Homilia do Bispo do Porto
IMACULADA CONCEIÇÃO 2009 – Na definitiva alvorada do mundo!
Homilia
Caríssimos irmãos e irmãs
Deixai-me retomar alguns trechos ouvidos, pois só à luz deles nos entenderemos nesta celebração festiva. Mais: só à luz deles nos motivaremos deveras para sermos o que mais importa agora, diante de Deus e neste mundo que nos toca com tanta contradição e urgência.
Retomemos o diálogo inicial: “Disse Deus [a Adão]: ‘Quem te deu a conhecer que estavas nu? Terias comido dessa árvore da qual te proibira de comer?’”. Primeiro sentimento, primeira contradição: já ali se manifestava um estranho mal-estar que levava o homem a esconder-se de Deus, porque perturbado dentro de si próprio. Retenhamos o tópico, que imediatamente nos atinge: algo nos faz assim, inseguros e perturbados diante de Deus que nos procura, por fora e por dentro do nosso coração. Há como que uma limpidez perdida, em ligação com uma ordem não cumprida: “Terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira de comer?”.
Como existe também, mal confessada, a desresponsabilização com que rapidamente nos esquivamos. São sempre os outros os culpados… Digo-o propositadamente assim, no presente do indicativo, porque a alusão bíblica se refere ao tempo todo. Para Adão, seria Eva, senão mesmo o próprio Deus que lha dera por companhia: “A mulher que me deste por companheira deu-mo do fruto da árvore e eu comi”. Como depois, para Eva, seria a serpente: “A serpente enganou-me e eu comi…”. Cadeia interminável de culpas transferidas, que não termina nunca, como não termina hoje em tantas manifestações duma humanidade ferida, da esfera pessoal à mais colectiva e pública.
Mas não nos ponhamos nós de fora, cada um de nós, destas delongas. Escondemo-nos muito de nós mesmos, nas nossas grandezas e misérias, como nos escondemos do “olhar” de Deus, claro demais para as nossas sombras persistentes.
Ficou-nos a promessa, apesar de tudo, no proto-Evangelho que Deus enunciou à serpente: “Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela. Esta te esmagará a cabeça e tu a atingirás no calcanhar”. Palavras misteriosas, em que a inspiração divina levaria o escritor a ultrapassar-se no entendimento delas. Palavras que ressoaram por muito tempo, até se cumprirem de modo tão inédito naquele dia de Nazaré da Galileia, como também ouvimos: “Tendo entrado onde ela estava [a Virgem Maria], disse o Anjo: ‘Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo’”. Perturbada ficou ela, continua o texto, mas não da perturbação de quem se esconde de Deus. Rende-a, pelo contrário, e sem qualquer resistência da sua parte, à inaudita proposta divina.
Quem esquece a Deus, de si mesmo se esquece; e do que só pode ser com Deus, vida absoluta. Quem acolhe a Deus, a si mesmo se deslumbra, e assim Maria, na conivência integral com que termina o diálogo: “Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra”.
Do “não” genesíaco, a contradição do mundo; do “sim” mariano, a recriação das coisas em Cristo. Essa mesma que Paulo anunciava, finalmente cumprida, magnífica na forma e no fundo: “Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto dos Céus nos abençoou com toda a espécie de bens espirituais em Cristo”. Mas, para Cristo acontecer e nós próprios acontecermos em Cristo, Deus preparou em Maria uma nova terra em que aparecesse a humanidade nova. Esses “os desígnios d’Aquele que tudo realiza conforme a decisão da sua vontade”. E da vontade do Pai, aceite e cumprida no Coração Imaculado de Maria, nascemos nós, os baptizados, “para sermos um hino de louvor da sua glória”.
É disto mesmo que se trata, bem vistas as coisas, caríssimos cristãos e caríssimos ordinandos de diácono. Trata-se de estarmos diante de Deus como esteve Maria, prontificados pelo baptismo como ela previamente estava pela sua Imaculada Conceição. Límpidos e não esquivos, disponíveis e crentes, acolhendo com Ela a vontade do Pai, para que a obra de Cristo prossiga no mundo.
Acreditamos e acreditemos ainda mais. Diga-se de cada um de vós, caríssimos ordinandos, o que Isabel disse de Maria, que era bendita por acreditar no que lhe fora dito da parte do Senhor (cf. Lc 1, 45).
Nunca haveria Natal se Maria se ficasse por compreensíveis conjecturas humanas no momento da Anunciação. Mas o seu coração não tinha mácula de descrença nem mancha de dúvida, diante da grandeza de Deus e dos seus desígnios. Diante da simplicidade de Deus, diríamos, pois onde só há misericórdia as possibilidades são infinitas: em Deus, amar é poder. Assim com Maria, para que Cristo fosse possível na humanidade que ela resumia e oferecia.
