D. João é o 39º bispo da Diocese de Angra e reclama a relevância para a Igreja no arquipélago. Natural da Diocese de Coimbra, chega aos Açores como um “pobre Lavrador” que quer “conhecer longamente”, “ser açoriano com os açorianos”, “gerar comunhão”, “convocar para a participação”, “valorizar a capacidades de cada um”, “a caminhar todos no mesmo sentido”.
Agência Ecclesia – Após a nomeação para bispo coadjutor de Angra, no dia 29 de setembro, que proximidade foi criando em relação aos Açores?
D. João Lavrador – Perante o chamamento da Igreja, no momento, digo prontamente ‘sim, eu vou’. Depois fico a interiorizar o que o chamamento me quer dizer e ao que a resposta me obriga, o que aconteceu em várias fases.
Primeiro fiquei perplexo porque não me sinto profeticamente capaz, uma vez que a missão vai ser muito diferente da que tenho tido até agora, tanto na vida presbiteral na Diocese de Coimbra como na equipa episcopal da Diocese do Porto, onde o bispo está à frente e ampara o nosso trabalho. Agora vai ser diferente, embora tenha a graça de contar com o senhor D. António Braga, que estimo muito e desejo que esteja muito tempo!
Surge depois o sentido da fé, o reconhecer que se Deus chama também dá a graça para podermos executar essa missão.
Surge uma segunda etapa, a nível interior: começar a sonhar com os que ainda não conhecemos. Eu não conhecia praticamente nada dos Açores. Tinha ido lá há anos, a S. Miguel, a convite de padre que foi meu colega no Seminário de Coimbra, e há dois anos estive no Pico, numa maravilhosa manifestação de fé em Jesus Cristo, no Santuário do Senhor dos Milagres, e não tive mais contacto.
Comecei a reconhecer que as pessoas a quem eu sou destinado já me pertencem. Na oração, na minha meditação e no sentido da missão a que sou chamado, faço esta transição: estar ainda ligado à Diocese do Porto, já a sentir a saudade de deixar tanta gente que contactei, e, ao mesmo tempo, estar na ansiedade de encontro com os que estão do outro lado e a quem eu me quero integralmente dedicar.
Por último, a proximidade de encontro com diocese que me vai acolher e a quem me quero dedicar. Começa-se a sentir a alegria e o entusiasmo da mudança de vida, uma vez que são formas de estar e de viver diferentes, e da aprendizagem com o povo a ser da sua cultura, uma vez que tem caraterísticas próprias à semelhança de outras regiões do país, e da integração na Igreja que vou apreciando na sua profundidade e na sua religiosidade, nomeadamente a centralidade a Jesus Cristo e a devoção profunda ao Espírito Santo. Começo a sentir-me entusiasmado por este trabalho, assim me queiram acolher nas minhas limitações.
Um bispo de fora
AE – É o 39º bispo da Diocese de Angra, onde só dois foram açorianos. O facto de não ser açoriano é uma vantagem ou desvantagem?
DJL – Não sei se é vantagem ou desvantagem, é necessário perguntar aos cristãos e aos cidadãos dos Açores. À partida, sendo açoriano, um bispo tem meio-caminho andado: conhece a cultura, está entrosado com os costumes, há uma parte da “escolaridade” que já está feita. Da minha parte estou a zero, com uma “escolaridade” toda a fazer. Espero ter alguma capacidade de aprendizagem e muita paciência dos que me vão ensinar. Eu vou com muita vontade de aprender, quero inserir-me na cultura açoriana, ser açoriano com os açorianos e pertencer à Igreja dos Açores com todas as suas virtualidades e riquezas, assim me aceitem para integrar a Igreja nos Açores e a cultura açoriana. Vou numa disposição de diálogo, para colaborar com as minhas capacidades e limitações, na avidez de aprender e sobretudo com um grande desejo de servir! Vou para servir!
Queria unir e convocar para, no respeito pelas instituições e pela sua autonomia, podermos caminhar em conjunto para encontrarmos o melhor bem para as pessoas dos Açores.
