Igreja/Sociedade: «Podermos transformar o medo daquele que é diferente – o medo do pobre – numa oportunidade de encontro» – Ana Mansoa

A Igreja Católica assinala hoje o Dia Mundial dos Pobres. É uma jornada que nos convida a refletir sobre as estruturas que perpetuam a exclusão, procurando dar soluções concretas. Para falar sobre respostas que procuram ir além da assistência e construir autonomia, é convidada da Ecclesia e da Renascença a diretora-executiva do CEPAC – Centro Padre Alves Correia

Foto: RR

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Estamos a celebrar este Dia Mundial dos Pobres, em 2025, a sua 9ª edição. Para o CEPAC, o que é que isto significa? A pobreza mudou de rosto?

Celebrar o Dia Mundial dos Pobres, e particularmente no ano que estamos a viver, o ano do Jubileu da Esperança, é sempre uma oportunidade que temos, enquanto católicos, enquanto organização católica, de olhar para o outro como alguém que nos dá a oportunidade de viver o Evangelho de forma concreta. Olhar o pobre não como alguém que beneficia da nossa caridade, meramente, mas como alguém que nos dá a oportunidade de vivermos efetivamente aquilo que Jesus nos pede no nosso dia-a-dia.

E é também uma oportunidade de podermos transformar o medo daquele que é diferente – o medo do pobre – numa oportunidade de encontro e numa oportunidade de olhar para o pobre como alguém que precisa de mim, como companheiro neste caminho de encontro com Cristo.

Quando me pergunta se o pobre mudou de rosto, eu gostaria de poder dizer que não, que independentemente da condição social, do país de origem, de dominar ou não o português, não deve condicionar a forma como olhamos para o outro. Acho que vivemos tempos em que se torna urgente pensarmos no olhar que depositamos no encontro com o outro. Durante a pandemia, se as pessoas que nos procuravam eram essencialmente pessoas que estavam à procura de emprego, para além de questões de regularização documental; hoje quem nos procura são na maioria das vezes mulheres, mães solteiras, empregadas, algumas delas até com mais do que um emprego, mas que mesmo assim não conseguem fazer face às suas despesas, e, portanto, é a chamada pobreza envergonhada. São mulheres que querem viver uma vida digna e dar uma vida digna também aos seus filhos, mas que se veem de facto com muitas dificuldades em conseguir fazer face às despesas do dia-a-dia.

 

Vamos falar de uma resposta concreta que se liga à necessidade mais básica, a alimentação. O Projeto RIMES, a Rede Integrada de Mercearias Sociais. O que é que esta mercearia social tem de diferente de um tradicional cabaz alimentar?

De facto falamos de dois projetos. O projeto da Mercearia Sabura, que foi inaugurado em 2021, é uma iniciativa inovadora do CEPAC, que visou na altura poder transformar a entrega do cabaz alimentar numa resposta mais digna, e portanto dando a oportunidade de escolha àquela pessoa e àquela família que muitas vezes recebiam um saco com alimentos que não correspondiam a alimentos que faziam parte da sua alimentação, ou até desconheciam alguns desses alimentos, e portanto aquilo que procurámos fazer foi dar a possibilidade àquela família de poder, dentro do leque de alimentos que nós temos disponíveis, escolher o que melhor se adequa aos seus hábitos, às suas necessidades, aos seus gostos. E fizemos esse caminho em 2021, dando aqui um incremento à dignidade e à autonomia de escolha da pessoa. A criação da Rede RIMES, da Rede Integrada de Mercearias Sociais, é um projeto que foi lançado em outubro deste ano, em parceria com a Fundação Auchan, e que traz aqui o direito à alimentação e a importância que consideramos enquanto entidades que lançaram esta rede, que consideramos que a resposta alimentar carece de uma maior dignidade. Aquilo que nós queremos é poder partilhar boas práticas, partilhar conhecimento entre nós e outras entidades que já têm esta tipologia de resposta, e poder, no fundo, encontrar aqui soluções mais dignas.

 

O projeto foi apresentado com vários parceiros em Lisboa, porquê é que foi tão importante lançá-lo como uma rede integrada?

Precisamente por esta importância de podermos partilhar boas práticas e podermos replicar um tipo de resposta que nós consideramos ser mais digna do que a entrega de um mero cabaz alimentar não personalizado e sem a possibilidade de escolha. E, portanto, aquilo que nós pretendemos é escalar este modelo que dignifica e humaniza a resposta alimentar e poder também, enquanto rede, termos mais força para podermos influenciar políticas públicas na área da alimentação, garantindo o direito à alimentação e à segurança alimentar.

 

Outro grande foco do combate à pobreza é a autonomização a partir do trabalho. Penso que isto é indiscutível. Podemos falar agora de outro projeto, o Baobá 2.0, que arranca em janeiro de 2026. Também foi um projeto premiado e tem o seu foco em mulheres imigrantes, que de certa forma está relacionado ao que nos disse no início. De qualquer maneira, porquê este foco tão específico?

