Na semana em que o Governo entregou o Orçamento do Estado no Parlamento e em vésperas do Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, Manuel Antunes é convidado da Agência ECCLESIA e da Rádio Renascença
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Ao apresentar o documento, o Ministro das Finanças, Fernando Medina, disse que o Orçamento protege o futuro. Do que já conhecemos do documento, está-se de alguma forma a esquecer o presente de grande dificuldade?
Como compreendem, eu não tenho um conhecimento global e pormenorizado do Orçamento para 2024 apresentado na Assembleia da República. Nem sequer segui na íntegra a apresentação pública que depois foi feita pelo Ministro das Finanças, doutor Medina. E, portanto, tenho dúvidas sobre muitas coisas. Não me parece que o Orçamento dê uma resposta cabal aos problemas que as IPSS em geral e a Caritas de Coimbra em particular têm no presente. Houve recentemente uma atualização das comparticipações da Segurança Social e isso naturalmente melhorou muito o Orçamento, mas não chegou para cobrir o atraso que tem sido registado nos últimos anos. Há muito tempo que não eram atualizadas as comparticipações da Segurança Social e, portanto, todas as instituições deste tipo estão a ter grandes dificuldades, algumas até de sobrevivência, não é o nosso caso ainda; mas vamos ver o que é que nos traz o futuro.
A realidade social de Coimbra não é muito distante da do resto do país. Acentuam-se dificuldades de uma inflação, que teima em manter-se sem que os ordenados cresçam ao ritmo que certamente muitos desejariam. Por onde passam especificamente nesta altura os pedidos de ajuda a Caritas?
A Caritas diocesana de Coimbra tem 126 serviços diferentes espalhados por todo o território do Distrito de Coimbra e ainda mais nove concelhos de outros cinco distritos, perifericamente, e, portanto, cobre praticamente todas as áreas sociais. Mas nós notamos que é na área de apoio na rua, que nós temos cada vez mais procura de pessoas que estão no fim da linha, que não conseguem cobrir as suas despesas e outras que não conseguem mesmo comprar o pão que precisam para sobreviver no dia a dia. Então, estes pedidos, que não eram bem o nosso ADN, estão a aumentar subitamente e nós estamos a fazer o possível no sentido de conseguir corresponder às necessidades que a população vai apresentando, mas os pedidos, para além disto, estão a ser muito mais intensos do que eram até há pouco tempo.
As dificuldades no acesso à habitação também são uma das prioridades?
Nós temos um CAS, que é um centro de apoio social, que ajuda as famílias que têm dificuldades e que recorrem agora com grande frequência, para pedir ajuda naquele momento de crise e uma delas é exatamente a ajuda no pagamento de rendas que as pessoas já deixaram de poder fazer, mas nós aí temos fundos muito limitados, e, portanto, podemos fazer uma ajuda que é temporária e momentânea. Não temos muito mais do que isso. Este é um dos setores em que as necessidades estão a aumentar claramente.
Coimbra é um grande centro estudantil. Os alunos também sofrem com os problemas do alojamento? Têm chegado pedidos nesta área?
É uma pergunta muito oportuna porque a responsável por este centro do CAS acabou de me enviar também um pedido para apoio a dois estudantes que estão nessas condições. Para eles poderem concorrer a bolsas e tudo, eles têm que dar provas de que não têm dívidas e, portanto, recorrem a nós. Nós estamos a fazer isso de certo modo em apoio também ao sistema da própria universidade, o Sazu, no sentido de apoiarmos até onde pudermos. Mas muitas vezes as dívidas são para além daqueles valores que nós podemos comparticipar. Com outras associações e com outras instituições do mesmo género vamos tentando fazer esse apoio, mas depois subsistem as dúvidas se esse apoio que damos agora é suficiente porque dar pão hoje não significa matar a fome para amanhã, não é? E nesse aspeto também temos algumas dificuldades, mas fazemos aquilo que podemos. Neste momento, os dois pedidos, um é para uma dívida de alojamento no valor de 395,21€ e outro de 794,50€. Chegou-me mesmo agora o pedido de aprovação. Naturalmente vou dar a aprovação. O fundo solidário da universidade também vai nesse aspeto ajudar a comparticipar connosco nessas despesas.