AE – A diocese está dividida em nove ilhas. Uma caraterística única, que constitui um problema, na sua opinião?
DJL – Em primeiro lugar digo que a diocese está unida por nove ilhas, não dividida… O mar tanto divide como une e para mim vai unir. Farei tudo para que o mar possa unir! A amizade é que une. Quero criar em cada açoriano um amigo e que eles me tenham como tal, se eu o merecer!
Olhando para a realidade e sonhando, tenho uma perceção que aquelas nove ilhas dão para “saltar” de uma para as outras. Tal como fazíamos em crianças em determinados jogos, dá-me ideia que não há obstáculos. Talvez demore meia hora, um dia, mas também me vai obrigar ao que não estou muito habituado: “para, atende as pessoas, está com elas e não estejas a pensar que vais já para outro lado a correr”.
AE – E aí condição geográfica acaba por ser uma ajuda?
DJL – Penso que sim. Foi Deus que fez a geografia. E, se a fez, é porque está bem feita.
Ilhas num arquipélago
AE – Nos Açores há muito a ‘ideia de ilha’, separadas uma das outras. O facto do bispo não ser de nenhuma delas pode ser um fator de união do arquipélago?
DJL – Procuro ir com a minha humanidade, despertando a humanidade dos que lá estão. Os que estamos nas diversas ilhas – e eu estarei em todas porque sou bispo de todos por igual – somos humanos.
Parece-me que cada ilha terá a sua configuração própria, tanto geográfica como humana. Terá a sua religiosidade, as suas tradições, a sua forma de viver e a sua cultura. O que se pode tornar numa riqueza! Nós não podemos olhar para o que é a realidade de um determinado povo como um obstáculo à sua comunhão com os outros.
À medida que for aprendendo a realidade concreta dos Açores, quero ter sempre como valor a conjugação das diferenças e o enriquecimento das variedades. Nós não fazemos nada na Igreja se a convivência não for sã, não for humana, não for amiga, estando todos a trabalhar para o bem comum, onde todos nos sintamos diferentes, a valorizar a capacidades de cada um, mas a caminhar todos no mesmo sentido.
AE – Os indicadores da diocese informam que os serviços funcionam de determinada forma na ilha onde estão sediados e de outra, para pior, nas restantes. Vai ser possível inverter essa tendência e criar mais unidades?
DJL – Os serviços da Igreja?
AE – Sim, da Igreja.
DJL – Eu ainda não conheço verdadeiramente. Vou ter de conhecer. Tive um primeiro contacto com os serviços centrais em Angra, sei que tem alguns núcleos de dinamização em S. Miguel, particularmente a nível de instalações e apoio a trabalhos pastorais, e também nas outras ilhas.
Penso que as estruturas têm de estar ao serviço das pessoas e dos serviços, dos projetos pastorais que se procurem, atendendo à realidade concreta onde nos situamos.
A minha primeira prioridade é conhecer e conhecer longamente! Eu não tenho pressa para tomar decisões, porque vão continuar a ser do senhor D. António e muito bem! Quando for chamado a ser eu a tomar as decisões, certamente já estarei mais esclarecido e terei ocasião de, depois de conhecer bem e fazer um trabalho de comunhão com todos, ver o que é necessário valorizar, permanecer ou alterar.
As estruturas estão sempre em evolução consoante a realidade pastoral que formos projetando.
Eu vou para uma diocese que já tem perto de 500 anos. E quando de lá sair, ela vai continuar!
Eu vou inserir-me na Igreja que já tem esta belíssima história e espero que, ao deixá-la, possa vir com o sentimento de dever cumprido e de entrega do melhor de mim próprio à Igreja, como tem sido a sensação no Porto e noutros locais por onde tenho passado. Talvez cansado, mas dizendo que fiz tudo o que pude para gerar comunhão, convocar para a participação e que as decisões sejam de todos os diocesanos, não de uma só cabeça.
