e institucionais (mais do lado da civilização), outras vezes aos artísticos e mentais (mais do lado da cultura). No entanto, só conjuntamente se podem realizar, em autêntico bem comum.

Os antigos romanos trouxeram ao nosso território valiosas contribuições civilizacionais, do urbanismo às famosas vias, que foram a base de muita comunicação europeia até à época moderna. Mas, além dos letrados e juristas, arquitetos e governadores da antiga Roma, chegaram também os pregoeiros do cristianismo primitivo, que difundiram convicções que sobreviveram à queda do império e sentimentos básicos que enformam hoje a nossa cultura, bem para lá a crença definida. Imaginemos o que seriam as antigas vias romanas, se não trouxessem ao nosso território senão legiões primeiro e hordas bárbaras depois… Imaginemos ainda hoje o que seria um país de magníficas autoestradas, se estas não proporcionassem o fluxo das coisas e das ideias; ou de belos estádios, onde não se cultivassem boas práticas desportivas, ou nada acontecesse mesmo…

O bem comum só na totalidade dos seus aspetos pode servir o objetivo próprio da dignificação concreta de cada membro do corpo social. E tem na educação, da família à escola, como na sociedade inteira – pedagogia comum de nós todos – o seu campo de eleição.

 

6. Ninguém se realiza sem ter em conta os outros

Os outros dois princípios enunciam-se como subsidiariedade e solidariedade. Para o fito desta intervenção, vou trocar-lhes a ordem. Da solidariedade digamos rapidamente que requer a convicção e a atitude próprias de quem sabe que nenhuma pessoa ou grupo se realiza e mantém sem ter em conta os outros, tanto mental como praticamente. Como sucede entre pessoas – sujeitos em relação, que só mutuamente se revelam -, assim na sociedade em geral, etimologicamente mundo de “sócios”, companheiros e viandantes, que só uns com os outros conseguirão prosseguir.

Não foi assim há tanto tempo que se chegou a ouvir falar em povos e continentes “dispensáveis” para a marcha do progresso… A presente crise, se para alguma coisa serve, é exatamente para nos demonstrar o contrário e nos impulsionar no sentido mais solidário e universal que possa ser.

E não é apenas porque em meados deste século a maioria da população continental já não vá ser de origem europeia, ou porque temamos alguma deriva fundamentalista de recentes revoluções da margem sul do Mediterrâneo… É porque, antes e além desses fatores possíveis – e tantas vezes manipulados -, há unicamente uma só Terra para a humanidade de nós todos. E nem é porque a pré-história nos indica que afinal todos provimos da África que tal continente passa a ser olhado com melhores olhos… É porque se a casa é comum, comum tem de ser a causa da nossa humanidade felizmente colorida, na pele e nas culturas, sobre uma base geral de solidariedade inalienável. E também neste ponto, começará na família e na escola o melhor futuro da sociedade universal que certamente almejamos.

 

7. O princípio da subsidiariedade ajudar-nos-á a equacionar a relação entre a educação e o Estado

O princípio da subsidiariedade, que propositadamente deixei para o fim, ajudar-nos-á a equacionar da melhor maneira a relação entre a educação e o Estado. Diz-nos ele que, para respeitar e dignificar a pessoa humana, como base inultrapassável de qualquer sociedade justa e também o seu critério, nenhum órgão de topo deve esquecer ou menosprezar os corpos intermédios, em que geralmente a personalidade se conjuga e mais diretamente se exercita.

Na perspetiva personalista que subjaz a tudo o que vai dito e hoje geralmente perfilhamos, a sociedade não se constitui a partir de cima ou do centro, mas da base ou da periferia, em círculos ascendentes ou centrípetos. O primeiro nível da sociabilidade humana é a família onde se nasce e cresce, somando-se depois a localidade, a regionalidade, o país e a comunidade internacional, além das comunidades de crença e outros elos mais sectoriais. Ora, a relação dos órgãos centrais ou de topo com esses corpos básicos e intermédios só pode ser de respeito ativo e apoio (subsidium), nunca de ultrapassagem arbitrária.

No que à educação se refere e seguindo a linha normal de crescimento e pedagogia, é natural que a primeira responsabilidade pertença à família, onde a vida aparece e é amparada. Natural é também que os progenitores e os membros mais velhos da comunidade familiar sejam o primeiro e insubstituível elo da transmissão dos valores e da cultura. Seguir-se-ão outros, como é o caso especial da escola, mas em colaboração com a família, não em substituição dela, a não ser em casos excecionais, que por isso mesmo não podem fazer regra.

Normal é também que os pais peçam à escola que tenha presentes os valores que legitimamente pretendem transmitir aos seus filhos; e justíssimo é que a escola tenha em linha de conta as aspirações dos pais e encarregados de educação, que deve viabilizar, complementar e não postergar.

Concomitantemente, também uma justa autonomia escolar não uniformizará sem mais o ensino, antes procurará ter em conta as legítimas particularidades sociais e culturais do meio em que o estabelecimento se implanta ou do setor que procure mais diretamente atingir.

 

8. O Estado não se realiza fazendo tudo por si

Como sabemos, foi só recentemente – segunda metade do século passado – que se alargou a rede estatal do ensino, procurando proporcionar o respetivo acesso a toda a população do país. Justamente o fez, porque o papel do Estado, como primeiro promotor geral do bem comum é facultar a todos o que a todos é devido. Nem sempre assim sucedeu, quando, por motivos voluntaristas ou ideológicos, o mesmo Estado esqueceu aquelas iniciativas escolares não estatais já implantadas, por vezes com muita abnegação e verdadeiro serviço público da parte dos seus agentes.

Por serviço público deve entender-se todo o que realmente assim se comporta, projetando a sua ação no bem comum geral da sociedade, sendo por isso justamente reconhecido como tal. Certamente é o caso da escola estatal, diretamente dependente das instâncias oficiais que a promovem e dirigem. Mas esse serviço também é exercido por outras iniciativas educativas, que não partiram dos organismos oficiais nem dele diretamente dependem, sendo igualmente beneméritas da sociedade em geral.

À boa luz do princípio da subsidiariedade, o Estado não se realiza fazendo tudo imediata e geralmente por si. Realiza-se, em função do bem comum, quando estimula e possibilita ao máximo a espontaneidade, a criatividade e a corresponsabilidade de pessoas e grupos, para benefício do conjunto e dentro de objetivos gerais democraticamente definidos. Quase se poderia dizer que, neste ponto educativo, a haver suplência, seria a do próprio Estado, enquanto administração pública. E, em boa pedagogia, melhor é “fazer fazer” do que fazer tudo sozinho, também do Estado em relação á sociedade; sem a substituir nem menorizar, antes estimulando-a e facultando-lhe proporcionalmente recursos, que, sendo de todos para todos, hão de ser ativados tanto solidária como subsidiariamente, 

   Dito doutro modo e em conclusão, a relação entre educação e Estado define-se a partir da educação – tarefa primordial das famílias e respetivas escolhas, com as iniciativas que livremente suportem, o mesmo se dizendo do que se passar depois com jovens e adultos – e não a partir do Estado. Como responsável geral do bem comum, o Estado entrará “antes” como subsidiariedade e estímulo, para que tais iniciativas possam ir avante, e entrará ao mesmo tempo, para que a solidariedade não deixe ninguém de fora do sistema educativo, no sentido lato e plural do termo.

Instituto do Ensino Superior da Maia/ISMAI, 28 de outubro de 2011

D. Manuel Clemente, bispo do Porto

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