Igreja/Saúde: «Não podemos deixar-nos enredar nos números, na desumanização» – presidente da Associação dos Médicos Católicos Portugueses

José Diogo Ferreira Martins, especialista em cardiologia pediátrica, é o novo presidente da AMCP. Em entrevista conjunta à Renascença e Ecclesia aborda os objetivos assumidos para este mandato e os desafios éticos levantados pela atual pandemia de Covid-19

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Comecemos por falar das prioridades da Associação, enunciados quando eleito presidente. Alude à necessidade de falar para fora, face aos desafios que se colocam no imediato. É de esperar uma maior exposição, no espaço mediático?

O caminho é um caminho de continuidade. A presença no espaço mediático foi algo que nós identificamos como uma prioridade no último triénio e que desejaríamos manter, para os próximos três anos desta nova direção.

Entendemos que a Associação dos Médicos Católicos tem o dever de anunciar a alegria daquilo em que acreditamos, da nossa fé, e que os valores que nós partilhamos são também partilhados por aqueles que não têm o dom da fé, mas que se reveem neles. Por isso, achamos que temos esse dever e desejamos continuar a fazê-lo.

 

Estamos a fazer esta entrevista à distância, como tanta coisa hoje acontece à distância. Que desafios se levantam à prática médica num contexto de pandemia, em que se vai perdendo, de alguma forma, a dimensão do encontro presencial?

A Covid é, efetivamente, um desafio enorme, que veio pôr a descoberto uma necessidade enorme de convertermos o olhar do coração. Converter o olhar do coração, para que a nossa missão de médicos, de cuidar daqueles que são mais pequeninos, como se proclamava no Evangelho da solenidade de Cristo-Rei, em que Jesus nos exorta a ter o comportamento de cuidar dos mais pequeninos – e nós, como médicos, revemo-nos muito nessas palavras -, dos mais frágeis, dos doentes, dos que estão nus, dos que têm fome, sede…

Quando temos esta pandemia, é efetivamente um desafio enorme a quantidade de dificuldades que se colocam. A primeira delas, que se torna muito clara, é que os pequeninos, os mais frágeis, são os idosos, especialmente os que vivem nos lares, mas também aqueles que vivem sozinhos, sem uma família que os possa acompanhar. É primeiro tudo a esses que nós temos de olhar com especial atenção e cuidar com especial carinho.

Outra situação que torna muito difícil o cuidado das pessoas que sofrem de Covid é o acompanhamento espiritual. Infelizmente, desde o início da pandemia, temos vindo a ler com muita tristeza vários relatos de pessoas que se encontram gravemente doentes e que vêm a morrer em ambiente hospitalar, sem que tenha sido possível – por discricionariedade no acesso aos cuidados espirituais – que estas pessoas pudessem ter o conforto dos Sacramentos, que são essenciais. Isso é algo de que continuamos a ter relato. Temos procurado intervir nessa área, trabalhar com as capelanias hospitalares, no sentido de ajudar os sacerdotes a estar mais presentes, mas ainda existem situações dramáticas, de gente que morre sozinha, nos hospitais, rodeada de médicos e enfermeiros equipados como se fossem extraterrestres, que eles não conseguem compreender, com quem não se conseguem relacionar. É um clamor que não pode deixar de comover o nosso coração.

 

E como se faz para humanizar o cuidado? Sente que se está a perder a dimensão humana?

Não tenho dúvidas disso, a vários níveis. Quando fazemos uma consulta no Hospital, passamos metade do tempo a escrever no computador, em vez de ser a olhar para as pessoas. Cada vez temos menos tempo de consulta, para conversar com os nossos pacientes, e tudo isto é uma situação que vinha de trás. A partir do momento em que o toque – e é tão importante – deixa de ser uma prática médica, perdemos uma dimensão essencial da nossa vida.

Jesus, quando faz os seus milagres, toca ou deixa-se tocar pelas pessoas que lhe são próximas. Por isso, este contacto físico é algo que nos faz verdadeiramente falta na nossa vida, especialmente na vida dos que estão doentes. A sua falta é uma tragédia.

 

Essa é uma dificuldade acrescida: a conciliação entre a necessidade de não contaminarmos e a de estarmos mais próximos dessas pessoas. Como minimizar esta questão?