O seminário é para manter
AE – Como carateriza a Diocese de Angra?
DJL – Ainda conheço pouco. À medida que fui conhecendo, verifico que tem uma prática religiosa bastante forte, muito acima da média de Portugal no seu todo. Tem um clero muito ativo, muito bem formado, a nível espiritual e académico, numa dedicação muito grande. Verifiquei, pelo contacto de muitas pessoas, que têm leigos muito bem preparados e entusiasmados na missão que lhe é própria, nas áreas da sua relação com o mundo, onde devem estar. Isto dá-me um entusiasmo muito grande! Isto quer dizer que os bispos, seja o senhor D. António Braga e os que o antecederam, na pessoa deles e com as estruturas diocesanas, fizeram um trabalho extraordinário.
Ter o seminário é um valor muito grande. Dizemos que é o “coração da diocese”, mas precisa de estar vivo. E na Diocese de Angra o seminário está vivo, com os seus professores e os alunos, e os que integram a comunidade, como verifiquei…
AE – Na deslocação aos Açores após a nomeação foi lá que esteve…
DJL – Sim, estive com o Seminário na minha deslocação aos Açores.
Trata-se de um valor a nível vocacional, porque é um sinal para toda a diocese da necessidade da vocação sacerdotal, que implica todas as outras vocações, tanto à vida consagrada como ao matrimónio, e nível diocesano porque todos os padres que são chamados a uma formação superior para estar no seminário e dar aulas, estão a valorizar a diocese.
Do seminário, enquanto um centro de estudo e reflexão da teologia, pode lançar-se uma ponte, que está lançada e pode ser continuada, com o mundo da cultura, nomeadamente a universidade dos Açores.
AE – Quer isso dizer que o Seminário é para manter…?
DJL – Farei tudo o que puder para o manter. Sou um apaixonado dos seminários e sei o valor que eles têm, até ao limite. Reconheço também que, se o número de alunos não o justificar ou diante de outras circunstâncias, temos de nos render às nossas limitações. Estou convencido de que o que Deus quer é que cada diocese tenha o seu seminário. E continuaremos a rezar para que tenhamos vocações para que isso aconteça.
AE – Garantindo que os estudos no Seminário de Angra tenham equiparação a um curso superior?
DJL – Esse é um trabalho que eu quero dar continuidade: ter a acreditação dos estudos, porque é uma questão de justiça para a instituição. Julgo que a Universidade Católica também terá todo o gosto de ajudar dioceses que, tendo caraterísticas muito próprias, se valorizem estejam numa comunhão cada vez maior com os centros de decisão.
AE – Isso implica apostar em recursos humanos para a especialização académica, nomeadamente o doutoramento…
DJL – Queria agradecer muito (ao senhor D. António Braga e anteriores bispos, assim como aos que com ele colaboraram nos seminários, ao vigário-geral, cabido, colégio de consultores, etc, porque encontrei nesta diocese o bispo sempre em comunhão com os órgãos de aconselhamento diocesanos, o que é muito bom) a valorização do clero e dos membros ativos na Igreja, dos leigos, para estarem à frente dos diversos trabalhos, instituições, movimentos e grupos diocesanos. Foi um trabalho maravilhoso que augura um bom futuro e – se Deus me der essa graça – me vai ajudar muito à frente da diocese.
AE – O clero é maioritariamente jovem, em número suficiente para as 165 paróquias da diocese. Em todo o caso, o número de seminaristas diminui. O que é necessário fazer para inverter essa tendência?
DJL – A questão das vocações é de consciência diocesana, comunitária e familiar. Estamos habituados a ter um trabalho vocacional, dirigido sobretudo ao setor da juventude. Mas penso que só se fará um trabalho de acordo com o que Deus pede à sua Igreja quando todos, todos mesmo, estiverem verdadeiramente interessados e sintonizados com esta questão: que todo o cristão reconheça que, ao ser cristão, é chamado por Jesus Cristo a uma missão, ao sacerdócio, à vida consagrada ou ao matrimónio. E cada um é chamado a responder generosamente a este convite de Jesus Cristo. Isto tem de entrar nas dinâmicas das catequeses, da formação da juventude e da oração, onde a questão da vocação é auge de todas as preocupações da Igreja.
