O embaixador de Portugal na Santa Sé, desde dezembro de 2021, foi exonerado do cargo este mês após ter atingido o limite de idade. Mais de três anos de trabalho num posto de observação privilegiado sobre todo o mundo são agora recordados em entrevista conjunta à Renascença e à Agência Ecclesia

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Teve oportunidade de despedir-se do Papa Leão XIV no último dia 5 de julho. Pergunto-te como correu este encontro e, sobretudo, que imagem guarda deste novo Papa?
O encontro foi extremamente tocante para mim. Obviamente que uma despedida é sempre um momento especial. O Santo Padre quis ser particularmente generoso, tendo-me recebido a mim, mas também à minha mulher e à minha família, aos meus filhos e aos meus netos.
Ele foi informado de que, no dia seguinte, a minha mulher e eu festejaríamos os nossos 40 anos de casamento e, portanto, acedeu ao pedido que eu tinha feito para marcarmos essa data também com esta audiência com ele, com esta audiência de despedida. Foi, portanto, um momento muito importante, não só para mim, obviamente, mas para toda a família, para todos nós, para a minha mulher, para os meus filhos, para os meus netos e também para a minha sogra, que esteve connosco também nessa ocasião.
E ficou sensibilizado por essa dimensão humana?
Absolutamente. E foi uma dimensão muito presente no encontro. O Papa foi de uma enorme ternura com os meus netos, na forma como lidou com eles, de uma enorme simpatia e jovialidade na conversa connosco. Foi ele que nos colocou onde devíamos ficar para as fotografias, por exemplo, e depois, foi também de uma enorme generosidade, no imediato assentimento ao meu pedido, para que rezássemos todos em conjunto uma Ave Maria, pedindo a intercessão de Nossa Senhora de Fátima pela paz no mundo. Nós rezámos em conjunto, ele começou por me perguntar em que língua é que eu queria que a oração fosse, e eu disse: Santo Padre, se puder ser em português! E ele sorriu e disse-me, bom, mas aí então terá de ser o embaixador a liderar e eu acompanho. Ele quis começar não com a Ave Maria, mas com o Pai Nosso. Rezámos um Pai Nosso e uma Ave Maria. Acompanhou muitíssimo bem, num excelente português, com um leve destaque brasileiro, mas muitíssimo bem e foi um momento, obviamente, muito tocante, muito emocionante para todos nós.
No final, ele quis ter palavras muito simpáticas para o meu mandato por aqui, pela forma como o tinha exercido e foi um pretexto para recordarmos alguns dos principais momentos que marcaram esse mandato e ele disse-me, nessa altura, que tinha estado em Portugal, na Jornada Mundial da Juventude, com o Papa Francisco e disse-me uma coisa que eu registo, que foi o seu desejo de poder voltar a Portugal logo possível. Foi aquilo tudo que eu queria ouvir.
Portanto, ficou aí uma porta aberta, escancarada, para uma visita ao nosso país?
Esse já foi por diversas vezes tema de conversa com ele e, portanto, ele sabe que há uma enorme vontade em Portugal de o acolher. De o acolher em Portugal, de o acolher em Fátima. Nós estamos a falar com um Papa profundamente mariano, um Papa que, a primeira oração que ele pediu a quem o ouvia da varanda de São Pedro, da Praça de São Pedro, logo que eleito, foi o Ave Maria. Portanto, é um Papa com uma fortíssima dimensão mariana e, portanto, Fátima é para ele, obviamente, uma referência importante. Ouvi-lo dizer e confirmar essa vontade é muito significativo.
Eu lembro-me quando falei com ele a primeira vez, que foi nos cumprimentos do Corpo Diplomático, eu referi isso e disse-lhe: Santo Padre, Portugal, espera por si. E a resposta dele foi muito inteligente, porque foi a de alguém que, não se podendo comprometer no momento, queria que eu sentisse que isso para ele era importante e a resposta foi um obrigado, obrigado. Desta vez foi mais longe e, portanto, a iniciativa foi dele, e foi a de me dizer que, e de me confirmar a sua vontade de visitar Portugal, de voltar a Portugal depois de lá ter estado para essa ocasião extraordinária que foi a Jornada Mundial da Juventude, fazendo questão absoluta de dizer que eu estive em Portugal com o Papa Francisco.
Já teremos a oportunidade, mais à frente, de falar um pouco mais aprofundadamente sobre a Jornada. Eu antes queria falar do início deste papado, porque desde o seu início, há cerca de dois meses, o Papa tem centrado as suas mensagens na necessidade da paz e da negociação. Quando se fala cada vez mais em investimentos no armamento, qual é o papel da diplomacia?