De facto, não há como ultrapassá-la, porque nós não podemos pôr em risco os nossos doentes – nem a nós próprios, enquanto cuidadores e profissionais de saúde. Podemos minimizá-la, primeiro do que tudo, como disse há pouco, convertendo o olhar do coração. Olharmos cada vez mais para cada uma daquelas pessoas como alguém que precisa de ser cuidado, pela sua fragilidade. Isto tem de nos desinstalar, como profissionais de saúde; como médicos, não podemos deixar-nos enredar nos números, na desumanização, nas pessoas que são tratadas sem ser do modo como querem ser tratadas. Há tanto a fazer nos hospitais, cada um de nós, enquanto médico, para se tornar mais próximo.

Faço aqui uma partilha pessoal: às vezes, quando falava com os pais dos meus doentes, na época pré-Covid, se tinha boas notícias, gostava de os abraçar; e se tinha más notícias, também. Hoje em dia não o posso fazer, mas digo: estaríamos a abraçar-nos agora, não podemos, mas sinta o meu abraço, porque era assim que eu queria comunicar consigo.

 

Como vai ser possível gerir a necessidade de defender e anunciar “com alegria a dignidade da pessoa humana desde o início (a conceção) até ao fim (a morte natural)” face à a possibilidade de a lei da eutanásia ficar pronta para seguir para Belém neste mês de dezembro?

Já foi tanto dito sobre a eutanásia e há tantas coisas boas que vale a pena relembrar… Eu desafiava todos, se tiverem tempo, a ler a carta ‘Samaritanus Bonus’, da Congregação para a Doutrina da Fé (Santa Sé), dedicado ao cuidado com as pessoas nas fases críticas e terminais da vida. Aliás, o núcleo diocesano de Lisboa da Associação dos Médicos Católicos vai organizar uma reunião zoom, para abordar esta questão.

A carta é muito bonita, porque volta a colocar as coisas em perspetiva, começando com frases verdadeiramente impactantes. Diz-nos que a grandeza da sociedade e da humanidade se determina na relação com o sofrimento e o sofredor. Depois, faz uma reflexão sobre a parábola do Bom Samaritano e como, quando temos esta pandemia, percebemos que todos os nossos instintos são para cuidar dos que estão mais frágeis, para cuidar dos que estão em fim de vida. Nunca deixamos de anunciar com alegria que viver é viver até ao fim.

Hoje a medicina tem soluções para a dor física, mas as soluções mais difíceis são, efetivamente, as da dor emocional, da solidão, da falta de propósito para este fim de vida. E é aí que os cuidados paliativos têm uma enorme palavra a dizer.

O nosso enorme receio, enquanto associação – e penso que isto é partilhado por tantas pessoas, tem sido dito de forma reiterada por muitos – é que, a partir do momento em que nós damos às pessoas a opção de morrer, a pedido, e sob ação direta dos médicos, sem terem um cuidado de saúde claro e bom até ao fim da sua vida, ao não dar a opção dos cuidados paliativos, de algum modo, involuntário, admito, estamos – e temos de perceber que estamos – a empurrar as pessoas para a solução da eutanásia.

 

Foto: Lusa/EPA

Para além da Eutanásia; há outras questões- como a inseminação pós-morte, ou problemas éticos relacionados com a Covid-19 de que falaremos já a seguir – no centro das vossas preocupações?

Sem dúvida. Eu acho que há aqui uma questão ética, neste momento, que é se calhar a mais presente na Covid e que tem a ver com a vacina.  Nós lemos recentemente que havia umas propostas preliminares relativamente aos grupos prioritários, porque naturalmente que ao longo do ano de 2021 é expectável que todos venhamos a poder receber esta vacina.

Porém, nós não podemos deixar de dizer que entendemos que os prioritários são os mais frágeis.  Reparem, se nós olharmos para os números da DGS, verificamos que a taxa de letalidade, isto é o número de pessoas que morrem em relação ao número de pessoas que estão doentes é de 14%, nas pessoas com mais de 80 anos. 5% entre os 70 e os 79%. E abaixo de um por cento, abaixo dos 70 anos. Ora, nós não podemos deixar de pensar que aqueles que mais vão beneficiar com a vacina são aqueles que têm uma idade maior ou que tem outras comorbilidades. É evidente que faltam muitos dados sobre a vacina. Nós ainda não temos a certeza de qual é a eficácia em cada grupo etário, mas sabendo o que sabemos agora, parece-nos que temos de começar pelos lares, por aqueles que são mais frágeis, pelos mais idosos e pelos que têm doenças, e obviamente pelos profissionais que deles cuidam para não os infetarem e para continuarem poder tratar deles.