AE – Tem de haver cultura vocacional?
DJL – A todos os níveis! Penso que a partir daí Deus nos falará, tanto na qualidade vocacional, com pessoas conscientes da sua vocação, seja sacerdócio e noutras vocações, como no número.
Cristo no centro da religiosidade popular
AE – O alto índice de prática dominical é um bom ponto de partida?
DJL – Sim, com as caraterísticas dos Açores, com as devoções açorianas, que têm Jesus Cristo no centro e são por isso as melhores, e que colocam a ação no Espírito Santo, que impera, aconselha, fortalece, dá ânimo, ensina, dá inteligência, provoca a sabedoria e, sendo amor de Deus presente nos ser humano, o faz reconhecer o outro como irmão e o leva a partilhar. É por isso que nos Impérios do Espírito Santo está sempre o espírito da partilha, o sentido de que não haja ninguém que não tenha a sua vida satisfeita nas necessidades básicas, nomeadamente a alimentação, e a alegria.
Ter uma prática religiosa, ligada a esta circunstância da devoção e piedade popular cristocêntrica, ajuda-nos imenso no nosso trabalho.
AE – Para além dos Impérios do Espírito Santo e do Senhor Santo Cristo, os Romeiros na Quaresma são muito marcantes, na Quaresma. Tratam-se de realidades remetidas para a religiosidade do povo ou estão assimiladas por toda a diocese, pela dinamização do catolicismo na diocese?
DJL – A centralidade de Jesus Cristo, nomeadamente no Senhor Santo Cristo dos Milagres, está em toda a Diocese de Angra e na diáspora, nomeadamente nos EUA e no Canadá (e quero também estar atento à diáspora, porque também são açorianos e quero tê-los como diocesanos e terei muito gosto em os visitar, logo que seja possível). A relação e a devoção ao Espírito Santo também está presente em toda a Igreja açoriana, nas ilhas e na diáspora. Os Romeiros são mais de São Miguel.
Há cerca de 25 anos, quando estive em São Miguel, presenciei em Ponta Delgada a chegada dos Romeiros e sua dinâmica penitencial. Encantou-me!
Para alguns espíritos mais ilustrados poderá chocar tanta penitência e tantos dias. Mas para nós, que reconhecemos o que é o sentido penitencial em caminhada e o processo de itinerário quaresmal, vemos aí uma realidade muito rica. É um valor extraordinário.
AE – Podemos falar da necessidade de evangelizar cada um desses setores da religiosidade popular açoriana?
DJL – Mais do que religiosidade, a piedade.
A piedade é boa, faz parte da relação entre o religioso e a cultura de cada tempo, de cada povo, da sua sensibilidade e genuinidade da própria fé.
Todo o religioso não pode ser estático. A religiosidade, o sentido do divino que muitas vezes se deturpa, tem muitas purificações a fazer.
A piedade, sendo uma interligação entre o cristão e a cultura, tem a sua expressão cultural e tem de ter a evolução que a cultura lhe vai colocando. Tem de ter a iluminação que, a partir da Igreja, da renovação conciliar e da fundamentação da Sagrada Escritura, vai ajudando a fermentar a cultura, que vai absorvendo os valores do Evangelho, vividos a partir da realidade concreta.
AE – Para o bispo, os líderes das comunidades, os párocos, a piedade é uma mais-valia para a dinamização pastoral na diocese?
DJL – É! O que é permanente é o que marca a cultura. Nós não temos dado devido valor à cultura, porque ela vai entrar em dinâmica com o Evangelho, sendo veículo para que ele chegue, pessoal e comunitariamente, e o próprio Evangelho vai fermentar e purificar a cultura.
