Igreja/Portugal: «Nós, cristãos, não devemos ter vergonha de ser amigos dos ciganos»

Em vésperas do Dia Internacional do Cigano, é convidado da Renascença e da Agência Eclésia, Hélder Afonso, diretor nacional da Pastoral dos Ciganos, organismo (da Igreja Católica, que visa promover o desenvolvimento espiritual, humano e social desta população e a sua inclusão na sociedade portuguesa

Foto: RR/Henrique Cunha

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Após a sua nomeação, em novembro de 2023, manifestou a intenção de visitar todas as comunidades de etnia cigana espalhadas pelas nossas dioceses. Já iniciou esse périplo?

Vai ser de facto uma missão bastante difícil, não é impossível, mas é uma missão difícil porque cada realidade em cada diocese, em cada região é diferente. Já iniciei e já visitei algumas comunidades na diocese de Bragança. Tive a oportunidade, agora em fevereiro último, de estar com a pastoral dedicada aos ciganos da diocese de Bragança. Aliás, a Cristina também é um dos membros da direção, e tive a oportunidade de reunir com ela, de ver o trabalho deles, de ver o trabalho daquela diocese; um trabalho muito válido também. Um trabalho com características diferentes, se calhar, daquelas que vemos no Alentejo, ou em Lisboa, daquela que vemos até em Vila Real, mas um trabalho de grande proximidade, juntamente também com alguns elementos que já fazem daquela pastoral no seu dia-a-dia. E estou-me a lembrar de alguns professores que se dedicam integralmente ao ensino de jovens e de miúdos ciganos.

 

Falou também da importância de implementar em cada diocese um secretariado ou uma valência ligada esta pastoral.

Sim, esse secretariado, se calhar, em grande parte das dioceses até já existe. Está é inativo ou está sem um grande trabalho pastoral. Grande parte dos secretariados da Cáritas já fazem esse trabalho de proximidade e nós às vezes fazemos uma junção, e misturamos aquilo que é o trabalho com a etnia cigana, com aquilo que são os apoios sociais. E por isso é que grande parte das dioceses juntam a pastoral social à pastoral das migrações, com a pastoral das minorias étnicas ou a pastoral dos ciganos: Se calhar seria importante, e vai ser essa também a nossa missão enquanto Direção Nacional, mostrar à hierarquia, mostrar aos senhores bispos que de facto podemos fazer diferente. A Cáritas faz o trabalho dela, e bem, um trabalho muito válido, mas a pastoral dos ciganos ou o que queriam chamar, se calhar, minorias étnicas, e há dioceses que lhe chamam minorias étnicas, e outras que lhe chamam pastoral dos ciganos e não temos de ter medo, não temos de ter receio de dizer: Pastoral diocesana dos Ciganos. É um trabalho que as dioceses podem fazer de grande proximidade. Nós ao querer implementar ou querer reiniciar esse trabalho nas dioceses estamos a dizer que queremos estar próximos. A Direção Nacional não tem qualquer supervisão sobre as dioceses; pois cada diocese tem a sua autonomia e assim é que deve ser, mas devemos trabalhar em colaboração e trabalhar em proximidade, só assim conseguimos na Igreja fazer um trabalho válido e um trabalho que vá ao encontro dos nossos irmãos ciganos.

 

Pessoalmente, como é que é a sua experiência neste campo? 

É uma experiência muito válida. Na minha comunidade, em Vila Real, na freguesia onde vivo, tenho uma comunidade de ciganos, tenho uma aldeia de Lagares que 80% são ciganos. Portanto eu estou nesta missão já há algum tempo. Aliás entrei com o Padre Francisco Sales em 2013, embora de uma forma informal para a Direção Nacional, e colaborava com eles, mas depois tive sempre uma ligação muito próxima com a comunidade cigana. Aliás sou padrinho de três ciganos, fruto também da minha ligação e do meu envolvimento com eles no meu dia-a-dia. E de facto a comunidade cigana tem de sentir em nós alguma proximidade e algum afeto e algum carinho por aquilo que é a comunidade e a cultura deles. Não nos podemos imiscuir daquilo que é a cultura deles e temos de estar com eles naquilo que é bom, nos aniversários, na doença, como na visita ao hospital, ou até também na morte e naquilo que são as festas deles.

 

Para quem está a ouvir e talvez não esteja tão por dentro do assunto, do que é que estamos a falar, como é que se pode caracterizar a realidade da etnia em Portugal? 