Eu acho que há, como diz e bem, eu acho que a palavra paz, o termo paz, é recorrente em todos os pronunciamentos públicos do Papa Leão XIV, mas ele faz acompanhar muitas vezes esse apelo à paz de um outro termo, que é unidade. Eu julgo que são dois termos que para o Papa se complementam e que valem para o mundo, mas também para a Igreja. Ou seja, a unidade em torno de um propósito, que é paz, e ele tem aquela expressão magnífica de, logo no início do seu pontificado, quando assoma à varanda e tem a expressão: a paz esteja convosco, recordando a mensagem de Cristo ressuscitado, mas quando ele fala de uma paz desarmada e desarmante.
Portanto, isto é um apelo ao coração dos homens, partindo da ideia de que a paz começa no coração de cada um. E o apelo é feito ao mundo, mas é um apelo que vale para a Igreja também, porque é um apelo à paz também no interior da Igreja, em prol da unidade, de propósito, também dentro do interior da Igreja. Portanto, é um apelo que vale para todos e para cada um. Quanto ao papel da diplomacia; o papel da diplomacia do Vaticano sempre foi um papel discreto, que vale muito pela descrição.
A Igreja faz sempre muito pouco alarde do seu papel diplomático, porque entende que essa é a melhor forma de servir a causa da paz. E eu julgo que este Papa não fugirá ao que tem sido esta forma de exercer a diplomacia por parte da Santa Sé. A primeira coisa que ele fez foi mostrar a disponibilidade da Igreja. Servir como intermediário, como mediador, quando as partes entenderem que isso pode servir à causa da paz. Portanto, foi a primeira preocupação que ele teve, desde logo. E de resto, vamos ver como correm as coisas.
Sentir que existe essa disponibilidade e que essa forma de exercer a diplomacia se mantém, essa forma discreta de exercer a diplomacia se mantém, é uma garantia para qualquer parte envolvida em conflito quanto ao papel da Igreja, um papel positivo e construtivo da Igreja.
O trabalho na Santa Sé implica contacto com embaixadores de quase duas centenas de países. Quando quem nos está a ouvir recorda cenários como aquele que se vê em Gaza ou o prolongamento da guerra da Ucrânia, que está subentendida na sua resposta anterior, há a sensação do fracasso das instituições internacionais?
Eu acho que existe a consciência de que estamos perante uma crise do multilateralismo, e isso é extremamente grave. Grave porque o multilateralismo é sempre um instrumento fundamental para resolver questões que dizem respeito a vários países, mas porque os problemas são também cada vez mais globais.
Portanto, faz cada vez menos sentido que possamos estar a passar por uma crise do multilateralismo quando as questões são cada vez mais globais. Aqui a Igreja é um ponto que temos em comum com as prioridades da política externa portuguesa, e que é exatamente a importância que quer a Santa Sé, quer Portugal, atribuem ao multilateralismo. E, portanto, há resolução das questões num quadro multilateral.
E é um facto, é um facto que todos reconhecemos, que o multilateralismo está a atravessar um momento difícil. A Santa Sé tem feito, por variadíssimas vezes, apelos a que haja um regresso ao multilateralismo. Provavelmente um multilateralismo que, para se reforçar, tem também que se reinventar, de alguma maneira, para que possa, de uma maneira mais clara, refletir o que são as realidades geoestratégicas do mundo de hoje; o peso respetivo de cada país na tomada de decisões no mundo de hoje. Mas isso é um ponto em comum que temos, quer Portugal, quer a Santa Sé.
Em maio participou na primeira audiência que Leão XIV concedeu ao Corpo Diplomático e apontou a uma ligação próxima com Portugal. O que é que podemos esperar da colaboração bilateral? Quais são as suas prioridades?
Eu julgo que este Papa é um Papa que escuta. Todos os que o conhecem melhor, dizem que tem, por característica, a capacidade de escuta. Portanto, é alguém colegial, é alguém que procura ouvir a opinião dos outros antes de formar a sua opinião, de tomar as suas decisões. Isso é extremamente importante no diálogo com a Santa Sé, porque é uma forma de estar que acaba por contaminar toda a máquina diplomática da Santa Sé. É uma máquina diplomática que, no geral, já é uma máquina diplomática muito aberta à escuta, à consulta de opiniões diversas, aberta às opiniões de todos, na formação da sua própria ideia.
A máquina diplomática da Santa Sé, muitas vezes isto não é sabido, é a segunda máquina diplomática do mundo, depois dos Estados Unidos, em número de missões diplomáticas. E há muito mais embaixadores acreditados, por exemplo, junto da Santa Sé do que junto de Itália, o país onde está o Estado do Vaticano.
É uma máquina diplomática vastíssima e, para lá disso, conta também para a formação de opinião, para a formação do processo de decisão, conta também com outro tipo de mecanismos de escuta, que não são só as suas missões diplomáticas: São todas as escolas, hospitais e quem lá está, que são geridos pela Igreja. Muitas vezes não se sabe, mas cerca de 60% das instituições de ensino e de assistência social no mundo, que não são dos Estados, são geridas pela Igreja. Portanto, isto dá-lhe uma enorme capacidade de recolha de informação que é preciosa para a formação de opinião.