Temos hoje muitas realidades que são anti-humanas e não respeitam a dignidade da pessoa humana porque falta o Evangelho. O Evangelho dignifica! É necessário que o Evangelho entre na cultura.
Neste momento estamos a correr o perigo de ficar apenas com um sentido cristão ritualista, separados da interferência na cultura e na sociedade, sobretudo nos locais de decisão. Isso compete essencialmente aos leigos e é fundamental porque é aí que se forja a cultura, a olhar para uma história que há de manifestar uma civilização que é humana ou não é humana. E para ser humana o Evangelho tem de lá estar.
Cultura, o maior desafio
AE – Qual o maior desafio colocado à Igreja Católica?
DJL – O maior desafio vem da cultura.
Há uma glória que os Açores têm e que era bom que o mantivessem.
A nossa cultura está caraterizada pela modernidade e pós-moderna, marcada pelo choque entre o racional e a fé que levou a uma lucidez maior na relação entre a fé e a razão, a uma indiferença em relação à fé que criou muitos dramas interiores em muita gente que fica na questão e não chega à luz que a fé traz.
Os Açores, no que toca à cultura moderna em Portugal, foram pioneiros. Desde o século XIX e passando pelo primeiro quartel do séc. XX, encontramos a provocação do pensamento na arte poética, na literatura e no pensamento especulativo, que levou ao confronto com a fé, com a cultura caraterizada pelo sentido religioso. E vemos que, no contexto do desenvolvimento político-social do primeiro quartel do séc. XX, isto transformou-se numa atuação de carater público e político. Basta dizer que na I República há uma intervenção de personalidades dos Açores.
Digo que isto é glória porque é uma realidade que a Igreja deve aceitar hoje, na serenidade do encontro e do desafio que vem do pensamento, da esfera pública, de uma cultura que capacite a Igreja para dialogar, oferecendo as razões da sua esperança e as fundamentações pelas quais a sociedade e a cultura as possa adquirir.
Por outro lado, estamos num tempo de muitas transformações. O que o Concílio Vaticano II disse há 50 anos na Constituição Gaudium et Spes, ao afirmar que podemos chamar a esta época uma época nova, com uma nova cultura e civilização, não é letra morta, é realidade. A Europa sentiu-a e sente-a progressivamente; Portugal no seu todo está a sentir; e os Açores sentem e vão continuar a sentir. Todos os intervenientes da Igreja, desde os leigos, que estão na primeira linha do diálogo com o mundo, os sacerdotes, os que têm funções dentro da hierarquia, o bispo, devem atuar, conscientes de que temos algo a oferecer a esta realidade de rutura cultural e à nova civilização que se está a querer desenhar e que, no pensar de São João Paulo II, deve ser uma ‘civilização do amor’.
AE – Os Açores hoje têm a aprender com o que foram ativos maiores da religiosidade açoriana nos inícios do séc. XX, no diálogo com a cultura?
DJL – Sim, porque teve algum drama, excessos, mas foi uma grande escola de aprendizagem para a Igreja. O que o Concílio veio oferecer como metodologia para a ação da Igreja no mundo já lá estava presente. Os grandes movimentos que fermentam uma forma de estar e vão culminar no Concílio, já lá estão desde o séc. XIX e na primeira metade do séc. XX: os grandes movimentos de leigos, a consciência laical, os grandes debates, conferências congressos que aparecem, o grande desafio ao apostolado organizado, a ilustração do clero, nomeadamente no Colégio Português em Roma no final do séc. XIX e que teve reflexos na renovação dos seminários em Portugal.
AE – Quer isso dizer que o catolicismo nos Açores foi percursor do Concílio Vaticano II?
DJL – Estou convencido que sim. Tem marcas que ajudou a respostas harmónicas e pedagógicas por parte do Concílio.
Teoricamente é necessário um título diocesano
AE – No diálogo cultural e na intervenção da construção das sociedades, que papel deve ter a presença da Igreja Católica na comunicação social?
