O Dia Mundial dos Pobres é assinalado pela Cáritas Portuguesa com uma marcha pública organizada em conjunto com a Cáritas de Beja. A caminhada junta representantes da rede nacional Cáritas e vai ligar o largo de Santa Maria ao largo de São João em Beja. Isaurindo Oliveira, residente da Cáritas de Beja, é o convidado da entrevista conjunta Ecclesia/Renascença
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Rádio Renascença) Octávio Carmo (Agência Ecclesia)
Assinalámos a data num momento de crise política em Portugal. É mais um motivo de preocupação para os pobres e para quem combate o fenómeno?
Sim, claro. Aliás, isso é algo que nós vamos constatando aqui em Beja, principalmente nestes últimos dois anos, com a chegada de migrantes e os migrantes de já há mais anos. Temos o aparecimento de muitas pessoas em situação de sem-abrigo que vão preocupando a comunidade, preocupando a Cáritas, porque a sua vulnerabilidade é extremamente elevada, nomeadamente ao nível da habitação, ao nível dos contratos de trabalho. Tudo isto tem repercussões ao nível dos sem-abrigo e, portanto, há que criar aqui algumas dinâmicas. Levar a que a própria comunidade, como eu costumo dizer, não assobie para o lado, considerando que isto é um problema dos outros, é um problema dos municípios.
E esse é um fenómeno que continua a aumentar, o dos sem-abrigo, na região?
Aqui em Beja, sim. É um problema que está num crescendo muitíssimo grande, principalmente porque temos muitos migrantes, e os migrantes estão sujeitos a toda a espécie de vulnerabilidades. Os contratos muitas das vezes cessam, não há pagamentos. Por outro lado, os poucos rendimentos que vão acolhendo, uma parte significativa é enviada para os seus países de origem, e, portanto, eles ficam, como a gente costuma dizer, descalços face há mais pequenina contrariedade. Não havendo dinheiro, não há pagamento do alojamento, se não há pagamento do alojamento vão parar à rua. E, portanto, isto tem vindo em crescendo, coisa que, há dois, três anos, não se dava muito por isso. Por outro lado, verificamos também que, mesmo entre os nativos, os portugueses, esse número tem vindo a aumentar. Com problemas de saúde mental, com problemas de alcoolismo, com problemas de consumos, de drogas, portanto, tudo isto é algo que a cidade de Beja não estava habituada.
E essa situação pode ser agravada também pela crise da habitação de que falava?
A habitação é o principal problema, porque a generalidade destas pessoas não tem teto,
não tem casa, porque não há habitação. Até para as pessoas que não têm estes problemas relacionados com as condições do sem-abrigo, mas que têm ordenados baixos é difícil obter casa. Não há casas para arrendar, e, portanto, aquilo que nós assistimos aqui é que, como eu costumo dizer, qualquer pardieiro, qualquer casa, qualquer buraco que tenha um teto pode servir para alojar estas pessoas.
Portanto, são pessoas que vivem em condições insalubres, sem o mínimo de condições,
sem higiene, e isto tudo vai conduzir a outros problemas.
Por enquanto, os problemas de segurança ainda são pontuais. Mas temos os problemas de saúde pública que penso que não estão a ser devidamente reconhecidos, e, portanto, tudo isto está a crescer, até porque o número de migrantes, ou seja, a mão de obra necessária para esta região relacionada com a agricultura, relacionada com o Alqueva, ainda não atingiu o seu pico. Portanto, isto significa que o número de migrantes continua a crescer, e, portanto, todos estes problemas são crescentes. Isso pode vir a criar problemas de segurança, problemas de toda a ordem numa cidade que é pequenina, que é pacata. Mas, reforço, mas, por enquanto, isso não se verifica.
Neste contexto deixe-me perguntar-lhe se acompanham os alertas recentes da Conferência Episcopal Portuguesa sobre os riscos de uma deriva populista, e se este discurso mais populista e demagogo pode afetar quem trabalha no terreno, particularmente junto destas populações mais carenciadas?
Sim, nós verificamos isso todos os dias, pelo menos na TV. Em algumas situações que se veem, nós encontramos sempre, esses fenómenos. Ainda há dias alguém na televisão comentava que teria sido roubada num parque de estacionamento por um refugiado, um migrante. E depois surgiu logo um rol de queixas. E é relativamente fácil entrar pelo caminho do populismo e da demagogia.
