Intervenção de D. José Policarpo nas Jornadas de Formação Permanente do clero de Lisboa

“Sermos Igreja: que Igreja?”

 

1. O título sugerido para esta minha intervenção, enuncia o objetivo de toda a ação pastoral, sermos Igreja e lança-nos a interpelação da compreensão da Igreja. Não gosto muito da expressão “modelos de Igreja”, que dá azo a escolher expressões da Igreja, de acordo com a nossa visão pessoal. Trata-se, isso sim, de uma compreensão da realidade sobrenatural e histórica da Igreja de Jesus Cristo, nas suas componentes essenciais e perenes e nas expressões transitórias, porque situadas no tempo e no concreto das culturas e dos enquadramentos sociológicos. Esta compreensão da Igreja inspira e julga as ações pastorais para a sua edificação.

Vamos celebrar 50 anos da abertura do Concílio Ecuménico Vaticano II. A compreensão da Igreja foi questão central para a Assembleia Conciliar. O Concílio fez uma opção ousada e corajosa: alicerçar essa compreensão da Igreja na era apostólica e pós-apostólica, num movimento circular próprio da Tradição, de fazer que os diversos tempos da Igreja se encontrem, iluminando-se mutuamente. Não se tratou de eliminar mais de um milénio do tempo da Igreja, mas de os refrescar nesse regresso às fontes ou, se quisermos, à fonte que é a Palavra de Jesus e a Sua Páscoa.

Esta reflexão que nos é proposta é, assim, ocasião de avaliarmos em que medida, na Igreja que estamos a servir, se deu uma receção objetiva e verdadeira da eclesiologia do Concílio Vaticano II.

 

Uma visão teologal da Igreja

2. A dimensão teologal é prioritária na busca da compreensão da Igreja, e enraíza em Jesus Cristo. Só n’Ele podemos compreender a Igreja que salva e que é congregação dos que se uniram a Cristo, pela fé e pelo batismo. É assim que começa o Magistério Conciliar: “Cristo é a luz dos povos: reunido no Espírito Santo, o Santo Concílio deseja ardentemente, ao anunciar a todas as criaturas a boa nova do Evangelho, espalhar sobre todos os homens a claridade de Cristo que resplandece no rosto da Igreja” (LG. nº1). Três afirmações iniciais estruturaram essa compreensão da Igreja “que é um sacramento, isto é, sinal e meio da união íntima com Deus”: Cristo é a luz dos povos, isto é, é o Salvador; essa luz deve brilhar no rosto da Igreja; essa comunicação da claridade de Jesus Cristo faz-se através do anúncio do Evangelho e de toda a ação da Igreja como sacramento.

A luz de Cristo só brilhará no rosto da Igreja, se esta, no seu realismo histórico, for uma experiência de comunhão com o próprio Cristo, que nos comunica o Espírito e nos leva a experimentar, já neste mundo, a comunhão trinitária. “A Igreja universal aparece como um “povo que tira a sua unidade da unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (LG. nº4). Esta era já a compreensão da Igreja do Apóstolo São João: “O que vimos e ouvimos, nós vo-lo anunciamos para que, vós também, estejais em comunhão connosco. Quanto à nossa comunhão ela é com o Pai e com o Seu Filho Jesus Cristo” (1Jo. 1,3).

3. Esta compreensão da Igreja deve exprimir-se no concreto da vida da Igreja e, de modo particular, na ação pastoral. A explicitação doutrinal não é a sua única forma. Já é comum afirmar que a Igreja é comunhão. Mas a ação pastoral tem como dinamismo principal fazer comunhão? Esta compreensão da Igreja põe no centro da sua ação a caridade. Esta é a claridade da fé. É essa luz de Cristo que deve refletir-se no rosto da Igreja. A vida da Igreja tem de estar centrada na caridade. E esta é a atualidade fiel do mandamento bíblico: amarás o Senhor teu Deus… amarás o próximo.

Uma pedagogia da oração, na complementaridade entre oração litúrgica e oração pessoal, deve integrar o dinamismo pastoral. A Igreja só será comunhão se mergulhar na comunhão com Deus e receber dele a força da caridade fraterna.

 

A dimensão bíblica da Igreja

4. A primeira fonte onde se vai beber esta compreensão da Igreja, é a Sagrada Escritura no seu todo, o Antigo e o Novo Testamento. A descoberta da Igreja à luz da Palavra de Deus é desafio permanente em todos os momentos de renovação pastoral; tem de o ser neste tempo de nova evangelização.

