Igreja/Portugal: Fátima criou «uma nova forma de representar a Virgem Maria»

Pela quarta-vez na história, a imagem de Nossa Senhora de Fátima foi até Roma, desta vez para o Jubileu da Espiritualidade Mariana. A escolha, feita ainda pelo Papa Francisco, comprova  a importância que o Vaticano lhe atribui, diz Marco Daniel Duarte.

O diretor do Departamento de Estudos e do Museu do Santuário diz que com Fátima surgiu uma nova forma de representar Maria, a ‘Senhora de Branco’, e não tem dúvidas de que essa imagem inspirada nas aparições aos pastorinhos é atualmente a mais universal de todas as que existem. Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia lembra que foi sobretudo desde João Paulo II que se estreitou a ligação dos papas a Fátima, numa união que hoje todos associam à defesa da paz mundial. Mas defende que “há mais a estudar” a partir de Fátima, e gostaria que Portugal fizesse essa aposta. A imagem de Nossa Senhora regressa este domingo de Roma, a tempo da peregrinação aniversária de 12 e 13 de outubro.

Foto: Agência ECCLESIA/MC

 

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

A imagem que todos conhecemos de Nossa Senhora de Fátima é hoje uma referência de Portugal no mundo. Como se explica que esta imagem, vinda de um espaço tão específico e marcado pelas aparições de 1917, tenha alcançado esta dimensão universal na Igreja?

Na verdade, quando olhamos para a história de um país, e para a história da Igreja nesse país, e quando percebemos que, em 1917, Portugal era o sítio mais afastado dos governos mundiais, não existia em qualquer cartografia ou mapa, não tinha aquele pontinho a assinalar Fátima. E a partir daquele fenómeno religioso que se desenvolve desde a Cova da Iria, e que, em menos de uma década, já tinha extravasado, de facto, os muros do país, percebemos que há uma série de dimensões que fazem acontecer Fátima a partir daquele lugar, mas que o fazem transbordar para outras latitudes.

A imagem de Nossa Senhora de Fátima não é, obviamente, estranha a este fenómeno. Aliás, a partir do momento em que os peregrinos sentem necessidade de tornar corpo, a partir de uma imagem, de um ícone, a entidade que os pastorinhos diziam ter visto – e para os pastorinhos e para os crentes essa entidade tem um nome muito concreto, é a Mãe de Deus, Maria, Mãe de Jesus, figura importantíssima do cristianismo, figurada de maneira muito próxima daquelas que são as descrições dos pastorinhos – , a partir desse momento, em Fátima, aparece um binómio muito específico que é a capelinha, por um lado, que marca o lugar da aparição, e a imagem, que passa a ser a vera efígie da Senhora de Fátima.

 

Mas qual é o segredo para que Fátima seja tão facilmente reconhecível em todo o mundo? 

É precisamente a partir, quer da geografia do lugar, quer depois a partir da imagem que chega a todos os lugares, que transborda daquele lugar. Qual é o segredo? O segredo é precisamente aquele ícone específico, aquela materialização da aparição numa representação escultórica, também, misteriosamente, com uma fortuna crítica incrível.

Mesmo ao nível dos historiadores da arte foi sempre muito difícil de explicar como é que uma escultura, à partida tão simples e até desvalorizada do ponto de vista artístico…

 

Vamos falar disso também…

Como é que sendo desvalorizada – mas sem sentido, obviamente, porque se ela tem aquela força é porque plasticamente também tem o que se lhe diga -, a partir daquele momento, do dia 13 de maio de 1920 e de  13 de junho de 1920, porque é nessa data concreta que ela chega à Capelinha das Aparições, os peregrinos ganharam a materialização da Virgem aparecida em Fátima. E foi de tal maneira forte aquela dimensão posta em escultura, que ela ganha um lugar até na própria narrativa das representações marianas ao longo da história da arte.

Na verdade, é a primeira vez que na história da arte se representa a figura de Maria daquela maneira, toda vestida de branco, as mãos postas à altura do peito já existia, obviamente, já havia modelos que mostravam isso, mas essa ideia da mulher toda vestida de branco, que já se tinha experimentado em Lourdes, mas aquela faixa azul, que é típica também da cor mariana, coloca-a muito próxima deste ícone, mas, na verdade, há ali uma nova forma de representar a Virgem Maria.

 

A presença neste Jubileu da Espiritualidade Mariana representa a quarta vez que a imagem da Capelinha se desloca ao Vaticano. Que continuidade histórica é que podemos reconhecer nestes gestos e o que é que distingue este momento particular dos outros anteriores?

