“Uma reflexão sobre o homem e o conhecimento na perspetiva dos valores universais…”
Foi precisamente o que me pediu o Senhor Professor Doutor António Fernando Sousa da Silva para esta sessão comemorativa da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto: uma breve reflexão sobre o homem e o conhecimento na perspetiva dos valores universais. Partilho-a com simplicidade e com todos vós, com gratidão e bons votos para o presente e o futuro desta centenária instituição académica, que ele tão excelentemente dirige.
1. Dos antigos gregos à contemporaneidade, tento um breve relance, com os inconvenientes certos e a hipotética vantagem de tal ensaio. Mas ainda assim, contrariando um pouco a tendência atual da especialização excessiva, de árvores sem floresta.
Naquele tempo – de Sócrates, Platão, Aristóteles e outros mais -, brilhava um sol na Grécia que aclarava as coisas, e com duplo efeito: podia esbatê-las tanto, que quase as confundia e apagava, sobrando o que lhes era primeiro e comum, essencial a todas; mas também as podia iluminar, oferecendo-as aos olhos e à mente do observador como objetos precisos, destacados doutros mais.
Quase poderíamos dizer que deste duplo efeito nasceram, respetivamente, a filosofia e as ciências, como as entendemos nós. E em duas vertentes, mais filosófica, mística e platónica a primeira; mais detalhada, científica e aristotélica a segunda. Com a primeira iríamos rapidamente ao céu, com a segunda demorávamos mais na terra.
Quando o Império Romano integrou a Grécia, o que se conservou daquele olhar funcionalizou-se mais, quer para as aplicações práticas da vida corrente, como pedagogia, medicina ou arquitetura, quer para unificar as diferenças de povos e culturas numa administração geral e mais viável. De algum modo acrescentaríamos que as duas vertentes do pensamento grego coincidiram, formal e praticamente, no Império e no Direito, no império do Direito, se assim quisermos.
Como estrutura, durou o que durou e até ao século V, no que ao Ocidente se refere, particularmente ao “extremo Ocidente” em que estávamos nós. Depois das invasões bárbaras, a desorganização geral das coisas já não permitiu a vida urbana em que elas se trocavam, com as notícias e as ideias que naturalmente traziam com elas.
Até ao renascimento urbano e escolástico da Baixa Idade Média, o que sobrou guardava-se e transmitia-se noutros centros culturais que um novo culto criara entretanto.
Refiro-me, obviamente, aos núcleos eclesiásticos cristãos. No início da era que criou, ainda mais mental do que cronologicamente, o cristianismo trouxe ao mundo greco-romano algumas ideias básicas que, com o tempo, relançaram a história ocidental.
Com o judaísmo em que nascera, o novo credo insistira num único Deus criador de todas as coisas, que dera ao homem e à mulher o poder e o mandato de “encher e dominar a terra” (Génesis 1, 28). Esta doutrina, tanto simplificava o céu como autonomizava relativamente a terra, abrindo à responsabilidade humana o largo campo de a compreender e desenvolver.
Mesmo quanto ao Império e à sua política, o fundador do cristianismo fora claríssimo na distinção dos campos: “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22, 21). Sem os separar absolutamente, porque próximos permaneciam na origem e no fim último das coisas.
Mas estas e outras inovações bíblicas abririam caminho – custoso caminho, ainda não totalmente percorrido – ao pensamento ocidental e à sua projeção mundial a partir do século XV. Do século décimo quinto da era que justamente fundaram e qualificaram, a nossa era.
Os grandes autores cristãos dos primeiros séculos não tiveram dificuldade em recolher da tradição greco-romana tudo quanto a nova fé podia herdar da filosofia, da ciência e do direito. Aliás, muitos deles conheciam bem as respetivas autorias e obras. Quando o Império e as suas cidades desapareceram, essa mesma cultura persistiu nalguns centros episcopais e monásticos do alto medievo, que, ao mesmo tempo, foram núcleos axiais da Europa que verdadeiramente criaram.