Aliás, essa é a razão por que nós aqui na Cáritas em Beja tentamos junto dos parceiros ações de sensibilização. E esta marcha que está englobada no lançamento da campanha dos 10 milhões de estrelas, aquilo que nós tentamos aqui fazer é alertar toda a comunidade que isto não é um problema só de alguns. Isto é um problema que diz respeito a todos; todos têm de participar neste trabalho, porque tudo aquilo que, neste caso a Caritas, mas quem diz a Caritas diz outras instituições que estejam no terreno, tudo aquilo que nós possamos fazer para minimizar os problemas que não vão aparecendo é menos uma preocupação para a comunidade. E, portanto, estes problemas são de todos e todos têm de trabalhar. É evidente que é mais fácil assobiar para o lado.
Um dos lemas que nós temos num projeto com os sem-abrigo, precisamente, é uma frase que até se assemelha àquela que o Papa Francisco apresenta na sua mensagem do Dia Mundial dos Pobres, e que nós apresentamos aqui dizendo: «estou tão perto que não me vês», ou seja, a gente passa pelas pessoas e não as vê, não lhes liga. Nós temos de fazer este tipo de trabalho para tentar assim, de alguma maneira, minimizar estes populismos que não levam a nada, bem antes pelo contrário; só vão criar mais problemas. Nós estamos a pensar aqui nos migrantes, estamos a pensar nesta mão de obra, ela é extremamente necessária. Sem ela a agricultura não pode sobreviver, portanto, se estas pessoas nos fazem falta aqui, elas têm que ser tratadas tal e qual como os nativos.
Recentemente foi apresentada uma estratégia de combate à pobreza. Não está muito direcionada para os grandes centros, esquecendo de alguma forma, os pobres que também se encontram no interior? Até porque até ao momento tem retratado uma realidade que é comum aos grandes centros….
Sim, é comum, mas depois ela tem menos atenção do que tem os grandes centros. Aliás, se reparar, e os senhores que são da comunicação, veem que estes problemas são sempre apresentados em termos de Lisboa, em termos de Porto, em termos dos grandes centros urbanos. Nestas comunidades mais pequenas, normalmente nós nunca falamos. Só se fala, como eu costumo dizer às vezes até aos vossos colegas que aqui aparecem de vez em quando, até lhes tenho perguntado, mas têm estado distraídos… aconteceu Odemira, depois aconteceu aqui Beja, mas depois tudo desaparece e parece que tudo ficou resolvido.
E fenómenos como o de Odemira podem voltar a acontecer?
Estão a acontecer a toda a hora. O problema do Odemira não foi resolvido, foi atamancado, assim como os problemas aqui de Beja são atamancados.
Atamancado quer dizer, já agora?
Desculpe lá o atamancado. Nós utilizamos os termos alentejanos e esquecemos de contextualizar.
Encontra-se uma espécie de solução dissimulada, é isso?
Encontra-se uma solução dissimulada, uma solução aparente, porque estes problemas são de muito difícil solução. Só os demagogos é que podem dizer que fizeram isto, e fizeram aquilo e que resolveram o problema. O problema da habitação não se resolve facilmente. É um problema que demora muitíssimo tempo. Todos estes problemas, por exemplo, destas, vamos dizer, máfias que lidam com estas pessoas, isto é inato.
Ou seja, sempre que há uma possibilidade de negócio, seja lícito ou seja ele ilícito, ele está logo bem patente. Prendem-se meia dúzia de pessoas porque estiveram inseridas num tráfico qualquer, mas quando essa meia dúzia de pessoas sai, aparece logo o dobro porque isto faz parte… Portanto, são problemas muito complicados e de muito difícil solução. Isto significa o quê? Ou toda a comunidade e todas as associações e todo o Estado e os diversos organismos, trabalham em comum, ou se cada um puxa e olha para o seu umbigo e tenta ser mais importante que o outro, as soluções não se encontram.
Encontra essa junção de sinergias para enfrentar essa situação? Ou, por exemplo, por parte das autoridades, há falta de fiscalização destes fenómenos, como de Odemira, para que eles não voltem a acontecer?