Eu acho que há, de facto, distinções. Enquanto o Papa João Paulo II, em 1984, chama a imagem por causa das questões relativas a Fátima, e à sua biografia em concreto – a biografia do próprio Papa, que se cruza, por causa do atentado, com a cronologia de Fátima, obviamente -, mas o Papa chama a imagem para consagrar o mundo ao Imaculado Coração de Maria, para se fazer missionário da própria mensagem de Fátima, que ele assume de uma forma fulgurante e que quer dizer ao mundo que é importante. Portanto, essa primeira viagem tem esta questão – eu chamo a imagem para cumprir um mandado da Virgem em Fátima. Mas depois, as outras vezes que a imagem vai, ela já aparece como a representar a identidade mariana ao nível universal.  Porque nós conseguimos perceber que há imagens de Nossa Senhora que representam partes do mundo, por exemplo, a Imperatriz das Américas, é a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe. Mas, para os outros continentes, a Virgem de Guadalupe não tem um culto reconhecido por todos ao nível universal.

A Senhora da Aparecida, o Brasil é um continente e para os brasileiros, obviamente, é a sua mãe, a Virgem da Aparecida. E aquele ícone da Virgem Negra com o manto é reconhecível pelos brasileiros.

Em Espanha há também alguns modelos. A própria Virgem de Lourdes teve um culto muito globalizado, mas no tempo contemporâneo parece que o Vaticano reconhece que é a imagem de Nossa Senhora de Fátima o modelo mariano mais globalizado, mais absorvido em todas as geografias, em todos os continentes.

Nós, em Portugal, não temos esta dimensão. Parece que não nos lembramos disso. Não temos essa noção.

 

Vendo os peregrinos que passam sistematicamente, dá para perceber a variedade de países.

Claro.

 

Falou já da ligação que, neste momento, é absolutamente umbilical entre a mensagem de Fátima e os papados contemporâneos. Essa ligação foi moldando também a receção e a universalidade da mensagem de Fátima?

É também um fenómeno muito interessante do ponto de vista histórico. Quer o próprio papado, que ao longo de todo o século XIX e XX tem uma fulgurante imagem social, mediática, daquele bispo vestido de branco.

 

A globalização também chegou aí…

Essa parte não pode ser tirada desta equação. E depois há o fenómeno da globalização de Fátima, que tem aqui uma semântica muito parecida com a do Papa, que é a mulher vestida de branco. Quando estas duas figuras se juntam há aqui um potencial simbólico, que tem como elemento agregador, obviamente, o Evangelho, mas do ponto de vista até da comunicação para fora da igreja, tem a questão do tema importantíssimo, que está sempre por conquistar, que é o tema da paz.

A grande voz que é ouvida sempre com o distanciamento e a autoridade necessários para a paz no mundo, ao nível político, é de facto a voz do Papa, tem sido assim, isso é reconhecido por todos. E depois, dentro da questão mariana, o ícone de Fátima é um ícone completamente associado à mensagem de paz.

 

Não resisto a fazer-lhe uma pequena provocação. Falou de João Paulo II e da sua ligação umbilical a Fátima e à sua mensagem. Bento XVI foi o intérprete do segredo de Fátima, e Francisco já não tinha uma ligação tão direta à Fátima, mas foi conquistado por Fátima. O que pergunto é: já ouvimos o secretário de Estado (do Vaticano) a dizer que espera que Leão XIV esteja em Fátima também. Esta deslocação da imagem da Capelinha ao Vaticano pode reforçar esta ligação com o novo Papa? 

Eu estou claramente convencido disso. Sabemos que este Papa também é mariano, tem inscrito no seu ADN, na sua formação enquanto religioso agostinho, tem também essa matriz claramente mariana. E é muito interessante, porque as duas últimas vezes que a imagem vai a Roma, ela é pedida por um Papa, esse Papa, depois, deixa de estar na cadeira de Pedro, como acontece com o Papa Bento XVI, e é Francisco que renova o pedido e recebe a imagem. E agora torna a acontecer uma situação muito parecida. é o Papa Francisco que pede a imagem quando proclama o Jubileu, diz logo que há aqui uma dimensão mariana que é preciso celebrar, e não é Francisco que vai receber a imagem, é agora um outro Papa que vai receber a imagem.

Esta traditio também me parece muito interessante, também não se explica por razões intelectuais, obviamente, explica-se pela emotividade de uma cronologia de afetos que perpassa todo o mistério de Fátima e do Papado.

E o que é que pode representa, ou representa para os fiéis, verem a imagem de Fátima sair do espaço da Cova da Iria para ir até a Roma? Acreditamos que seja também um momento especial para quem trabalha no Santuário…

É, sem dúvida. E causa até uma reflexão, por vezes até com alguma ambiguidade. Porque, na verdade, nós sabemos que os peregrinos vão ao santuário para estarem diante daquela imagem. Sabemos que é uma imagem de madeira, que tem dimensões, tem um número de inventário, pode ser descrita pela história da arte, mas ela é muito mais do que isso, aquela madeira transformou-se verdadeiramente num ícone, e para os peregrinos ela é uma presença quase até ao nível de um sacramental, para usarmos assim uma expressão mais técnica da linguagem da Igreja.