DJL – Nós estamos no mundo da comunicação, seja na construção da opinião, seja no estabelecer de relações.
Apercebo-me que a Diocese de Angra tem feito um esforço muito grande não só na imprensa, com jornais nas várias ilhas, também com nostalgia de um diário da Igreja, que já teve, e que pode ser equacionado no futuro.
AE – É necessário um título diocesano?
DJL – Teoricamente digo que sim. Depois depende das circunstâncias. É uma questão a equacionar. Tudo o que se puder fazer pela comunicação social, até por que estou há longos anos com ‘devoção’ a esta causa, deve ser feito. Mas com os pés assente na terra!
A comunicação deve ser feita em articulação entre os vários meios, não só por um. A comunicação tem de ter em conta o visual, sobretudo a televisão, conjugando-o com as novas tecnologias, a internet, as novas redes… Tudo tem de estar articulado. E tem de estar em comunhão, o que exige um passo: a Diocese de Angra não pode ser uma ilha no contexto da Igreja no seu todo, e sobretudo a Igreja em Portugal. Tem de haver sinergias entre os órgãos nacionais e os diocesanos.
Nos Açores, a diocese tem um site invejável, muito bem feito, feito por pessoas competentes. E tem feito um esforço interessante de formação e de criar pontes com outros órgãos e outras instituições da cultura.
AE – Disse há pouco que a Diocese não pode ser uma ilha em relação ao todo nacional. Não terá primeiro de reunir as várias ilhas?
DJL – Aí a comunicação tem um valor extraordinário porque o primeiro sentido de comunhão entre as várias ilhas dos Açores é feito pela comunicação social: é a mais rápida, espalha-se imediatamente com capacidade de emitir opinião, que não tem de ser unânime, mas de comunhão entre todos.
Nós nunca podemos descurar as duas vertentes, a interna e a externa. Mal de nós se estivermos a pugnar por estabelecer comunhão, unidade e uma comunicação social para dentro da própria Igreja e não atendermos à sua relação com o todo da Igreja e o todo da sociedade. Sou apologista de uma comunicação social de inspiração cristã e que reflita os grandes acontecimentos e que ajude a sociedade a acertar critérios e a valorizarmo-nos mutuamente.
A primeira palavra para os que não têm voz
AE – A Igreja nos Açores, como no todo nacional, é muito afetada pelas questões da pobreza. Não cabendo á Igreja Católica definir um programa político que faça face aos problemas sociais, de que forma pode intervir?
DJL – A Igreja deve ter a primeira palavra na defesa daqueles que não têm voz, dando-lhes voz! O Papa Francisco tem ajudado muito a Igreja a descomplexar-se em relação a esta realidade: o pobre tem de ter o primeiro lugar e tem de lhe ser dada voz; os pobres não podem esperar. O que traz consequências! Primeiro, temos de verificar as várias facetas da pobreza, que são uma vergonha para a Igreja. Depois, há uma realidade teológica da pobreza: o pobre é para nós uma realidade muito sensível da presença de Jesus Cristo. Tenho sempre presento o que afirma o Evangelho: como Jesus diz ‘isto é o Meu Corpo’, na Última Ceia, também refere ‘tudo o que fizerdes a este mais pequenino, a Mim o fizeste’. Quer isto dizer que há uma relação: todo o que celebra a Eucaristia tem de estar muito desperto para ver Jesus Cristo no pobre, não para o continuar a ser, miseravelmente, mas para dizer que o pobre tem força, tem voz, pode ser protagonista, o que implica não ficar na assistência, mas ajudar a encontrar os meios para a sua dignidade.
O pobre diz à sociedade que o ser é mais importante que o ter e que há uma fraternidade, um sentido de relação de irmãos que não está feita.
Só no momento em que sentirmos que o outro nos está a provocar pela sua situação concreta e nos chama à partilha dos dons que temos estamos a encontrar-nos com a fundamentação fraterna que só é possível acontecer em Deus Pai.
O pobre de Deus é o maior de todos os pobres. E só quando nos encontramos em Deus encontramos razões profundas para a fraternidade.