Nós neste momento temos realidades diferentes. Nós estamos a falar de ciganos com baixa escolaridade, e que no interior vivem essencialmente daquilo que é a agricultura, daquilo que é a pastorícia. Eu diria que lá por Vila Real grande parte da comunidade tem animais, dedica-se à agricultura. Depois estamos a falar de uma realidade de ciganos ligada ao comércio, essencialmente calçado, vestuário. Por norma dedicam-se exclusivamente a isso. E estamos a falar de um grupo de ciganos com outro poder económico e que estava enraizado na sociedade portuguesa. E nós podemos ver agora uma realidade que nos últimos anos tem surgido, que é a realidade da música da etnia cigana, e que podemos também aproveitar e devemos também fazer esta ligação.

 

É uma forma de inclusão também? 

É uma forma de inclusão e uma forma de proximidade à restante sociedade, porquê? Nós hoje ouvimos sempre, pela negativa, a falar dos ciganos. Estamos sempre a ouvir falar que são subsidiodependentes, que são parasitas da sociedade, mas não.

 

Tem ideia de quantos são e onde vivem a maior parte dos ciganos? 

Por aquilo que eu pude perceber no Observatório das Comunidades Ciganas, nós estamos a falar de cerca de 60 a 70 mil ciganos. Até dezembro, esteve um concurso na Fundação Ciência e Tecnologia, para se fazer um estudo aprofundado sobre as comunidades ciganas em Portugal. Portanto, está neste momento em fase de términos esse concurso, para que seja possível apurar quantos são, como é que vivem, a sua escolaridade. Aliás, uma das minhas primeiras reuniões foi com o Observatório das Comunidades Ciganas, porque também queremos estar com eles neste trabalho de proximidade.

 

Voltando à sua saudação, deixou também um sublinhado às palavras de Francisco, de que na igreja há espaço para todos. Esse desafio de encontrar soluções e estratégias com todos os agentes que trabalham nas instituições e de fazer esse esforço de estar próximos dos mais frágeis e excluídos da nossa sociedade, já está de alguma forma a ser cumprido, ou não? 

Eu também quis usar aquela expressão do Papa Francisco, todos, todos, porque nós queremos uma sociedade inclusiva, mas depois só a queremos para alguns. E quando se fala das comunidades ciganas, há sempre um torcer de cara daquilo que são as suas vivências e daquilo que é a sua cultura. As instituições acolhem todos, e eu estou a lembrar-me das instituições de solidariedade social, que não fazem exceção de pessoas. Estou a falar também da escola, estou a falar da parte da saúde. Se calhar na habitação nem sempre isso acontece. Quando há uma comunidade cigana que quer ir para uma habitação social, se calhar, provavelmente existirá aqui alguma resistência por parte das instituições, mas este trabalho tem que ser feito de muita proximidade com eles. Perceber a cultura deles. Nós não podemos arranjar estratégias para os ciganos, para a comunidade cigana, sem perceber a cultura deles. E foi uma pena que a estratégia que terminou agora em 2023 não tenha sido renovada. Existia a estratégia da integração da comunidade cigana que terminou em 2020, mas que depois devido à pandemia foi prorrogada até 2023, e agora essa estratégia terminou e não surgiu uma nova, tendo em conta aquilo que correu bem, tendo em conta aquilo que correu também menos bem até à data, e aquilo que poderemos fazer numa nova estratégia.

 

Isso pode ser um desafio para o novo governo? 

Sim, penso que sim, aliás, uma das minhas propostas na direção é que a breve prazo possamos também, junto do novo governo, fazer esta marcação. Queremos pedir uma reunião, para também sermos parte integrante dessa estratégia, porque conhecemos a realidade, conhecemos as comunidades, conhecemos a cultura cigana e queremos também ser parte da solução. E conseguir que a estratégia possa também ter frutos positivos. Às vezes fazem-se grandes estratégias, fazem-se grandes tratados, mas depois na prática eles não são executados, ou uma ínfima parte é que é executada e grande parte ninguém conhece, e se calhar os ciganos não conhecem a estratégia.

Eu digo-lhes muitas vezes, vós não podeis só olhar para aquilo que são os vossos direitos, também tendes de olhar para aquilo que são os vossos deveres, porque aqui está uma solução e aqui está uma estratégia para que nós consigamos estar com eles.

 

 

Como é que a estrutura que dirige olha para a realidade portuguesa, onde algumas ideias racistas e xenófobas parecem ganhar adeptos?