As vicissitudes históricas, sobretudo as que envolveram os novos países da cristandade em relação ao Povo Judeu, levaram à perda da consciência da unidade na continuidade entre a Igreja e o Povo do Antigo Testamento. Mas uma compreensão global da realidade da Igreja só é possível se tivermos consciência de que a sua realidade e o seu mistério se iniciam no Antigo Testamento, sobretudo na Aliança entre Deus e o Seu Povo. A realidade Povo de Deus, Povo escolhido, prevalece na dimensão coletiva de uma comunidade de salvação.

A Igreja é o novo Povo de Deus, que atinge em Cristo a plenitude da Aliança e o pleno cumprimento das promessas. O Messias esperado era, afinal, o próprio Deus encarnado, tornado próximo desse Povo. Em Cristo radicaliza-se o projeto de Deus de ter um povo escolhido, a partir do qual se universalizava o seu amor por todos os homens. A Igreja assume-se, em Jesus Cristo, como o Povo da nova e definitiva Aliança.

5. Pastoralmente não é fácil, na construção da Igreja, incutir esta primazia da dimensão coletiva de Povo de Deus. Deu-se, durante muito tempo, prioridade à dimensão individual, vendo a Igreja como uma prestadora de serviços às pessoas individuais para a sua caminhada de salvação.

As circunstâncias históricas da presença e da missão da Igreja no mundo exigem esta consciência de Povo, em que cada membro encarna a missão de toda a Igreja. Isto exige uma fé de Povo, “a fé da Igreja”, relativizando as visões individuais da identidade cristã. As divisões no sentido da mensagem da Igreja no mundo enfraquecem a presença da Igreja. A primeira expressão da dignidade do cristão e a sua responsabilidade na missão exprime-se na consciência de pertencer a esse Povo que o Senhor escolheu e enviou. A ação pastoral tem de promover a vitória sobre a visão individual e, de modo especial, sobre a perspetiva individualista da fé cristã.

6. Novo Povo de Deus, a Igreja é o Povo de Cristo. Constitui-se na união e identificação com ele, é o “Corpo de Cristo” e o Senhor é, para este novo Povo, a cabeça, o Bom Pastor, o esposo que ama a Igreja como esposa. A união a Cristo na celebração da Sua Páscoa, é a expressão máxima da Igreja como Povo de Jesus Cristo. Celebrar a Eucaristia como ato individual de piedade é adulterar o sentido da Páscoa, última expressão da Aliança de Deus com o Seu Povo. A Eucaristia é sempre assembleia, que envolve a Igreja toda, mesmo quando é celebrada por poucos. A verdade da Igreja exprime-se na sua relação com Cristo, na totalidade do seu mistério e na universalidade da sua missão.

É enquanto Povo do Senhor que a Igreja participa do seu mistério e da sua missão. Cristo, Profeta, Sacerdote e Rei, exprime essa plenitude de mistério e de ministério à Igreja, Povo do Senhor. Ela é, povo profético, sacerdotal e real.

6.1. Povo de Profetas. No Antigo Testamento o carisma profético era concedido a pessoas escolhidas por Deus e por Ele preparadas e enviadas. Deus consagrava-as, algumas “desde o seio materno”, e comunicava-lhes a Sua Palavra que deviam transmitir a todo o Povo. Cristo é o Profeta definitivo e todo o Povo que brota d’Ele, tem o carisma profético. Rigorosamente não há profetas, mas sim um povo profético. Deus realiza em toda a Igreja o que fazia nos profetas escolhidos: consagra-a na santidade, revela-lhe a Sua Palavra, envia-a a anunciar. Pela consagração, a luz de Cristo reflete-se no rosto da Igreja, que a envia a anunciar a Sua Palavra, isto é, a proclamar Jesus Cristo, que é a Palavra. Na missão evangelizadora da Igreja, essa luz de Cristo procura ser luz para todos os homens. A Igreja deve escutar continuamente a Palavra que anuncia e mostrar, pelo testemunho da santidade, que a Palavra, quando é escutada, transforma. O testemunho de uma vida transformada é essencial à evangelização. Proclamar a Palavra é apenas uma das expressões da fidelidade da Igreja a Jesus Cristo. Isto encerra interpelações concretas à nossa ação pastoral. Como formamos os nossos evangelizadores? Como cultivamos aquele “novo ardor” de que fala João Paulo II? Como alimentamos em toda a Igreja o ardor missionário?