Os últimos anos têm sido particularmente difíceis. Em 2020, em plena pandemia, foram muitos os relatos do momento diário de pedidos de ajuda. Aquilo que eu lhe pergunto e do que vamos percebendo é se nesta altura as solicitações estão ao mesmo nível?
Até estão a aumentar em relação ao que era anteriormente, como é evidente. Houve serviços sociais em que houve claramente uma quebra com a pandemia, mas neste momento estamos quase lá, no número de utentes que tínhamos anteriormente. A Caritas diocesana de Coimbra atende mais ou menos 15 mil pessoas por ano.
E os números têm sido mais ou menos idênticos desde a pandemia?
Estão a atingir agora esses valores. Estamos a falar daquelas coisas de rotina, como os lares, como as creches, como os centros de dia, que perderam muitos utentes durante a pandemia e que agora estão praticamente aos níveis anteriores, aos níveis de 2019. Mas o que acontece é que têm aumentado os pedidos de outras áreas, sobretudo deste apoio social ocasional de que estávamos a falar anteriormente, e que agora são muito mais do que eram antes da pandemia. Portanto, no final a sobrecarga financeira para as instituições é muito maior do que era antes.
Ou seja, poderemos estar perante a iminência de uma tempestade perfeita com a manutenção da inflação, a não descida das taxas de juros e agora mais um conflito com efeitos imediatos ao nível, por exemplo, do preço do petróleo, que é o conflito mais recente no Médio Oriente. Afinal, o pior poderá ainda estar para vir?
O pior poderá estar para vir. Eu vou dizer-lhe, pela primeira vez nos 75 anos de história desta instituição, nós tivemos em 2022 um saldo negativo orçamental no valor de cerca de 800 mil euros. No total das despesas, o saldo foi negativo em cerca de 800 mil euros. Para o orçamento deste ano de 2023, nós já estimámos um saldo negativo também de cerca de 600 mil euros. Estamos a falar quase de 1 milhão e meio de euros de déficit para a instituição. Neste momento, nós temos preocupações com o futuro, mas não temos preocupações atuais em relação a isso, porque neste momento podemos suportar. Porque o orçamento da instituição é de 24 milhões de euros anuais. Portanto, esta Cáritas Diocesana de Coimbra, é de longe a maior Cáritas portuguesa, e provavelmente até o nosso orçamento excede o somatório das outras todas. É, nesse aspeto, uma grande instituição. Ora, e o aumento de despesas, aquilo que eu chamo de inflação, para 2022, 2023 da Cáritas Diocesana andou aí pelos 17%. Isso tem muito a ver com o custo das energias, mas também com os aumentos sucessivos – o que é bom – nos vencimentos. E nós não temos, por exemplo, a comparticipação das pessoas em termos de mensalidades, por exemplo, nos lares e nas creches e nos jardins de infância, não têm de maneira nenhuma tido o mesmo crescimento. Pelo contrário, todos os dias recebemos pedidos por causa das dificuldades das famílias, por causa das questões das rendas das casas e outro tipo de despesas que elas não podem comportar. E as famílias pedem uma redução do valor das mensalidades. Estamos a tentar gerir isso da melhor maneira que pudermos. Acreditamos que se não houver uma intervenção mais musculada do Estado, no sentido de suportar as instituições – esta e as outras – todas correm os mesmos riscos em termos de suporte da segurança social. E se nada for feito, naturalmente, estas instituições vão ter cada vez mais dificuldades e nós temos conhecimento de algumas que neste momento ou já faliram ou estão em processo de falência.
No caso, a pergunta é evidente, ou seja, a preocupação num momento em que aumentam os pedidos de ajuda e provavelmente diminui a capacidade de resposta, tem mesmo a ver com a sustentabilidade. Que áreas específicas – já tem falado de algumas – é que estão a criar maior pressão nesta fase?