AE – Em todo o caso, diante de focos pobreza é preciso uma intervenção?
DJL – É necessário uma intervenção imediata, não podemos esperar por programas ou projetos. É necessário cultivar o sentido de vizinhança: o que se puder ser resolver na família é aí que deve ser resolve, ou na paróquia, como dizia o padre Américo, é aí que deve ser resolvido. Há também realidades e sobretudo causas da pobreza que só a nível da sociedade é possível resolver, o que exige união e apelos para que o poder político.
Inverno açoriano na demografia
AE – Como em toda a sociedade europeia, os Açores têm algumas ilhas com a população muito envelhecida. Como contrariar o inverno demográfico em curso?
DJL – Não conheço toda a realidade dos Açores, que serão muito diferentes de ilha para ilha.
Estamos com uma diminuição de nascimentos, que tem repercussões na sociedade e no bem primeiro da sociedade, que é o ser humano.
Penso, antes de mais, que esta é uma questão cultural. E para modificar esta mentalidade anti natalista, anti vida, há um medo latente que tem de ser eliminado. Só através da esperança alguém provoca novas gerações. Aí a Igreja tem um papel muito importante a desempenhar, assim a deixem levar as razões de esperança às populações. É necessário criar uma nova cultura de promoção da vida, de gosto pela vida que vale a pena ser vivida.
Depois há um conjunto de fatores circunstanciais que ajudam ou não, nomeadamente o trabalho, a assistência, o favorecimento ou não da natalidade pelos poderes públicos…
É necessário também olhar para a família e não para o indivíduo isoladamente. A família é uma realidade e as instituições têm de olhar para a família no seu todo: o pai, a mãe, os filhos, netos, tios…
Quando se pensa no ser humano, homem e mulher, deve pensar-se no sentido da família. E todas as leis, laborais, de assistência social, do Serviço Nacional de Saúde e da educação, que sejam feitas a partir da família.
Igreja/política
AE – Que relacionamento com as instituições públicas e governamentais? Até porque há um dado curioso: D. António Sousa Braga chegou aos Açores, há 19 anos, num tempo de mudança de ciclo político… Em 2016 também há eleições nos Açores. Acha que pode acontecer alguma mudança também?
DJL – Os cidadãos é que dirão. A Igreja tem de ter a sua marcha, não está desatenta à realidade política e tem de ter uma palavra iluminadora. Nesse sentido, não abdicarei do que deve significar a palavra iluminadora, mas nunca me peçam para ter qualquer tipo de particularidade de orientação partidária. Merecem todos igual respeito. E quero dizer isto com muita convicção: todos os partidos merecem igual respeito e trabalharei com todos, na autonomia do poder político e das instituições sociais. Peço que me ajudem a ter autonomia e a trabalhar dentro do que é específico da Igreja.
Dizer ‘autonomia’ é proporcionar a possibilidade de atuação e de cidadania. Assim como eu julgo que as instituições públicas têm para a Igreja, em sentido de colaboração para o bem comum, uma tarefa a desempenhar, também a Igreja é chamada a estar no espaço público para oferecer o que ela tem para o bem comum e para o bem das pessoas.
As mudanças que aparecerem dependem do que as pessoas quiserem fazer, são respeitadas integralmente e são amadas da mesma forma.
AE – D. António de Sousa Braga afirma que quem pode conjugar melhor a ‘ideia de arquipélago’ é o a Igreja Católica. Concorda?
DJL – Só por vir do D. António já concordo. Tenho por ele uma admiração muito grande pela sua inteligência, pela sua santidade e experiência.
Eu penso que esse é o serviço! A igreja está no meio do mundo para servir esse sentido de unidade. Por isso, não faz mais do que a sua obrigação. E se alguma coisa a Igreja pode fazer com tanta ação, com tantas formas de estar, é a unidade.