Sim, antes de mais e muito rapidamente explicar por que “Baobá”: é um outro nome para o embondeiro – a árvore do “Principezinho”. E nós, quando olhamos para as mulheres imigrantes que acompanhamos, vemo-las enquanto estas baobás, estas árvores milenares que são capazes de, no tempo da chuva, acolher pessoas dentro da sua grande estrutura e durante o tempo das secas – porque armazenam água no tempo da chuva – conseguem saciar a sede das comunidades que vivem junto dessas árvores.

E as mulheres que nós acompanhamos, para nós, são como estas baobás. São mulheres com histórias de vida de grande superação, de grande sofrimento, de grande superação e muito resilientes. Portanto, são mulheres que muitas vezes vêm para Portugal sozinhas ou a acompanhar os seus filhos que estão doentes e que vêm fazer tratamentos, ou quando vêm em família, são sempre, ou na maior parte das vezes, as que ficam para trás.

Ou seja, nas famílias que nós acompanhamos, na esmagadora maioria das vezes, é o homem que consegue integrar o mercado de trabalho com mais facilidade e a mulher fica em casa a cuidar dos filhos, a cuidar da casa. E, portanto, a sua integração na sociedade, a aprendizagem da língua, a integração na própria comunidade e, posteriormente, a integração no mercado de trabalho, é sempre mais difícil. E daí o nosso foco nestas mulheres.

 

Aliás, é uma experiência que muitos portugueses conseguem relacionar com o que aconteceu com as suas famílias no passado. Eu tenho uma pergunta que tem a ver com alguns termos do projeto que eu achei curiosos. O projeto fala em diagnóstico participado, isto parece-me natural; consultoria de imagem e até teatro playback. Estas ferramentas, porque é que elas são necessárias para encontrar um emprego?

Sim, todo este projeto que foi agora premiado vem de muitos anos também de experiência do CEPAC na área do desenvolvimento de competências para a integração no mercado de trabalho. E, de facto, a nossa experiência foi-nos dizendo que, mais do que desenvolvermos competências técnicas adequadas a determinadas áreas do mercado, era importante preparar estas pessoas para uma sociedade diferente, uma forma de se inserir no mercado de trabalho também diferente e recuperar nelas alguma da esperança, alguma da autoconfiança e da autoestima que muitas destas mulheres perdem ao embarcar nesta aventura que é a imigração.

Esta dimensão da consultoria de imagem vai muito para além da imagem visual da mulher, mas pretende mergulhar – e aqui com mentoria de psicólogos – pretende mergulhar naquela que é a identidade da mulher, muito antes da sua experiência de imigração, recuperar nela toda a sua experiência do país de origem, que muitas destas mulheres tendem a apagar por vergonha ou por considerarem que não é relevante para a sua experiência de trabalho. E, portanto, aquilo que nós queremos devolver a estas mulheres é a capacidade de se olharem ao espelho e se reconhecerem e gostarem delas próprias, porque é essencial para também serem boas profissionais.

 

E isso também garante uma ponte para o mercado de trabalho real?

Exatamente, sem dúvida nenhuma, e aqui associando a consultoria com o teatro playback, onde nós simulamos situações reais de potenciais conflitos no contexto de emprego, de eventualmente, alguma discriminação ou de alguma dificuldade de comunicação, e, portanto, simulamos em contexto controlado aquele que deve ser o comportamento e a reação destas pessoas. E, portanto, o trabalho que depois fazemos é de articulação com as empresas, para também com elas preparar todo o processo de acolhimento e de integração destas pessoas no mercado de trabalho.

 

E como é que estes dois projetos se ligam à missão do CEPAC?

Sim, de uma forma muito bonita e muito linear, porque, de facto, como o Octávio dizia há pouco, quer a alimentação quer a empregabilidade e a habitação são pilares para a dignidade de qualquer vida humana. E o CEPAC, quando foi criado, e o nome de Padre Alves Correia traz-nos a memória deste grande democrata e deste grande defensor de direitos humanos, traz-nos, também precisamente, este foco no desenvolvimento da dignidade da pessoa humana. E, portanto, aquilo que, enquanto instituição também canonicamente erigida, nos comprometemos é, não só a promover a integração destas pessoas na sociedade, mas que esta integração seja muito para além da dimensão socioeconómica. Seja também uma integração na dimensão espiritual, na dimensão do bem-estar social, que é fundamental de parte a parte da comunidade que recebe e de quem chega para que este percurso seja de sucesso. E, portanto, todo o nosso trabalho é centrado na inclusão social e na integração plena das pessoas, e, portanto, estes dois projetos respondem em pleno.

 

Nós temos esta conversa por ocasião do Dia Mundial dos Pobres, criado por Francisco, continuado por Leão XIV, quer ser um apelo à ação e a mudança de olhar sobre esta temática. A pobreza não é uma escolha, mas a exclusão social é, por parte de quem exclui. A minha pergunta é, como é que se faz do combate à pobreza uma preocupação transversal a toda a sociedade?