Basicamente todas as áreas. Como disse nós temos 24 milhões de euros de Orçamento e quase 16 milhões vão para os nossos funcionários, ou seja 75 por cento do nosso Orçamento. Nós temos quase mil funcionários, e parte do Orçamento é para a despesa com pessoal. É o caso, por exemplo, do anunciado aumento do salário mínimo, que é o que ganha a maior parte dos nossos funcionários, como é o caso dos assistentes, e dos auxiliares. O aumento do salário mínimo em 2024 é à volta de 7,89%. Eu não estou contra o aumento do salário mínimo, porque as pessoas têm essa necessidade. Só estou a dizer que para a instituição isso é um aumento muito superior àquele que tem havido por parte das compartições da segurança social. É preciso não esquecer, e que o Estado e o Governo não se esqueçam, de que o serviço que nós estamos a fazer é um serviço que de facto constitucionalmente pertence ao Estado. E, portanto, nós precisamos do apoio do Estado nesta instituição. Mais, o Estado sabe que o dinheiro investido aqui é um dinheiro que tem o rendimento total, não há aqui coisas paralelas e despesas paralelas que possam indiciar um mau uso dos dinheiros que o Estado possa pôr à disposição destas instituições. Portanto, houve uma atualização, houve um novo acordo social no princípio do mês de setembro e que foi uma atualização significativa dos valores anteriormente propostos, mas ainda não é suficiente para cobrir os custos das instituições e há que fazer uma auditoria para saber exatamente aquilo que é preciso fazer no futuro para que estas instituições não desapareçam. Porque se desaparecerem então a situação social do país vai-se complicar tremendamente.
Sugere então uma maior comparticipação do Estado, nomeadamente para fazer face a esse aumento do salário mínimo?
É, é exatamente isso. Volto a dizer, estamos a falar em 8% de aumento do salário mínimo e o aumento das comparticipações foi em 5%. Não sabemos exatamente o que vai acontecer, ainda não está definido para 2024. Pode muito bem ser que eu esteja a falar de cor que o Estado tenha a intenção de aumentar as comparticipações de uma forma que corresponda ao aumento dos custos. Estas instituições não estão para lucro, não têm lucro e gastam basicamente todo o dinheiro que recebem. Mas hoje estamos a assinar contratos com a Segurança Social e outras instituições de solidariedade, pertencentes ao Estado, em que já se espera que as instituições participem com 20%. O Estado só subsidia 80% e a nossa questão é: onde é que nós vamos buscar esses 20%? Temos alguns donativos, temos pessoas que são generosas e que ajudam a ter sentido, mas não temos outra maneira. Nós não somos a Santa Casa da Misericórdia [de Lisboa], que tem a lotaria para fazer receitas.
Vários dos projetos que a Cáritas desenvolve em Coimbra são dedicados aos cidadãos mais velhos, particularmente na cidade. A solidão é outra das grandes preocupações?
É. Na área da terceira idade, nós temos as residências, as chamadas ERPIs, residências para pessoas idosas, temos os centros de dia, que acompanham as pessoas durante o dia para elas não estarem sozinhas, exatamente para combater a solidão, e temos serviços de apoio domiciliário, para quem não pode sair de casa. Quem estiver em casa, uma pessoa com um casal com 75, 80 anos, 80 e mais anos, e que ainda consiga manter um contacto com os vizinhos, normalmente não tem esse problema. Para a maior parte das pessoas, sobretudo nas áreas urbanas – a situação é mais fácil nas áreas rurais – os centros de dia eram, realmente, uma resposta a esse problema. Simplesmente, com a pandemia, os centros de dia tiveram de fechar, mantivemos algum apoio domiciliário. E as pessoas agora estão a preferir esse apoio domiciliário, de maneira que nós temos de reestruturar as equipas, que deixam de ser apenas equipas que iam lá entregar as refeições e fazer uma rápida higiene pessoal ou domiciliária, para utilizar agora pessoas que possam fazer a animação, portanto o apoio para evitar esta sensação de isolamento que as pessoas têm. Estamos realmente a trabalhar nessa área, há aqui uma mudança muito significativa do padrão anterior.
Sente que a solidariedade se mantém, tanto a nível dos donativos como no voluntariado? Há pessoas que passaram de ajudar a ser ajudadas, não é?