 

A Associação publicou e abril o documento ‘Cuidados de saúde durante a pandemia Covid-19’, onde propôs “algumas linhas orientadores” para ajudar os profissionais de saúde a tecer juízos retos e a tomar opções prudenciais. Os últimos dias apontam para um cenário mais desanuviado, mas subsiste o risco de obrigar a “escolhas terríveis” sobre os doentes a tratar. Já em novembro tivemos o parecer do Conselho de Ética da Ordem dos Médicos. Identifica-se com estas orientações?

Ficamos felizes por ver que as orientações da ordem dos médicos partilham os valores que nós tínhamos anunciado 6 meses antes. Isto é, no fundo aquilo que eu vivia no início, não é preciso ter o dom da fé para partilhar os valores que pugnamos para o resto da sociedade.  E efetivamente, a ordem dos médicos disse de forma muito clara que idade, por si só, não deverá ser um critério para alocação de recursos de saúde. Por outro lado, e isto é algo que desde sempre a igreja que está na linha da frente do Cuidado com os mais frágeis, em todas as terras na história da humanidade, nós soubemos que há altura que tem de tomar escolhas e escolhas terríveis de facto. E aí aquilo que nós temos de fazer é como linha geral fazer o maior bem ao maior número de pessoas possíveis. E tentar dentro daquilo que é possível utilizar scores de risco para perceber se nós formos confrontados com essa escassez de recursos médicos a quem é que os vamos alocar, mas sempre de uma forma regrada, com protocolos rígidos e que não dependam de emoções do momento, e que não dependam de aleatoriedade ou de discricionariedade ou de proveniências étnicas, de limitações económicas, de pressões políticas ou outra. Porque todas as pessoas são igualmente dignas.

 

São aceitáveis critérios baseados unicamente na idade ou em fatores aleatórios, como a ordem de chegada ao Hospital?

Eu acho que essa reflexão tem vindo a ser feita. Às vezes não necessariamente na Praça pública, mas aquilo que é o meu contacto com médicos de muitas especialidades, pessoas com quem nós contratamos no dia-a-dia, é que efetivamente todos nós, genericamente temos um enorme cuidado com este tipo de discussões, com este tipo de debates, e eu devo dizer com franqueza que a classe médica em geral daquilo que me é dado a ver, e do que nós vamos conversando na associação dos médicos católicos tem-se portado de forma magnifica, abnegada e sempre  com este critério ético que nós partilhamos.

 

Um dos objetivos assumidos é o diálogo com as outras associações de profissionais católicos. Como perspetiva essa necessidade de diálogo e de posições conjuntas?

Nós vamos fazer nos próximos três anos seguramente quando pandemia nos deixar encontros regulares com as outras associações profissionais católicos. Falo dos empresários católicos, dos juristas católicos, dos nossos colegas enfermeiros e psicólogos católicos, e em todos eles encontramo-nos esta complementaridade que significa que temos a mesma raiz, e sabemos que estas associações de profissionais católicos que têm sido muito acarinhadas pelo anterior, e seguramente também pela atual presidente da Conferência Episcopal, e portanto, estaremos completamente ao serviço da conferência episcopal e gostávamos de o reafirmar para que nos faça instrumento da voz de tantos que acreditam e que às vezes não tem não têm essa voz no espaço público. E por isso, o diálogo de frutuoso que nós teremos com os nossos profissionais católicos de outras associações, e que anunciaremos oportunamente, serão ocasiões para crescermos e para discernirmos de forma mais verdadeira e concreta aquilo que é a vontade do Senhor.

 

Por último, o desafio do crescimento da Associação. Qual a estratégia para agregar novos membros e chegar por exemplo aos jovens médicos e estudantes de medicina?

Nós este ano entendemos que devíamos, não só alargar a direção para ter elementos de vários núcleos diocesanos: temos dos Açores,  temos de Santarém, temos de Lisboa; como também incluir  jovens médicos, nomeadamente os que ainda estão na formação no internato complementar; de modo a podemos estar mais presente nos núcleos de estudantes católicos das faculdades, e tentar perceber este este mistério –  para mim é um mistério –  como é que há 30 mil médicos em Portugal e nós somos 700 sócios da associação.  Seguramente que somos nós que não temos sido capaz de chegar a todos, mas gostamos sempre aproveitar para desafiar todos os que nos ouvem: visitem o site da associação dos médicos católicos, interajam connosco, inscrevam-se, façam presentes, façam-se ouvir porque nós temos de crescer e sabemos que há muita gente lá fora que seguramente gostará e beneficiará de ser sócio da nossa associação.

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Agência ECCLESIA

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