Na sua missão profética a Igreja é enviada ao mundo. Ela é um “Povo”, no meio de outros povos. A sua própria existência é profética, isto é, evangelizadora. É no seu estar no mundo que a luz de Cristo, que brilha no rosto da Igreja, vai iluminando progressivamente a sociedade. Os cristãos são, com todos os outros homens, obreiros da construção de uma sociedade mais digna do homem e que realize o desejo de Deus. Em todo esse empenho na sociedade dos homens, os cristãos refletem a luz de Cristo, aprendendo a ver a realidade à luz do desígnio de Deus, porque eles partilham, com todos os seus irmãos, a mesma aventura humana: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens deste tempo, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo, e não há nada de verdadeiramente humano que não encontre eco no seu coração” (GS. Nº1).

Se a Igreja participa na construção da história com esta luz de Cristo, ela tem a alegria de poder discernir, na realidade da história humana, sinais do Reino de Deus (cf. GS. nn. 4 e 11). O “sentido da fé” (cf. LG. nº12) e o ardor da caridade, permitir-lhe-ão a compreensão da realidade humana à luz da fé.

6.2. Povo Sacerdotal (cf. LG. nn. 10-11)

Na sua identificação com Cristo, a Igreja Povo do Senhor, participa da dimensão sacerdotal do ministério de Cristo. Como no caso da dimensão profética, a Igreja é um povo sacerdotal. Tendo sempre Cristo como Sumo Sacerdote, o povo sacerdotal pode oferecer a Deus o próprio sacrifício de Cristo. Fá-lo em assembleia celebrativa na liturgia comunitária, fá-lo oferecendo nesse ato sacerdotal a vida de cada um. Deus é, assim, continuamente louvado, ao serem-lhe oferecidos em louvor, a fé, a esperança e a caridade de todos os membros da Igreja. Sem esta dimensão sacerdotal de toda a Igreja não se pode compreender e viver a liturgia. Esta dimensão inspirou toda a reforma litúrgica. Este é um aspeto que temos de trabalhar na ação pastoral. É um facto que, ao longo de séculos, a importância do sacerdócio apostólico relativizou e quase fez esquecer esta dignidade sacerdotal. E sem ela a Igreja torna-se, inevitavelmente, clerical. E não é isso que o Senhor quer dela. O sacerdócio apostólico é apenas a mais misteriosa concretização da dimensão sacerdotal de toda a Igreja. Na oferta do sacrifício que nos redime, a Igreja não é apenas assembleia celebrativa a que Cristo preside. De facto, Ele preside através daqueles membros do Povo Sacerdotal a quem consagrou para O tornarem presente como único Sacerdote. Em cada expressão do nosso ministério resplandece a beleza desse desígnio de Deus que quis que a Sua Igreja, Povo Sacerdotal, se identificasse completamente com Ele, na oferta do sacrifício que nos redime.

6.3. Povo Real. Completamente identificada com Cristo, a Igreja comunga, com o Seu Senhor, da sua realeza e que se exprime nela no amor fraterno, na força transformadora da caridade.

 

7. A Igreja objeto de fé

A Igreja é um povo crente. Mas ela não é apenas o lugar onde se acredita em Deus, Trindade de Pessoas, e na sua intervenção salvífica. A própria Igreja se tornou objeto de fé. A Igreja, assembleia crente, acredita em si mesma. Os mais antigos símbolos da fé, incluíram, na profissão de fé, a fé da Igreja no seu próprio mistério: “Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica”. Estas notas constitutivas da Igreja são queridas por Deus, e não simples características humanas. Cristo desejou uma Igreja una, santa, católica e apostólica. Aquela compreensão da Igreja, que é o tema desta minha intervenção, que deve inspirar a nossa ação pastoral, tem de assentar na fé da Igreja, que é também fé na Igreja.

7.1. Igreja Una.

Já citámos a Lumen Gentium: “A Igreja universal aparece como um Povo que tira a sua unidade da unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo (LG. nº4). É o mistério dos mistérios. A construção da unidade da Igreja não pode ser só o resultado do esforço humano, de ação inspirada em critérios analíticos da realidade. Não existe sem vivência, por parte da Igreja, do próprio mistério de Deus, em Jesus Cristo. A Eucaristia é a sua fonte principal, a oração a sua expressão, a caridade a sua força. A Igreja só será una se mergulhar na comunhão de amor divino, através de Jesus Cristo, conduzida pelo Espírito. A unidade da Igreja não é uma estratégia pastoral, é um abandono ao amor.