– Imaginais, caríssimos irmãos e irmãs, imaginais, caríssimos ordinandos, o que poderá acontecer neste nosso mundo, tão contraditório realmente, se participardes na fé de Maria, para que também por vós continue o Advento de Cristo, com toda a força da sua verdade, todo o fulgor da sua beleza e toda a aplicação da sua caridade?!
Daqui a momentos, caríssimos ordinandos, uma soleníssima oração e a imposição das mãos hão-de consagrar-vos como “sacramentos”, sinais vivos e actuantes da diaconia de Cristo à Igreja e ao mundo. Envolvidos por esta assembleia litúrgica, em que a maternidade de Maria de algum modo se assinala, iniciareis um ministério bem conexo com o mistério que hoje celebramos. A primeiríssima graça que inteiramente a predispôs para nela incarnar o Verbo de Deus, prolongar-se-á em vós, para incarnardes a Palavra em resposta a todas as pobrezas do mundo.
O nosso mundo, geral ou mais próximo, debate-se hoje com graves problemas de vida e sobrevivência. Difícil é a subsistência básica de muitos e de famílias inteiras; difícil é a vida laboral, indispensável ao sustento e à realização de cada um; perigosa é também a disposição corrente para ganhos rápidos e satisfações fugazes. Assim era há dois mil anos, como antes e depois: “comiam e bebiam, compravam, vendiam…” (cf. Lc 17, 28), sem realmente dar por nada. Mas nós estamos aqui, caríssimos irmãos e ordinandos, porque “demos por isso”, demos por quanto sucedeu no Coração de Deus e no Coração de Maria. Reconhecemos em Cristo a resposta de Deus e com Maria dizemos: “Sim!”.
Sim à esperança possível e activa, até para reconstruir a sociedade no âmago das suas motivações e práticas. Sim à caridade aplicada, para que não falte a ninguém o sustento e o ânimo para viver e conviver. Sim à autêntica beleza e ao contentamento perdurável, que só se alimentam com a verdade de Deus e da humanidade segundo Deus, respeitando a sua presença e prioridade absoluta.
Permiti-me, na circunstância, duas alusões ainda. A primeira à cimeira de Copenhaga, para uma ecologia inadiável. Quem acolhe e respeita o mundo como criação divina confiada ao homem, tem motivações reforçadas para fruir sem desperdiçar e para desenvolver sem destruir energias e equilíbrios indispensáveis ao presente e ao futuro. Neste sentido, Maria está certamente com todos os que em Copenhaga queiram salvaguardar a criação. Escreve-o incomparavelmente Santo Anselmo no Oficio de Leitura desta solenidade, juntando a criação e a nova criação das coisas em Cristo, como aconteceu através de Maria: “O céu, as estrelas, a terra, os rios, o dia e a noite, e tudo quanto está sujeito ao poder ou ao serviço dos homens se alegram, Senhora, porque, tendo perdido a sua antiga nobreza, foram em certo modo ressuscitados por meio de Ti, e dotados de uma graça nova e inefável. […] Deus, que criou todas as coisas, fez-Se a Si mesmo por meio de Maria. E deste modo refez tudo o que tinha feito. Ele, que pôde fazer todas as coisas do nada, não quis refazer sem Maria o que tinha sido arruinado. Por esta razão, Deus é o Pai das coisas criadas, e Maria a mãe das coisas recriadas”.
Maria – com o título da sua Assunção, em que gloriosamente culmina a sua Conceição Imaculada – é também padroeira da nossa Diocese do Porto e certamente se alegra connosco pelo anúncio da visita do Santo Padre Bento XVI no próximo 14 de Maio. Estaremos na altura em plena Missão 2010, que outra finalidade não tem senão anunciar aos nossos contemporâneos a presença viva e restauradora do mesmo Cristo que Maria nos deu. Será a felicíssima circunstância de unir Maria e Pedro, carismas essenciais e complementares para a vida e o testemunho da Igreja – Missão. Como lembrava outro Papa que também nos visitou – João Paulo II, na Carta apostólica Mulieris Dignitatem, nº27 -, “… na hierarquia da santidade, precisamente a ‘mulher’, Maria de Nazaré, é ‘figura da Igreja’. Ela ‘precede’ todos no caminho rumo à santidade; na sua pessoa ‘a Igreja já atingiu a perfeição, pela qual existe sem mácula e sem ruga’ (cf. Ef 5, 27). Neste sentido, pode-se dizer que a Igreja é conjuntamente ‘mariana’ e ‘apostólico-petrina’”. – Obrigado, Senhora nossa, porque a vinda do Santo Padre não é alheia ao vosso patrocínio. Bem-vindo, Santo Padre, porque na Cidade da Virgem nos confirmareis em missão!
– Caríssimos ordinandos: é destas realidades e destes divinos auxílios que sereis sinais e ministros na Igreja e no mundo. Por entre as expectativas e os desgastes que são comuns a toda a existência humana, acolhei-vos sempre ao Coração Imaculado de Maria. Aí encontrareis refúgio e ânimo para prosseguir ou recomeçar, na definitiva alvorada do mundo.