Estamos a falar, para qualquer diplomata que aqui esteja, de um interlocutor privilegiado, quanto mais não seja por essa capacidade de recolha de informação. Alguém particularmente bem informado sobre aquilo que se passa no mundo. Muitas vezes nós esquecemos que em certos cenários de conflito, a única presença que lá está, que não é das partes diretamente envolvidas, é a Igreja. São os sacerdotes, são os missionários, são as religiosas que lá estão.
E que muitas vezes são os últimos a sair, não é?
E que são os últimos a sair. São os primeiros a prestar assistência, os últimos a prestar assistência e, como muito bem diz, muitas vezes pagando, aliás, com a sua própria vida, em muitos casos, essa aposta no apoio aos outros. Esta é uma coisa que às vezes deveria ser mais referida.
Estamos aqui a recordar os anos em que esteve ao serviço junto da Santa Sé. Nesses dois anos acompanhou o Funerais dos Dois Papas, a eleição de Leão XIV. Acredito que foram momentos muito marcantes, naturalmente, mas tenho quase a certeza que o momento mais marcante foi esta oportunidade de acompanhar a preparação e a realização da JMJ 2023 em Lisboa.
Pergunto se este foi um bom exemplo da cooperação Igreja-Estado, que aliás este termo cooperação está consagrado na concordante?
Eu julgo que para todos nós isso é uma evidência. A Jornada Mundial da Juventude de Lisboa continua aqui a ser referida na Santa Sé e não só como um exemplo de sucesso a todos os títulos. Não só em termos logísticos, que aos olhos das pessoas pode parecer o mais óbvio, mas mesmo em termos de mobilização espiritual. A quantidade de jovens que tivemos em Lisboa e a forma como eles viveram esses dias em Portugal, porque não foi só em Lisboa, como todos sabemos. Muitos deles estiveram espalhados pelo país, houve um trabalho de preparação para as Jornadas que envolveu todas as nossas dioceses e a forma como foram vividos esses dias e essa preparação é sempre referido aqui como um exemplo absolutamente extraordinário que para a Igreja foi um momento de mostrar o seu vigor, a sua força no coração de cada um.
Eu não posso esquecer esses dias e se tivesse que referir grandes momentos deste mandato que aqui tive, destes três anos e meio que aqui vivi, obviamente que a Jornada Mundial da Juventude foi um momento extraordinário. Absolutamente extraordinário.
Queria terminar esta nossa conversa com o alerta da Comissão da Liberdade Religiosa que recentemente aludiu a sinais de intolerância perante algumas comunidades em Portugal, sublinhando o direito à liberdade de culto.Pensa que pode estar em causa o património de diálogo e entendimento que tem sido uma das marcas do país nas últimas décadas?
Eu espero que não. Todos nós somos pessoas que sabem do que tem sido a experiência dos nossos compatriotas por esse mundo fora. Portugal é associado, para bem de todos nós, a uma imagem de abertura e tolerância.
E todos temos a ganhar com isso. O país tem a ganhar com isso. Nós, como diplomatas, quando estamos fora e temos que representar o nosso país, sabemos bem como essa imagem de tolerância é um fator positivo, que nos ajuda a representar o nosso país.
Portanto, eu quero crer que não estará em causa e que saberemos estar à altura dessa excelente imagem de que beneficiamos, por esse mundo fora, de sermos um país capaz de, pelo contrário, construir pontes entre pessoas, entre nações. É isso que, muitas vezes, faz com que Portugal, o seu peso diplomático, seja bastante maior do que aquilo que a nossa realidade económica e geográfica poderia fazer supor.
Todos nós sabemos dos sucessos que temos tido por esse mundo fora, de sucessos diplomáticos, e como os devemos a essa capacidade que todos reconhecem em Portugal e nos portugueses de sermos construtores de pontes.
Mas essa imagem de tolerância que temos não tem sido minimamente beliscada com os movimentos, vou chamar-lhe assim, mais populistas, que também têm crescido no nosso país?
Eu não queria fazer muitos comentários sobre a nossa realidade política nacional. Nós vivemos em democracia, e os portugueses com certeza que escolherão aquilo que entendem que melhor representa as suas aspirações, os seus interesses, no momento em que são chamados a pronunciar-se. E na sua vida de todos os dias, pois somos uma sociedade democrática.
Enquanto diplomata, enquanto representante do meu país, junto de outros Estados e de organismos internacionais, o que eu posso dizer é que a imagem de Portugal e dos portugueses como um povo especialmente apto para construir pontes de que as pessoas gostam e em quem confiam, porque não têm agendas que não sejam as do interesse da paz e da construção de um mundo melhor, só nos beneficia. E enquanto profissional, como diplomata, eu tenho constatado isso variadíssimas vezes. Portanto, essa excelente imagem que nós desfrutamos é uma enorme vantagem no campo diplomático.