A Igreja assenta os seus fundamentos na unidade da pluralidade, no Pai, no Filho e no Espírito Santo: unidade e comunhão no amor e pluralidade nas três pessoas da Santíssima Trindade. A Igreja é reflexo disso mesmo. A partir do presbitério, da vida consagrada, da sua relação com os leigos, de tudo o que é a vida eclesial nas comunidades, espero que seja reflexo da unidade e da comunhão e ao mesmo tempo da beleza que a variedade traz. Por isso todos têm lugar na comunidade cristã. E, no que diz respeito na sociedade do seu todo, que ela seja servidora dessa unidade.
Ilhas são dioceses de pleno direito
AE – Objetivos a concretizar no Jubileu da Misericórdia?
DJL – É uma graça muito grande iniciar nos Açores o Jubileu do Ano da Misericórdia.
A Igreja está numa aprendizagem cada vez maior de algo que já tem milénios, atravessa a História da Salvação. Conhecer Deus é vê-Lo a partir da misericórdia. Ele olha para tudo o que criou e sobretudo para o ser humano com misericórdia.
A Igreja tem de aprender que é chamada da viver a misericórdia e, através dela, incorpora o que o ser humano tem de maior, mais nobre, a inteligência, a verdade, a relação com os outros, o sentido da justiça, e sobretudo incorpora o amor. Tudo está na misericórdia!
A Igreja, ao exprimir a misericórdia na sua atuação, está a fazer um serviço extraordinário para que a sociedade viva a unidade, a comunhão e se sinta um todo.
Um outro aspeto…
Penso que tudo isto tem de extravasar do arquipélago dos Açores. E trata-se de uma interpelação à Igreja em Portugal (permitam-me os outros senhores bispos, na Conferência Episcopal): penso que não temos a consciência verdadeira de que a Igreja em Portugal é um todo e os Açores – e permitam-me que fale também na Madeira, porque é outra realidade de entrada – são de pleno direito e com a mesma dignidade na Igreja em Portugal.
AE – As dioceses das ilhas são esquecidas?
DJL – Pela linguagem e pela forma como se reage, dá-me a entender que há uma dupla realidade. Digo-o com muita humildade e com muita simpatia por todos, mas tenho de o dizer. Quero deixar esta tónica porque vou trabalhar para que haja um sentido de unidade e comunhão.
AE – O que está em causa?
DJL – É uma questão de tratamento. Aqui também pode acontecer, entre o litoral e o interior, entre o Norte e o Sul, se calhar estamos na mesma situação.
Há um trabalho a fazer para nos sentirmos todos mais solidários, mais irmanados uns com os outros e a sentir o que está na génese do episcopado: somos responsáveis por todas as Igrejas. Claro que cada um tem a responsabilidade própria pela igreja local que lhe está confiada, mas ela é de todos. Eu irei, pelo menos através da voz, reclamar isto mesmo.
Um pobre ‘Lavrador’
AE – Chega aos Açores quase ao mesmo tempo da Imagem Peregrina de Nossa Senhora de Fátima. É uma oportunidade para conhecer a diocese?
DJL – É uma ótima e uma grande graça. Não posso ter melhor companhia para ir, de ouvidoria em ouvidoria, conhecer a diocese. Será uma ótima ocasião para conhecer a realidade da diocese, mesmo sem ser em profundidade porque a passagem é relativamente rápida. É uma primeira aproximação muito interessante porque me vai ajudar imenso. E na companhia de Nossa Senhora. Se eu tenho de aprender alguma coisa é com quem está mais próxima de Jesus, Nossa Senhora.
Espero que Nossa Senhora se lembre deste pobre ‘Lavrador’ que está entusiasmado em cultivar a Messe do Senhor. Que ela se lembre e derrame as suas graças sobre mim e sobre a diocese. É isso que vou implorar: que ela me ensine os caminhos desse sim, generoso e grande, capaz de transformar o mundo e esta terra onde vivemos.
Entrevista por Carmo Rodeia (sítio Igreja Açores) e Paulo Rocha (Agência Ecclesia)