É muito fácil ter essas atitudes contra uma comunidade – embora possa ser a maior comunidade das minorias étnicas, mas é uma minoria muito, muito pequena, estamos a falar de 60, 70 mil pessoas -, é muito fácil os partidos, é muito fácil a sociedade atirarem a pedra. Há dias estive no ISCTE, a falar sobre a comunidade cigana, em Lisboa, e os nossos alunos aquilo que atiram sempre é que as “comunidades ciganas não gostam de trabalhar e vivem de subsidiodependência”. E eu lembro-me sempre daquela passagem do Evangelho de São João que é quem não tiver pecados, quem não tiver nada, que atire a primeira pedra. Ou seja, nós não podemos só olhar para os ciganos como caçadores de direitos, de subsídios. Não, estamos a falar de uma comunidade que tem os mesmos direitos que a restante sociedade. Eles não estão desprovidos dos seus direitos por serem ciganos.

 

Mas do ponto de vista político, a avaliar pelos resultados eleitorais, pelo menos dos últimos, não há algo que está aqui a falhar? Certas ideias, do ponto de vista racista e xenófobo, ganharam muita projeção no Parlamento que se constituiu…

Sim, ganharam, porque é fácil ter esse discurso, o discurso de ódio, o discurso de que eles são os parasitas da sociedade, isso é fácil de dizer. Agora, difícil é ter estratégias e implementar estratégias que os façam, eu não diria que os façam mudar, mas que tenham outro tipo de mentalidade e outro tipo de abordagem ao assunto. Ou seja, nós quando vemos alguns partidos políticos atirar que os culpados de tudo e mais alguma coisa são os ciganos, não podemos conceber isso.

Aliás, eu pretendo também, junto da nova Assembleia da República, também tentar alguns encontros, algumas reuniões, para desmistificar esse conceito.

 

Mas com todos os partidos?

Com todos os partidos, é evidente. Não podemos fazer aqui aceção de partidos, nomeadamente aqueles que, se calhar, são um pouco mais contra a etnia cigana, contra as minorias.

 

 

Mas tem de haver alguma veemência aí da sua parte, nomeadamente com esse partido que está a falar agora?

Tem de haver, tem de haver disponibilidade e temos de levá-los a compreender aquilo que é a comunidade cigana e, se calhar no âmbito da nova estratégia para as pessoas ciganas, é preciso perceber o que é que ali podemos colocar para que esse conceito, para que essa ideia, para que esse preconceito possa desaparecer ou possa diminuir da sociedade e de alguns partidos.

 

Já percebi que, do seu ponto de vista, pensa que é importante que a Igreja se empenhe a contrariar o sucesso destes pensamentos de caráter populista e racista…

Sim, claro, a Igreja também tem de ser aqui um ponto de proximidade com os partidos. D. Manuel Linda falava no Domingo de Páscoa acerca dos cristãos na política. Claro, nós devemos também envolver-nos, enquanto cristãos, naquilo que é política, política ativa, junto dos partidos, junto da Assembleia, junto dos nossos governantes, para mostrar o nosso acordo ou o nosso desacordo com aquilo que são as políticas para as minorias étnicas e, nomeadamente, para os ciganos. E devemos ter aqui uma palavra a dizer, e a Igreja aqui não deve ter receio de se envolver, de mostrar que está atenta, de mostrar que está atenta aos ciganos, de mostrar que está atenta às minorias étnicas, de mostrar que quer fazer acontecer algo nestas comunidades.

 

Já teve a oportunidade de conversar com o presidente da Agência para a Integração, Migrações e Asilo, o organismo que substituiu o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Qual a importância de manter estes canais de diálogo com as instituições públicas, tendo em conta até o conhecimento do terreno por parte das instituições católicas?