Os problemas da fiscalização têm a ver depois com o número de pessoas que podem estar inseridas dentro disto. Todas estas organizações andam anos-luz à frente das fiscalizações. É extraordinariamente difícil. Ou, de facto, há esta ligação entre os diversos organismos, ou continuamos a falhar. Nós, aqui, ao nível de Beja e não estou a falar em termos de Diocese, porque a Diocese é, de facto, muitíssimo grande, e a atividade da Caritas, infelizmente, não consegue estender a todo o território; mas nestes territórios aqui, mais à volta de Beja, nestes conselhos aqui à volta de Beja, tem-se vindo a fazer um trabalho. A Caritas começa a ser um parceiro que é considerado importante pelo seu trabalho, e por aquilo que vai mostrando. E tem havido aqui uma ligação relativamente forte com meia dúzia de municípios, com as juntas de freguesia, com o tecido empresarial. Agora é um trabalho que é lento, e depois é um trabalho que é feito por pessoas que
não têm experiência, que é o caso da Caritas. A Caritas tem uma direção que é voluntária. As direções não têm formação para este tipo de coisas, portanto, trabalham com base na boa vontade, com base na ligação…
Nós temos ouvido com insistência as instituições a queixar-se da redução de apoios, para poderem continuar a ajudar, e o que eu pergunto é se, até do ponto de vista da Caritas, tem sido possível reunir recursos logísticos, financeiros, humanos, que são precisos para esta resposta, ou se está a viver um momento asfixiante, como o país também vive?
É tudo muito complicado, porque nós não temos fontes de rendimento, os únicos rendimentos que temos são os provenientes das campanhas, nomeadamente esta da campanha dos 10 milhões de estrelas, que vai agora ser lançada esta tarde aqui em Beja, e são o peditório nacional. Isto tudo dá, números redondos, 15 mil euros por ano. 15 mil euro não dá para pagar um funcionário.
Nós temos cerca de 65 funcionários, dos quais cerca de 25 são licenciados. isto significa que, para nós podermos fazer um pouco este trabalho, nós temos de ir à procura de projetos. Uma parte significativa destes projetos são financiados pela Segurança Social, pelo Ministério da Justiça, porque temos coisas com o Ministério da Justiça, pela CCDR. E depois também temos projetos apoiados por Fundações, nomeadamente a Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação La Caixa. Ou seja, tentamos diversificar ao máximo estas fontes de rendimento, mas, como se sabe, depois as despesas são certinhas, todos os meses, e a recuperação ou o financiamento destas verbas necessárias, muitas das vezes surgem atrasadas. Depois, por exemplo, há projetos que não têm continuação, nomeadamente este projeto que temos com as pessoas em situação de sem-abrigo, termina no dia 30 de novembro. Por agora não recebemos aviso de que o projeto vai continuar, e isto significa que toda a equipa que nós temos a trabalhar nele vai para o desemprego.
E o problema persiste e agrava-se, não é?
Sim, de facto o problema persiste. Então, quer isto dizer que esta equipa que agora começou a dar os primeiros passos não vai ter continuidade? Vamos perder todo este conhecimento adquirido? A ligação que há entre as equipas e os utentes que são ligações muito precárias, porque ganhar a confiança das pessoas que estão na rua é extraordinariamente complicado, nós perdemos isto tudo?
Então deixe-me perguntar-lhe se não há perspetiva de renovação do projeto e da Equipa?
Em princípio há. Nós sabemos que as candidaturas vão abrir, mas desde abrir até haver dinheiro, vamos dizer, temos aqui, há 4, 5, 6 meses, e a Caritas não tem possibilidade, não tem capacidade para aguentar uma equipa de 6 pessoas que custa, no mínimo, 1.500 euros por mês cada uma. Feitas as contas são à volta de 50 mil euros em meio ano. A Cáritas não tem hipótese de pagar e aguenta. E, portanto, por mais que a gente tente mostrar às entidades, e fazer pressão, mostrar o trabalho que é feito, e as necessidades que há, depois esbarra aqui com estes problemas. Nós estamos aqui, por exemplo, neste caso, a tentar ver com a autarquia, se a gente consegue arranjar aqui uma possibilidade de solução provisória, porque senão isto perde-se tudo. E é diferente ter continuidade, ou ter de voltar ao início. As mais valias que poderia haver do ganho de competências que foi feito com o passado, nós podemos estar na iminência de as perder.
É preciso melhorar ao nível burocrático, não é?
