No VIII Dia Mundial dos Pobres, a presidente da Cáritas Portuguesa é a convidada da entrevista conjunta Ecclesia/Renascença, convidando a olhar para a realidade concreta de cada pessoa em necessidade
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
No início do ano, a Cáritas alertava num estudo para o facto das estatísticas oficiais subestimarem a pobreza e a exclusão em Portugal. Falava até que, em muitas dimensões, a situação se tinha agravado. Tendo em consideração o acompanhamento permanente que a Cáritas faz no terreno de todas estas situações, se se acentuaram os motivos de preocupação?
Pois, eu acho que a preocupação é um facto. Nós tínhamos este propósito de fazer um conjunto de estudos sobre a pobreza e acompanhar essa situação, na perspetiva dos indicadores que normalmente não são lidos. Porque a sensibilidade que nós tínhamos, em relação ao que estava a passar num território e às estatísticas nacionais, não nos davam clareza sobre o assunto e, sobretudo, não tinham uma leitura muito próxima da realidade. Portanto, realmente, esse foi um propósito que nós assumimos, que anualmente iremos fazer acompanhamento desses valores, para além daqueles tradicionais.
Na ocasião, a Cáritas falava de cerca de 500 mil pessoas que viviam em privação material e social severas e denunciava também o aumento do número de trabalhadores pobres. O cenário em nada se alterou? As instituições dizem que há mais pessoas carenciadas, por exemplo, em lista de espera para ajuda alimentar….
Eu acho que essa é a sensação que todas têm e é também aquilo que nós conseguimos ler dos dados. Uma coisa é dizer se as pessoas estão abaixo ou acima do nível da pobreza, mas há muitos níveis de pobreza e há muitas situações de carência que caracterizam ou que pintam essa situação de pobreza. Abaixo de um determinado nível, o que acontece é que as pessoas já estão abaixo do nível da pobreza, mas daí para baixo nós temos uma leitura muito irregular e essa foi a preocupação que a Cáritas teve.
Não dá para dividir em dois grupos e depois a partir daí tudo é tratado da mesma maneira?
Mesmo os que estão na exata proporção, da mesma condição financeira, não estão na mesma situação, porque uma coisa é viver na Lisboa, outra coisa é viver na aldeia, uma coisa é ter uma horta e a outra coisa é viver num prédio. Portanto, a leitura da realidade não se lê senão perto, não há dúvida nenhuma. É muito importante termos os estudos e as estatísticas, mas temos de retirar muito do que existe nos estudos e na estatística e que nós não lidamos tão finamente e também é importante olhar para a realidade, tentar perceber o que é que os números nos agridem. Porque quando os números nos dizem que temos menos pobres e depois, de repente, olhamos à nossa volta e não vemos nenhuma mudança, são as mesmas pessoas que estão naquela situação mais uns estrangeiros que vão chegando e mais outras pessoas, realmente isso deixa-nos um bocadinho sem saber para onde ir. Nós temos de saber resolver esta situação e, na verdade, nós não temos conseguido resolver o problema da pobreza e temos acrescentado novos pobres, novas situações, a esta situação que não conseguimos resolver.
Mas são os próprios números que nos dizem que há mais pobres, porque em 2023 havia mais de 20 mil pobres em Portugal do que no ano de 2022. Como é que se explica esta aparente ineficácia das estratégias de combate à pobreza e dos programas para pessoas em situação de sem-abrigo, por exemplo?
Bem, isso é a pergunta de um milhão de dólares, porque nós não sabemos, senão certamente já estaríamos todos a trabalhar nessa situação. O que sabemos é que a resiliência da pobreza é um forte obstáculo à resolução dos seus problemas.
A pobreza não é uma só e, portanto, nós vamos conseguindo resolver algumas situações, mas não a situação da pobreza em Portugal e também não conseguimos agir com base na leitura que fazemos, porque a leitura é uma leitura de números e não é de pessoas. Nós temos de olhar para as situações reais das pessoas e tentar encontrar soluções. E ainda que cheguemos a menos pessoas, temos de tentar resolver o problema da forma mais eficiente possível. Temos, entretanto, fenómenos que não têm facilitado esta alteração, mas é importante perceber se o número estabilizado do número de pobres tem a ver com diferentes situações ou se tem a ver com situações novas. Nós sabemos que temos mais estrangeiros, nós sabemos que temos pessoas que não conseguem sair da pobreza e essas situações, que são aquelas que nós acompanhamos mais diretamente, vamos tentando resolver a partir do diagnóstico social que é feito, mas há muita gente que nós não conhecemos e que pertence aos números. Por exemplo, o número de pessoas sem-abrigo aumenta, o número de alojamentos precários de pessoas nas cidades, na rua, aumenta e é isso que tem de nos convocar, mas tem de se ler muito de perto, não pode ser pela estatística.