Esta situação que temos, de pandemia, guerras e tudo, criou mais dificuldades às pessoas, que, portanto, já não têm aquilo que podiam dar, mesmo que não necessitem ainda de pedir assistência, já não têm a mesma folga que tinham anteriormente. E, depois, temos também uma coisa que é preocupante de um modo geral: a sociedade tornou-se menos solidária, está menos preocupada com o que se passa com o vizinho ou com as outras pessoas, e nós notamos isso cada vez mais. Ainda continuamos a receber apoios muito significativos, apoios de dezenas de milhares de euros e às vezes heranças de mais do que isso, com que a Cáritas nesse aspeto tem sido beneficiada, mas não é suficiente para fazer face a esta alteração completa e dramática que houve em termos orçamentais, em termos económicos.
Gostaríamos de visitar um pouco a sua experiência profissional, para olharmos também para os problemas no acesso à saúde. Tem alguns receios nesta área, que consequências é que mais teme da atual situação?
Se está a falar da saúde em geral, eu continuo a ser muito crítico: acho que o Serviço Nacional de Saúde é um bem inestimável que nós não podemos perder, mas estamos rapidamente a trabalhar para a sua destruição, ou pelo menos a não trabalhar para a sua progressão, que é aquilo que necessita.
Teme pela sua sobrevivência?
Teme pela sobrevivência do Serviço Nacional de Saúde, os pressupostos que existiam há 46 anos, quando foi criado o Serviço Nacional de Saúde, são completamente diferentes. A sociedade mudou, as técnicas mudaram, tenho-me mantido muito crítico em relação a isso. Já agora, eu queria associar aqui uma preocupação grande, que é a relação entre os serviços sociais, da prestação de apoio social, e a saúde. Os nossos idosos, por exemplo, que foram internados aqui num lar, no centro de Coimbra, e que vieram alguns deles de grandes distâncias, perderam o apoio do seu médico de família, e neste momento o Serviço Nacional de Saúde, os centros de saúde que estão aqui ao nosso lado, recusam-se. Não podem, o ministro tem dito que as pessoas internadas, os chamados utentes que temos nas ERPIs, nas residências da terceira idade, têm o mesmo direito que qualquer outro cidadão, se calhar até são mais doentes e precisam de mais cuidados. E neste momento nós não temos esse apoio.
Eu pergunto-lhe se aquilo que parece ter ficado claro na pandemia, da necessidade de um diálogo permanente entre a saúde e o social, se foi perdendo com o fim da grande crise da Covid?
Sim, foi, foi-se perdendo muito. Por exemplo, nos cuidados continuados, há um programa, o chamado internamento social, muita gente que está internada nos hospitais, não por razões de doença, mas por razões sociais, porque não tem outro sítio para onde vir – as unidades de cuidados continuados a curto, médio e longo prazo foram criadas também para dar esse apoio – tem havido transferências muito significativas de utentes do Serviço Nacional de Saúde dos hospitais para estas unidades, mas ao fim de seis meses, por exemplo, ficamos completamente fora dos apoios que estavam a ser dados e não podemos pôr as pessoas na rua porque elas continuam a não ter o apoio familiar, a não ter residências para onde ir.
Pergunto-lhe se, daquilo que estivemos a conversar perante este somatório de problemas, será de esperar uma voz mais firme da Igreja Católica, sobretudo na defesa dos mais frágeis e dos mais afetados pela crise?
Eu espero bem que sim, a Igreja Católica tem os seus próprios problemas, tem tido ultimamente. A Cáritas, como sabe, é ligada à Igreja Católica, até aqui tenha havido uma certa independência destas instituições em relação à própria Igreja, aos párocos e bispos, e é altura de párocos e bispos também olharem para estas instituições e procurarem contribuir para as mesmas. Não que eu tenha, pessoalmente, alguma queixa, mas tem de haver um papel mais ativo. Houve um tempo em que se pensava deixar esta instituições funcionar de forma independente, porque a Igreja tinha outros problemas para resolver. Mas a Igreja é cada vez mais procurada pelas pessoas que têm dificuldades económicas, sociais, e é um papel importante que tem de desempenhar.