Ao longo dos séculos a Igreja sempre se sentiu atraída pela unidade e ferida pela desunião. Não podemos desistir desse ideal, sabemos que Deus o deseja mais do que nós e por isso o desejamos com fé. O grande desafio pastoral é construir a unidade, apesar da diversidade. Isso exige que todas as expressões eclesiais, pessoais ou grupais, professem a fé da Igreja e não qualquer visão particularista da fé, e estejam em comunhão. O critério visível desta comunhão é a união ao Colégio Apostólico, a que preside o Santo Padre. A edificação da unidade da Igreja não pode ser assunto de iniciativa privada. Tem na base uma obediência de amor.

7.2. Creio na Igreja Santa (cf. LG. nn. 39-42).

A Igreja é santa porque o seu alicerce é Cristo, pedra angular, que nos comunica o Espírito de santidade. É o amor de Cristo pela Igreja que a constitui como povo santo. Esta santidade de Deus exprime-se, já, na santidade de tantos dos seus membros e naquela parte da Igreja que já partilha da glória de Deus. Mas para a maior parte dos seus membros a santidade é um desafio, é uma luta diária de fidelidade, a que nos chama o próprio amor de Deus. Este Povo que peregrina é, ainda, “a santa Igreja dos pecadores”. Na nossa ação pastoral temos de incentivar esta luta pela santidade, o desejo de sermos santos como Deus é Santo.

7.3. Creio na Igreja Católica (cf. LG. nº13)

Ser católica quer dizer ser universal. A sua mensagem e a salvação de que é o sacramento destinam-se a todos os homens. Todos são chamados à Igreja. O dinamismo da missão é o caminho para construir a catolicidade. Mas ser católica significa ir cada vez mais ao fundo do dom de Deus em Jesus Cristo. Todo o esforço de aprofundamento da fé é construção da catolicidade.

7.4. Creio na Igreja Apostólica

A apostolicidade da Igreja consiste na ligação ao Colégio Apostólico e seus sucessores como garantia da sua autenticidade. Foram os apóstolos de Jesus que, em fidelidade à missão recebida, deram forma à Igreja como novo Povo de Deus.

Todos os grandes cismas tiveram na origem o pôr em questão desta apostolicidade. A Igreja que somos e queremos edificar assenta sobre essas colunas que são os apóstolos do Cordeiro. É dimensão a acentuar continuamente na formação cristã. Nós, que exercemos hoje o sacerdócio apostólico, temos de ser as primeiras testemunhas desta apostolicidade da Igreja.

 

8. Igreja Peregrina

A meta da Igreja é o Reino dos Céus, a Igreja escatológica (cf. LG. nn. 48-51). O sentido da Igreja não se esgota no seu presente. Ela é um povo peregrino da Pátria Celeste. Dimensão continuamente presente na liturgia, não está muito acentuada no comum dos cristãos. Quantos desejam essa plenitude e esse encontro decisivo? É dimensão a acentuar na ação pastoral. A celebração cristã da morte é situação privilegiada para esse anúncio da vida eterna.

 

9. Maria, Mãe da Igreja (cf. LG. nº 52ss)

Em Maria, o mais excelente membro da Igreja, brilha toda a beleza da Igreja como Povo do Senhor. Porque escutou a Palavra e a seguiu; porque acolheu no silêncio do seu coração todo o mistério que a envolvia; porque abraçou toda a exigência do sacrifício redentor; porque amou a Igreja nascente com o amor de Jesus, ela é o modelo da Igreja. Em Maria a Igreja reconhece-se na sua vocação, na sua fecundidade, no seu desejo da plenitude. A Igreja crente encontra nela a perfeição da fé; a Igreja fecunda, que gera sempre novos filhos, encontra na sua maternidade virginal o segredo do seu mistério; a Igreja amorosa, pode beber a sua ternura do seu amor na sua ternura maternal; a Igreja esposa do Cordeiro, contempla em Maria o seu amor esponsal em relação ao próprio Deus. O amor a Maria é mais que uma devoção; é a contemplação do amor de Deus por nós, humanidade que Ele deseja reunir na Sua Casa.

Seminário dos Olivais, 24 de janeiro de 2012

D. José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa

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