Falou agora de uma das situações que queria perguntar, porque será evidente, até para muitas pessoas que nos ouvem, o impacto da crise na habitação. Nós sabemos que tem sido um tema que tem merecido a atenção da Cáritas Portuguesa. Na entrevista da última semana aqui na Renascença e na Ecclesia, foi-nos chamada a atenção para uma situação muito específica, que é das famílias de desalojadas que têm crianças a serem encaminhadas para centros de acolhimento. Isto é um sinal, tem ideia também destas situações e do que é que elas podem significar?
Durante muito tempo, e até há muito pouco tempo, nós não tínhamos uma grande preocupação com as crianças e isso é que é assustador. É que agora já há muitas famílias nesta situação, há muitas famílias a viverem situações verdadeiramente precárias e nos grandes centros pior do que nas periferias.
Se já é difícil pensar que existem 10 pessoas a viver num quarto, como é que nós conseguimos pensar em duas famílias viver no mesmo quarto? Por isso digo que não é só um número, é a tipologia que se junta a este número. É incrível, porque uma coisa é viver um conjunto de homens e juntarem-se num quarto onde dormem e só pernoitam lá, outra coisa é as pessoas precisarem de uma casa para viver, onde vão educar os seus filhos, onde recebem os seus pais. Isso é uma verdadeira evidência de que o fenómeno se está a complexificar e que nós temos de fazer alguma coisa.
Mas esta ideia de que as famílias desalojadas estão de alguma forma a ser separadas das crianças que estão a serem encaminhadas para os centros de acolhimento é uma perceção que Cáritas também tem vindo a conhecer?
Não temos essa situação estudada e eu acho que nós sempre temos de ter alguma atenção à forma como dizemos as coisas. Durante muito tempo não nos incomodamos com as crianças que estavam sem abrigo na rua, porque elas andavam com os pais e, portanto, como andavam com os pais a situação era mais fácil de agarrar: nós agarrávamos a situação pelas crianças e tentávamos encontrar soluções para a vida dos pais, arranjando soluções para a vida dos pais arranjávamos soluções para as vidas dos filhos.
Com esta situação da habitação, com a habitação encarecida como está, há cada vez mais gente em situação de fragilidade. E, por vezes, encontramos pessoas que nem são óbvias, a viverem em situação de sobreocupação, escondidas. Porque essas pessoas vivem da porta para dentro e têm medo de serem descobertas, portanto nem sequer fazem vida social, não mostram as crianças porque têm medo que lhas tirem, não deixam as crianças pedirem na rua porque têm medo de ficarem sem elas. Portanto, há aqui um conjunto de medos que se junta ao problema. É um problema de falta de habitação, mas ter falta de habitação com medo deve ser uma coisa terrível, não é? E é uma coisa que realmente nos convoca para pensar.
Neste oitavo Dia Mundial dos Pobres, quero fazer-lhe uma pergunta de uma preocupação que o Papa Francisco tem assumido. Em vários dos seus textos, em vários dos seus discursos, o Papa tem falado de uma sociedade com cada vez maior aversão aos pobres. Tendo em conta a capilaridade da Cáritas e a sua presença no terreno português, esta ideia de que há uma espécie de uma barreira que vai sendo criada entre a população em geral e os mais pobres, os mais necessitados, é algo que se começa a sentir no país?
Depende da forma como se mede. Eu não acredito nisso como atitude absoluta. Acho que há algumas questões que afastam uns dos outros. Por exemplo, ontem falávamos de um prédio em que o prédio era normal e era estável e agora neste momento vários andares estão sobreocupado, cada um deles, com pessoas que fecham a porta à passagem só para ninguém perceber quantas pessoas lá estão dentro. Portanto, há aqui uma aversão que é de medo.
Há uma tensão…
Pois, exatamente. É uma tensão que nós temos de prevenir antes que degenere com outras coisas, porque não é só a tensão, o que é que a tensão nos pode trazer. Entre o medo e a agressão…
Muitas destas intervenções do Papa, talvez para o contexto português não sejam tão evidentes, mas tem a ver muito com a organização, por exemplo, da urbe. Ele fala muitas vezes isto em Roma, como se a ideia, sobretudo dos sem-abrigo, mas dos mais pobres na rua fosse algo que a cidade tivesse de limpar, até para ter outro tipo de imagem. E percebe-se esta preocupação que vai um bocadinho em contramão com aquela que é a mais genuína preocupação do Papa, de promover uma cultura do encontro e não do descarte….
Pois, exatamente. E é também a cultura da Cáritas. Nós vamos à procura dos problemas, não lhes fugimos. Portanto, o que nós queremos mesmo é conhecer para cuidar, não é conhecer para agredir.