É. É preciso que quem está nos lugares de decisão tenha consciência, porque isto,
como dizia o meu avô, já há muitos anos, o papel aguenta tudo. Ou seja, isto no papel tudo funciona sempre relativamente bem, mas depois na prática há todos estes entraves, todas estas coisas, que as instituições como a Cáritas e como a maioria das IPPS depois não têm capacidade para aguentar isto, não é?
A celebração do Dia Mundial dos Pobres, uma criação do Papa Francisco, pode ajudar a sensibilizar as comunidades católicas para estas questões de que estivemos aqui a falar durante estes minutos?
É claro que sim. Nós pretendemos que não seja só a comunidade católica. Aliás, este encontro que nós vamos fazer esta tarde em Beja no Dia Mundial dos Pobres, com a Cáritas Portuguesa para o lançamento também da campanha dos 10 milhões de estrelas inserida no Dia Mundial dos Pobres, tenta ser um encontro ecuménico. Ou seja, nós não vamos fazer isto só a pensar nos católicos. Todas estas pessoas que nós temos, pobres, migrantes, sem-abrigo, são pessoas. Muitas delas não têm religião, ou mesmo as que têm religião, nós não podemos olhar para este problema sob esse ponto de vista. Temos de olhar para as pessoas, para os problemas que elas têm. E, portanto, todas estas campanhas e todas as mensagens que o Papa Francisco nos vai transmitindo tem esse sentido, precisamente.
E acolher esta manifestação pública em Beja, este ano, do Dia Mundial dos Pobres, e do lançamento da campanha de Natal da Cáritas, é importante?
É. Eu costumo dizer, eu sou uma pessoa relativamente informada, e quando vim para a Cáritas, eu não fazia a mínima ideia do que era a Cáritas. Sou católico, mas eu não sabia minimamente o que era a Cáritas. Eu julgava que a Cáritas era uma instituição que, enfim, daria uns alimentos, uma roupita e pouco mais. E, então, se eu estou minimamente informado e não sabia disto, acontece que a comunidade, e vamos dizer, para falar só na cidade de Beja, suponhamos, e nestes arredores, eu diria, para ser otimista, que se calhar 95% das pessoas não sabem o que é a Cáritas. Conhecem a Cáritas, conhecem o seu nome, mas não sabem o que é a Cáritas, não sabem o que é que a Cáritas faz. Repare, a Cáritas tem um orçamento de quase 2 milhões de euros, tem 60 e tal funcionários, tem um conjunto de valências enormíssimas, e a Cáritas entre as suas grandes preocupações está tentar ver quais são as carências no território e tentar arranjar financiamentos e projetos, que possam ir tentando minimizar essas situações. Isso não é conhecido. Começa agora a ser conhecido, com todo este trabalho que tem vindo ultimamente a ser feito, mas ele não é conhecido.
E esta é uma forma de lhe dar a visibilidade que merece?
Esta é uma forma de dar a visibilidade e de fazer com que a comunidade sinta que estes problemas não são de algum, mas são de todos.
Na sua mensagem para este Dia Mundial, o Papa diz que é fácil cair na retórica,
ficando pelas estatísticas e pelos números. É importante lembrar, como pede o Papa Francisco, que os pobres são pessoas, têm rosto, uma história, coração e alma?
Aliás, eu já transmiti isso ao longo desta nossa entrevista, quando lhe disse que o papel aguenta tudo, e o papel não tem problema, o papel não tem rosto.
Mas nós estamos aqui no campo, no terreno, nós estamos sempre com a cara das pessoas à nossa frente. Se vier aqui à porta da Cáritas, estão aqui sempre meia dúzia de migrantes em perfeita rotação. Nós olhamos à cara das pessoas. A gente vai para a questão dos sem-abrigo que está na porta ao lado e nós vemos a cara das pessoas. A gente tem um centro local de alojamento de emergência, em que são pessoas que estão mesmo em fim de linha, que caíram mesmo no fundo, e vemos a cara das pessoas. E olhando para a cara das pessoas, isto é completamente diferente do que estar a trabalhar no Ministério ou algures num outro local.
Portanto, esta mensagem é extremamente importante e nós não podemos assobiar para o lado. Temos de pensar nas pessoas, sejam elas migrantes, sejam elas nativos, sejam elas quem for. Este é um trabalho de todos. E, portanto, a mensagem do Papa Francisco, como ele nos vem habituando, é mais que importante.