Quando os peregrinos estão diante daquela imagem, ela é verdadeiramente uma mediação clara. O Papa Pio XII chegou a dizer que era uma imagem taumaturga, isto é, se lhe tocássemos ficávamos também tocados pela graça. Há uma dimensão de sacralidade naquela imagem, que quando ela tem de sair do santuário, nos deixa também com alguma perplexidade, e por isso é que só sai em situações muitíssimo especiais.

Mas os peregrinos sabem que o ser Igreja não depende inclusivamente disto, depende de uma imagem maior que é o próprio corpo de Cristo, quando os cristãos se juntam. E eu costumo dizer que, de facto, até mesmo quando a imagem de Nossa Senhora de Fátima não está na Cova da Iria, ela é responsável por atrair os peregrinos àquele regaço, e os peregrinos celebram, obviamente, a mesma fé, porque aquilo que os leva lá é sentirem-se Igreja, aquela Igreja de vela na mão, que espera a última vinda de Cristo no fim dos tempos.

Para quem trabalha no Santuário e lida com esta imagem… é de uma responsabilidade incrível, obviamente. É de uma grande responsabilidade. Que não é diferente da responsabilidade quotidiana.

A equipa do Museu do Santuário, com a equipa de conservação e restauro,  é para lá que temos os nossos olhos todos os dias, porque sabemos que é para lá que estão os olhos de todos os peregrinos todos os dias.

Aquela imagem é muito monitorizada, temos todos os cuidados com aquela escultura e também todas as apreensões, porque o que nós exigimos, do ponto de vista material, àquela escultura, não se está a exigir a nenhuma imagem que eu conheça. Porque, na verdade, aquela escultura está permanentemente exposta à veneração, em condições climatéricas que não são as melhores, ainda que estejam atenuadas, não são as melhores. É uma escultura de madeira, com todas as questões associadas ao mexer dos materiais orgânicos. É uma escultura que tem uma história também de policromias, repolicromias, que nós estudámos muito afincadamente, e é uma imagem que é muito exposta também nas procissões.

 

Com chuva, com sol…

Não damos conta disso, mas a padroeira de uma paróquia sai uma vez por ano, aquela imagem sai entre maio e outubro, nos dias 12 e nos dias 13.

Isso tem um peso específico muito grande, por exemplo, nos cuidados de  preservação e restauro?

Sim, claro, temos de estar muito atentos a isso. E também há uma dimensão que me preocupa muito e que nos leva a termos de mostrar aos peregrinos que ao olharmos para aquela imagem temos de a tratar do ponto de vista científico, porque de outra maneira estamos a ser irresponsáveis. E esse ponto de vista científico leva-nos também a olhar para uma imagem que vai envelhecendo e que nos temos que habituar a gostar dela com a idade que ela tem.


Não se pode andar sempre a pintar…

Aliás, a grande valia daquela imagem é ser testemunha de tudo isto. Quando os Papas lhe tocam – e, de facto, só eles é que lhe tocam habitualmente – nós não vamos tirar aquele toque do Papa, porque aquele toque faz parte da imagem de Nossa Senhora de Fátima.

 

Uma última questão, participou no recente Congresso Mariológico Internacional, em Roma, onde sublinhou que Portugal tem particulares responsabilidades em torno do tema mariano. Que impacto é que pode ter este Jubileu para uma maior aposta nos estudos mariológicos, além da Pastoral Mariana? 

Bom, vou dar aqui a minha opinião e dizer que é, de facto, a minha opinião: se  Portugal não despertar e não direcionar o seu olhar para os estudos da Mariologia, que não são apenas da parte teológica, mas também os marianos ou da temática mariana, e, portanto, a partir de uma literatura de séculos que anda à volta desta temática, de uma história, de uma política. A figura de Maria no nosso país, tal como noutros, não pode ser desligada de conjunturas políticas e de como ela serviu até de bandeira para levar por diante determinada forma de ver o país, de ver a comunidade. Se Portugal não fizer isto, obviamente está a faltar à sua responsabilidade. Esta é a minha opinião, obviamente.

O Santuário de Fátima, no seu Departamento de Estudos, faz aquilo que tem de fazer, mas sempre a partir da questão de Fátima, porque é isso que nos é específico, mas há muito mais a estudar para além de Fátima. Não quer dizer que não existam já estudos, mas era necessário em Portugal haver um centro, um lugar,  umas linhas de investigação em permanência à volta destas temáticas. Oxalá este Jubileu possa levar a que Portugal desperte para essa questão.

 

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