Mas eu percebo que a fronteira entre a atitude mais certa é muito difícil. Quando nós vemos que, por exemplo, numa grande cidade se encontra como solução para resolver o problema dos sem-abrigo, empurrar os sem abrigo de um sítio para o outro, eu pergunto como é que nós resolvemos o problema. Certamente que não. As pessoas é que se sentem esgotadas entre quererem dar o olhar de uma urbe muito saudável e muito bonita e a situação das pessoas que estão visivelmente em situação de precariedade.
Podemos relacionar os recentes acontecimentos em alguns bairros de Lisboa a um aumento das situações da exclusão ou tratou-se de um fenómeno localizado e associado apenas à insegurança?
Não tenho a certeza da resposta certa a essa pergunta e nem sei se alguém poderá ter. E até temo que “os achismos” sejam mais provocadores de agressão do que as verdades. Mas aquilo que posso dizer é que há um grande desconforto nas zonas e que tem, de certeza, dois polos. Um polo das pessoas que sempre, na situação de alguma precariedade, viveram naqueles bairros, mas que o sentem como seus e a chegada de pessoas que veem agredir porque os querem retirar dali.
Uma coisa é a violência da segurança, que normalmente não se resolve com soluções de segurança. Outra coisa é as pessoas sentirem-se acossadas no seu próprio sítio: “a minha casinha é muito humilde, mas é minha. Este é o sítio onde eu posso morar. Este é o sítio onde eu me sinto segura”. Porque as outras pessoas não sentem medo de morar naquele bairro. E as instituições também não tiveram medo nunca de ir trabalhar para esses bairros. O que acontece é que, se começa a haver situações de violência, deixa de ser possível até cuidar com segurança. E isso é o que me preocupa mais.
Os movimentos são muitos. Entre aqueles que são oportunistas, porque têm droga para circular, porque têm coisas para esconder, e, portanto, convém fechar o máximo possível os bairros. E as pessoas que sempre lá viveram, e viveram e sentem aquele bairro como seu, embora sejam pessoas com grandes fragilidades financeiras ou sociais.
Olhámos agora um bocadinho para esta ideia de uma crise de solidariedade que possa existir, mas sobretudo também para o impacto da crise económica que se tem prolongado no tempo. Que relatos têm de dificuldades, por exemplo, das Cáritas de Diocesanas em fazer face às solicitações e em responder a quem pede?
As pessoas começam a ficar exaustas de tanto problema social sucessivo. Mas também procuram outras soluções. Neste momento há a grande preocupação de que a forma como as pessoas fazem apoio social seja segura e consequente. E isso eu acho que nós temos de responder naturalmente.
Não podemos de maneira nenhuma correr o risco de perder esta vontade solidária porque não temos soluções. E é por isso que nós muitas vezes chamamos a atenção para as pessoas se solidarizarem com aquilo que conhecem, que é mais próximo e que pode surtir efeito no futuro. Não vamos maquiar a realidade. Nós estamos com grandes problemas sociais. E isso vê-se na proximidade, como em outro sítio não é possível. Mas, na verdade, as pessoas têm hoje mais preocupação em ser consequentes com a ação que fazem do que meramente darem qualquer coisa para limpar a alma. Já não é só limpar a alma, é limpar a alma, mas sentir que estão a fazer alguma coisa para mudar.
Há uma questão que eu queria colocar, apesar de não termos a informação toda sobre o assunto. O Instituto de Segurança Social decidiu avançar com o cartão social que poderá ser usado em 400 estabelecimentos. A Cáritas foi convidada para aderir ao programa. Sabe como vai funcionar?
Nós participamos em várias fases, porque nós já tínhamos isso. Nós já tínhamos um cartão há muito tempo e, portanto, fomos naturalmente chamados a pronunciar-nos sobre a forma como funciona, sobre como fazemos e foi-nos pedido que colaborássemos com as medidas que ainda não estão no terreno e que resolvem vários outros problemas que, se calhar, não são tão evidentes. O Programa Alimentar do Estado tem regras de contratação pública que são extraordinariamente difíceis e que estão, neste momento, até a criar dificuldades a quem gere estes programas no território. Se demora tempo a ser possível fazer um concurso para adquirir peixe, depois o peixe vem todo ao mesmo tempo. Como é que se faz a distribuição do peixe? E o próprio Estado percebeu que era importante ser consequente com as necessidades. Nós não podemos ter peixe fresco e depois não ter sítio para o manter. E, portanto, quando começaram a ver as iniciativas que havia, nomeadamente a da Cáritas, utilizando cartões e os resultados que nós tínhamos de segurança, de acompanhamento das famílias, etc., perguntaram-nos e nós colaboramos nesse sistema. O programa é um programa europeu, portanto também tem regras europeias.