2. Não é difícil reconhecer, mesmo na pura ordem dos factos e sem qualquer extrapolação confessional, que a Europa de que falamos hoje, nasceu precisamente do alargamento do cristianismo – romano-beneditino, céltico ou bizantino, entre outros focos locais – aos povos “bárbaros” que tinham ocupado o Império e a muitos outros que nunca lhe tinham pertencido.
Foi assim que apareceu no século X, do Mediterrâneo ao Mar do Norte e da Península Ibérica à Rússia, um verdadeiro continente, geográfica e culturalmente unificado em torno de ideias e sentimentos básicos, cristãmente referidos. No que ao nosso espaço ocidental mais respeita, digamos ainda e com igual justiça que essa mesma cultura foi reforçada com tudo o que alguns autores árabes veicularam e desenvolveram do pensamento clássico, remanescente nos territórios que ocuparam desde o século VII; o mesmo se dizendo de alguns grandes autores judeus, no mesmo sentido.
No século XIII, a Europa das Universidades consubstanciou a sobrevivência conseguida e aprofundada de tantos séculos trabalhosos. E o ideal que mantinha era o da variedade coesa dos estudos recebidos e sistematizados. Das Artes à Medicina, da Medicina às Leis e aos Cânones e daqui à Teologia, o “universo” dos saberes e dos escolares, pretendia-se assim. Que o dissesse o nosso Pedro Hispano – papa João XXI entre 1277 e 1278 -, escolar em França e Itália, cultor de matérias tão distintas como a lógica, a medicina ou a teologia. Esse mesmo que Dante fulgurou no Paraíso dos sábios.
Unidade ideal dos saberes, difícil de conseguir quando cada ramo se cultiva mais e mais. As polémicas escolares dos séculos XII a XIV, entre Bernardo e Abelardo, antiaverroístas e averroístas, defensores ou negadores dos universais, retomaram de certo modo a diferente orientação dos espíritos platónicos ou aristotélicos, alargando a dificuldade de conciliar a propensão experiencial ou experimental do conhecimento, finalista ou demorada do saber, unificada ou diferenciada dos respetivos campos.
3. Do século XV em diante, a Europa foi descobrindo o mundo. Melhor diríamos “os mundos”, tão diferentes eram de nós e entre si. Diferenças que aumentaram os debates internos e alargaram muitos horizontes, geográficos e mentais. Nas universidades e outros espaços, polémicas novas encontraram repostas diferentes.
Reações de defesa e segurança não faltaram, políticas ou eclesiásticas, entre ortodoxias e heterodoxias em choque. Em geral, passaram-se no âmbito das cristandades subsistentes, católicas ou protestantes desde o século XVI.
E é bom vincar este aspeto interno, pois foram, na generalidade, polémicas entre crentes. Digamos até, que aquelas fontes bíblicas do pensamento ocidental, acima lembradas, de algum modo legitimavam o curso inicial da ciência moderna, mais do lado de Copérnico e Galileu do que dos seus opositores. Por isso alguém lembrou, durante o “caso” deste último, que “a Bíblia não nos diz [cientificamente] como é o céu, mas como se vai [religiosamente] para o Céu”… Por outro lado, a surpreendente variedade dos novos mundos questionava e ultrapassava em toda a linha a ciência e as previsões dos antigos mestres.
Aumentaram a observação e a experimentação, reconheceu-se a variedade e o tamanho da natureza geográfica, física e astronómica. Também no que à humanidade respeitava, à sua anatomia e fisiologia. De grandes polémicas emergiu uma realidade mais sólida, quantificável e aproveitável. Ciência moderna e aplicações técnicas caminharam a par. Com o tempo, a segunda orientaria a primeira: – Se é possível fazer-se, porque não ir por aí?
Uma realidade compreensível também poderia ser melhorada. Da experimentação talvez pudesse sair recriação… E, se assim era na natureza física, porque não tentá-lo na humana e social?
Do século XVII para o XX temos de tudo isto, muito ou pouco. Mas de modo divergente também: por um lado, progresso após progresso, ramo a ramo, a especialização cresceu muitíssimo, deixando para trás a antiga aspiração de síntese – depois do século XVIII rareiam os enciclopedistas, inevitavelmente; por outro lado, não faltou quem quisesse extravasar para o ser humano os fins e os métodos que resultavam na natureza em geral.