É muito importante nós, enquanto Direção Nacional da Pastoral dos Ciganos, podermos envolver-nos com as instituições que estão na frente de combate destas situações, nomeadamente a AIMA. Eu pedi uma reunião ao Dr. Luís Pinheiro, que é o presidente do Conselho Diretivo da AIMA, e que se mostrou logo disponível para reunir connosco, até porque com a junção do SEF e do Alto Comissariado para as Migrações, a AIMA ficou aqui com todos os recursos humanos e também com toda a disponibilidade para trabalhar esta problemática, para trabalhar este desafio. E, de facto, fiquei muito contente, reunimo-nos na sede da Conferência Episcopal, em Lisboa, onde ele se mostrou disponível para novos projetos, para apoiar novos projetos, para apoiar novas dinâmicas, para nos apoiar naquilo que é também o nosso interesse, enquanto Estratégia Nacional para os Ciganos, a questão da habitação, da educação, da saúde, e levar-nos a conhecer melhor também a realidade dos Ciganos a nível do país, que como eu disse há pouco, é totalmente diferente no interior, no litoral, em Lisboa, em Vila Real, no Alentejo – e estamos a falar, no Alentejo, numa comunidade bastante desprotegida. Estamos a falar de uma comunidade que vive num prédio abandonado e tivemos a oportunidade de ver isso em agosto de 2023, de ver aquela realidade daquela comunidade que vive toda isolada naquele prédio, totalmente desprovido de condições dignas para um ser humano. E nós, enquanto cristãos, não podemos fechar os olhos à realidade do povo cigano. Nós, cristãos, temos a obrigação de nos envolvermos, costumo dizer sujar as mãos, não é o termo mais correto…

 

Mas o Papa também o usa, sim.

Sim, mas envolver-nos naquilo que é o trabalho com a etnia cigana. É difícil? Sim, não é um trabalho fácil, mas todos os trabalhos que envolvem pessoas, que envolvem indivíduos, muitas vezes desprotegidos, muitas vezes até colocados de parte, isso dá trabalho. E esse trabalho deve ser feito por cristãos e não devemos ter medo de o fazer.

 

Em 2021, muito simbolicamente, o Papa, quando esteve na Eslováquia, encontrou-se com membros da comunidade cigana. Sabemos que representam a maior minoria étnica na Europa e, ao mesmo tempo, também a mais discriminada. O que é que está a falhar na União Europeia?

Nós nos últimos 3, 4 anos envolvemo-nos muito, a União Europeia envolveu-se muito na questão dos refugiados, e bem, mas esqueceu-se um pouco dos nossos ciganos, da maior minoria, que é a comunidade cigana. E a Europa esqueceu-se – fruto também, se calhar, de alguns partidos europeus que põem de parte essa etnia – dos nossos ciganos, com uma história de mais de 500 anos… o Papa em 2015, num encontro em Roma, onde eu estive presente, falou isso, que devemos ser cristãos próximos destas minorias, cristãos próximos dos nossos ciganos.

 

Ir ao encontro de todas as periferias…

De todas as periferias, para os trazer, e como eu disse há pouco, entender aquilo que é a cultura. Uma Europa mais inclusiva, uma Europa mais capaz de mostrar junto dos países-membros. Aliás, temo-lo visto com alguns projetos de integração a nível europeu, se calhar muitas vezes não tão bem aproveitados. Eu vou estar agora no encontro anual do Comité Católico Internacional para os Ciganos (CCIT), [12 a 14 de abril] em Lyon [França], onde vamos também abordar as fronteiras…

 

Atravessar fronteiras é o tema, não é?

Os nossos ciganos no atravessamento de fronteiras e a ligação com todos os povos, em todos os países.

 

Atravessar fronteiras é o tema, como dizia, mas não será necessário agora, perante o atual contexto, a montante, derrubar certas e determinadas fronteiras que se vão formando?

Se calhar eu diria atravessar corações. É importante que nós, enquanto cristãos, derrubemos essas fronteiras, derrubar aquilo que está dentro do nosso coração, relativamente a uma minoria étnica, algum preconceito, derrubar esse preconceito que está no nosso coração, derrubar essa falta de proximidade, derrubar também a vergonha. E nós, cristãos, não devemos ter vergonha de sermos amigos dos ciganos, porque às vezes há muito isso: quando se fala da comunidade cigana, fala-se baixinho, tem-se receio que os que estão ao nosso lado hoje…

 

Mas para falar mal, fala-se alto…

Porque é mais fácil, é muito mais fácil falar mal, e quando se fala dos ciganos é muito amplamente ouvido. E nós, enquanto cristãos, devemos ter essa proximidade, devemos derrubar o que nos impede de falar com os ciganos, derrubar aquilo que nos deixa indiferentes – e nós muitas vezes somos indiferentes às problemáticas dos ciganos, que são muitas, e são diversas -, ter essa capacidade de derrubar a fronteira e derrubar problemas que estão intrinsecamente no nosso coração, e que nós, enquanto cristãos, não devemos ter medo de o fazer.

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