Podemos perder-nos na burocracia?
Se calhar é melhor perder-nos algum bocadinho na burocracia e não nos perdermos em peixe podre. Eu acho que nós temos de ser muito sensatos em olhar para isto.
Já toda a gente trabalha com cartões. Nós temos de cuidar de quem não trabalha com cartões e tem de ter soluções. Não podemos criar uma decisão definitiva sem cuidar daqueles que ainda não estão nessa onda e não vão conseguir estar. E esses são os mais pobres dos pobres, certamente.
Mas, por outro lado, há muitos a quem será menos agressivo comprar com um cartão e poder comprar um leite sem lactose para uma criança que tem problemas de alergias do que receber 5 litros de leite e depois a criança não poder beber ou ficar doente. Eu diria que aquilo que nós conseguimos com este sistema será certamente mais útil para as pessoas e para as famílias, naturalmente com um acompanhamento muito, muito próximo para que não haja desvios em relação àquilo que se pretende: que as pessoas tenham uma vida mais digna, com uma alimentação mais saudável.
Em plena discussão, na especialidade do Orçamento do Estado, não estranha o muito reduzido debate à volta da questão dos pobres?
É uma questão que está em cima da mesa e não está nada decidido, não está nada definido. Eu acho que não há discussão em relação à situação dos pobres. Não é discutível, é evidente: nós sabemos onde estão, quem são.
O que nós temos de cuidar é quais são as medidas dignas para resolver a situação dos pobres. Eu estou em crer que, neste momento, a situação dos pobres está bastante mais próxima, supostamente, porque neste momento está com os municípios, há muitas coisas que saíram do Estado central. Eu acredito na proximidade, é por isso que eu acredito na ação da Cáritas e, portanto, acredito que os municípios também poderão e terão obrigações de fazer mais próximo, de uma maneira diferente, porque a pobreza não é igual em todos os territórios, não me canso de dizer isto. Quando nós pensamos num programa, não podemos priorizar o programa em relação à situação das pessoas e, por isso, a proximidade deve ser favorecedora de uma solução melhor. Evidentemente, eu direi que a situação do pobre não é uma coisa que seja escrita num livro. Portanto, se nós tivéssemos tudo escrito num livro, podíamos dizer, eu vou apoiar isto, isto e aquilo. Nesta situação, nós temos de olhar para os pobres e ver qual é a solução para cada situação. E a situação de um e do seu vizinho pode ser completamente oposta.
Por isso, a minha esperança é na proximidade e a minha esperança é que a proximidade saiba ser transmissora da realidade e depois convocar e exigir as medidas para essa situação. Não me parece que uma coisa do domínio do programa (Orçamento) de Estado seja solução para as situações da pobreza em Portugal, porque o Estado não conhece a pobreza em Portugal. Quem conhece a pobreza em Portugal é quem está próximo.
Neste Dia Mundial dos Pobres que a Igreja Católica celebra hoje, a Rede Nacional da Cáritas lança a campanha 10 milhões de estrelas, um gesto pela paz, como aliás já faz há alguns anos. Olhando para essa proximidade e as necessidades no terreno, qual é a importância desta campanha de Natal para a Cáritas?
Não é uma importância, são várias importâncias. Esta campanha não é uma campanha de distribuição de alimentos, é uma campanha de chamada de atenção. E, portanto, há aqui algures entre o poder da mensagem e o poder do apoio que são muito importantes. Não há ninguém que melhor possa apoiar do que um vizinho. Não há. Portanto, se nós conseguirmos convocar as pessoas para a atenção à situação de precariedade dos seus vizinhos, já é bastante importante.
Nós fazemos esta campanha com esse duplo sentimento. O sentimento que nós, Cáritas em Portugal, precisamos de apoios de quem está mais próximo para resolver estas situações. Não é uma coisa que se faça de Orçamento de Estado, só; nós também temos obrigações solidárias e cada um de nós deve estar muito atento às situações que nos estão mais próximas. A campanha tem essa vocação de que cada um de nós pode ser uma estrela na vida de alguém.
‘Dez milhões de estrelas’, eu gosto muito deste dez milhões de estrelas porque é referência aos dez milhões de portugueses, já não são dez milhões, mas pronto… é referência que cada um de nós pode ser a estrela na vida de alguém. E, às vezes, não é com muito, é mesmo com proximidade e com pouco. Por isso, o desafio é que esta campanha, naturalmente, nos dê condições para chegar o mais perto possível das pessoas que precisam e também com uma percentagem para algumas comunidades que nós também apoiamos, que são as comunidades ‘Laudato Si’, dos países de expressão portuguesa.
Mas tem uma parte de incentivo à proximidade que é, para nós, muito importante. Porque, de facto, quem pode fazer a diferença na vida dos pobres é quem está mais próximo.