Não é preciso lembrar a história de Frankenstein para ilustrar esta deriva, que aliás não se esgotou de todo. Mas também sabemos como a própria sociedade se tornou campo de observação e pesquisa, da parte dum conjunto de novas ciências que a tentaram melhorar e até prever, com resultados de diverso êxito.
4. – Onde estamos nos agora? Confesso a minha incapacidade de compreender uma realidade tão complexa, no que aos saberes em geral respeita.
Mas posso transmitir-vos o que se passou comigo, ligado que estou à Universidade desde os anos sessenta, como discente ou docente, no campo das humanidades. Quando comecei a cursar História, eram fortes, muito fortes, as propostas de interpretação materialista dos fenómenos sociais, estritamente sociais e económicas no caso. Aconteceu, porém, que a leitura de Fustel de Coulanges, demonstrando a influência dos fatores religiosos na constituição da sociedade (antiga) me contrabalançou a proposta de Karl Marx… Fosse como fosse, os anos sessenta e setenta ainda tentavam o congraçamento geral dos saberes e das vidas. E tive como professores homens como o Padre Manuel Antunes ou Vitorino Nemésio que versavam tantos ramos de conhecimento e com tal brilhantismo que deixavam nos alunos a grande apetência das sínteses. E, da paleontologia à evolução cósmica e humana, dispúnhamos ainda das magníficas páginas de Teilhard de Chardin.
Não assim a partir de então. Dos anos oitenta em diante, o chamado pós-modernismo desacreditou as “meta-narrativas”, propondo quando muito que cada sujeito fosse narrando a sua própria vida, se a não quisesse ir vivendo apenas… Seguia de mãos dadas com alguma euforia do hemisfério norte, nas antípodas do desencanto atual. Tudo parecia possível, da ciência e da tecnologia – da ciência tecnológica? – à mundialização subsequente ao fim dos blocos. – Não estava à porta um milénio novo?
Leva já dez anos, e não foi exatamente assim… Entre avanços certos nos diversos ramos, sobram perplexidades e condicionamentos em todos os saberes. O próprio estatuto da Universidade, tão ligado que estava à viabilidade profissional de professores e alunos, é objeto agora de interrogações profundas.
Por tudo isto, mais reconheço e louvo a vontade do Diretor desta Faculdade de aprofundar a “reflexão sobre o homem e o conhecimento na perspetiva dos valores universais”. Pessoalmente, sou seguidor de alguém que há dois milénios perguntou: “De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder-se a si mesmo?”. E creio também que, de tantos caminhos e encruzilhadas, sobressai a preocupação essencial de nos recuperarmos como humanidade de futuro.
Permito-me concluir em três alíneas: a) É inevitável a especialização cada vez maior de cada um na área de saber em que estiver, dada a complexidade do real a que atendemos. b) Todavia, uma vez que o real que sondamos é também o real que, direta ou indiretamente, integramos, a vinculação humana e humanizante dos saberes é uma urgência inadiável agora. c) Por fim, a Universidade recuperará a universalidade que a define, não já pelo enciclopedismo impossível de qualquer génio invulgar, mas pela partilha de saberes entre todos e cada um dos seus membros. Requer-se, designadamente uma boa base e companhia humanística para qualquer cientista que seja; como algum acompanhamento do que progride nas ciências para o enriquecimento humanístico atual. É sempre o que faz a humanidade e é disso que a humanidade é feita.
No que à Universidade do Porto diz respeita, Ciências e Letras, Medicina ou Direito, Engenharia ou Economia, como todas as outras escolas, irmanar-se-ão muito mais na partilha do que especificamente cultivar cada uma. E, como há quinhentos anos as descobertas geográficas proporcionaram um desenvolvimento notável dos saberes, as descobertas culturais que agora geralmente fizerem aumentarão em muito a inovação nas diversas áreas, por parte de estudiosos que se enriqueçam muito mais como sujeitos pensantes.
Porque valor universal é, sempre e finalmente, a humanidade que compartilhamos todos.
Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, 19 de outubro de 2011
D. Manuel Clemente, bispo do Porto