Eu creio que, e daquela que tem sido a nossa experiência, particularmente nestes últimos anos, em que enfrentamos enquanto sociedade tempos novos e também novas formas de olhar para os desafios que enfrentamos enquanto sociedade; eu acredito que o grande desafio da nossa sociedade hoje é não corrermos o risco de tornarmos esta aporofobia, esta fobia dos pobres, ou este medo, ou este desprezo por aquilo que nada tem, em ódio.

 

O Papa Francisco falava mesmo em ódio…

Sim de facto. Então devemos reconhecer que esse comportamento é contrário ao Evangelho. Quem defende ou quem vive este medo, ou este desprezo, ou este ódio ao pobre, contraria de facto o Evangelho, contraria a empatia que nos constrói enquanto sociedade. Seja por este medo de perder privilégios, seja por uma culpa escondida, pela injustiça que muitas vezes está na base da perpetuação dos ciclos de pobreza, seja por vivermos numa sociedade com uma cultura de sucesso e cultura de aparência, em que aquele que está mais mal vestido, ou não tão bem calçado, ou tem um ar de maior vulnerabilidade, nos incomoda.

E de facto, excluir é uma escolha na medida em que nós negarmos a compreensão daquilo que nos pede o Evangelho e daquilo que nos pede o Catecismo da Igreja Católica. E, portanto, acho que o grande desafio para nós hoje em dia, enquanto Igreja e enquanto sociedade também, é sermos capazes de olhar o outro com sinceridade, estar disponível para ouvir e para partilhar espaços e também contribuirmos enquanto Igreja para esta educação para a justiça social.

 

Falamos da sociedade e da necessidade da inclusão. Não sei se tem notado uma intervenção cada vez maior da sociedade civil na procura de soluções para a pobreza em Portugal. E eu queria lhe perguntar se, eventualmente, essa maior intervenção da sociedade é sinal de que perdeu a experiência na possibilidade do Estado resolver, atenuar os problemas?

Não o vejo dessa forma. Eu creio que ambas as forças ou ambas dimensões devem trabalhar em paralelo. A sociedade civil aqui, enquanto força que questiona a estrutura do Estado, que propõe muitas vezes até soluções inovadoras que depois, devidamente testadas e devidamente comprovadas, acabam por muitas vezes também ser replicadas e até ser transcritas para políticas públicas.

E aqui a Igreja tem tido também este papel muitas vezes provocador.

 

Mas, a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza está a funcionar?

A Estratégia Nacional de Combate à Pobreza insere-se também num contexto e num tempo em que vivemos desafios novos. E aquilo que eu vejo é a sociedade civil e muitas organizações da sociedade civil verdadeiramente comprometidas na sua implementação. Mas, de facto, acho que é preciso ainda mais vontade e um maior envolvimento, maior diálogo com as forças do Estado para que aquilo que está desenhado na estratégia possa ser concretizado e concretizado de forma escalável.

Portanto, não com respostas que só tenham resultados em pequena escala, mas que possam de facto ter depois um impacto a nível nacional. Estamos a fazer um caminho, mas é um caminho longo e que exige o compromisso de todos.

 

Nós, ao longo da nossa conversa, já aqui fizemos destacar que os fluxos migratórios por vezes também contribuem para o aumento das situações de pobreza e a Ana teve a possibilidade de nos dar aqui alguns exemplos e, portanto, a experiência do CEPAC permite, se calhar, confirmar esta realidade. A nossa última pergunta tem a ver precisamente com a imigração e com a forma como quer o Estado, quer a sociedade está a olhar para esta realidade da imigração em Portugal. Estamos a lidar bem com esta realidade ou não?

É uma pergunta difícil porque, de facto, sim é importante que o país e, cumprindo as diretivas europeias tenha os fluxos migratórios controlados. Também é importante que esse controle dos fluxos migratórios seja feito com verdadeiro humanismo e que não corramos o risco, como acontece noutros Estados-membros, de atribuirmos a responsabilidade de muitos dos desafios sociais que vivemos hoje em dia, a habitação, o acesso ao trabalho, o aumento do custo de vida, não atribuirmos a responsabilidade desses desafios aquele que chega. Aquele que chega que muitas vezes não vem, de facto, competir com quem já está integrado no mercado de trabalho e aqui, enquanto sociedade, mais uma vez, enquanto igreja, também temos uma responsabilidade grande de não perpetuar e até mitigar aquilo que são informações que não correspondem à verdade e que acabam por alimentar este discurso de ódio que vivemos ou que sentimos muitas vezes.

Portanto, eu acho que o processo de integração das pessoas migrantes ainda está por fazer. Estamos focados e compreende-se que era importante fazer esse caminho na regularização dos fluxos migratórios, mas há um caminho muito longo e que tem que envolver a igreja, tem que envolver a sociedade civil, para além das forças do Estado, há um caminho muito longo a fazer no processo de integração plena e digna de quem chega, não como ameaça, não como alguém que nos vem privar de privilégios, mas como alguém que contribui com toda a sua riqueza, com toda a sua experiência de vida e know-how para o desenvolvimento da nossa sociedade, que sequer plural e sequer diversa.

 

 

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